07 outubro, 2018

Carta aberta do card. Ouellet sobre as recentes acusações à Santa Sé

 
 Cardeal Marc Ouellet  (Vatican Media)
 
O card. Ouellet dirige-se a Dom Carlo Maria Viganò afirmando que as suas acusações são uma armação política desprovida de um real fundamento. Tudo isto não pode vir do Espírito de Deus. Portanto o apelo: saia da sua clandestinidade, arrependa-se da sua revolta e retorne a sentimentos melhores em relação ao Papa.
 
Cidade do Vaticano

A Sala de Imprensa do Vaticano publicou hoje uma Carta aberta do card. Marc Ouellet, Prefeito da Congregação para os Bispos, sobre as recentes acusações à Santa Sé. Publicamos abaixo o texto integral de acordo com uma tradução de trabalho do original francês.

Querido irmão, Carlo Maria Viganò,

Na sua última mensagem à mídia, na qual denuncia o Papa Francisco e a Cúria Romana, exorta-me a dizer a verdade sobre os factos que interpreta como uma corrupção endêmica, que contagiou a hierarquia da Igreja até ao seu mais alto nível. Com a devida autorização Pontifícia, exponho aqui o meu testemunho pessoal, como Prefeito da Congregação para os Bispos, sobre os acontecimentos concernentes ao Arcebispo emérito de Washington, Theodore McCarrick, e as suas presumidas coligações com o Papa Francisco, que constituem o objeto da sua clamorosa denúncia pública, bem como a sua reivindicação de demissão do Santo Padre. Apresento este meu testemunho, com base nos meus contactos pessoais e nos documentos dos arquivos desta Congregação, que, atualmente, são objeto de um estudo para esclarecer este triste caso.

Antes de tudo, permita-me dizer-lhe, com toda a sinceridade, em virtude do bom relacionamento de colaboração que havia entre nós, quando você era Núncio em Washington, que sua atual posição me parece incompreensível e extremamente condenável, não só por causa da confusão que gera entre o Povo de Deus, mas porque as suas acusações públicas afetam seriamente a reputação dos Sucessores dos Apóstolos. Lembro que, em algum tempo, eu gozava da sua estima e da sua confiança, mas, posso constatar que, aos seus olhos, eu teria perdido a dignidade, que reconhecia, pelo simples facto de que eu permanecer fiel às orientações do Santo Padre, no serviço que me confiou na Igreja. A comunhão com o Sucessor de Pedro não é, por ventura, a expressão da nossa obediência a Cristo, que o escolheu e o sustenta com a Sua graça? A minha interpretação sobre a Amoris Laetitia, da qual é contrário, consiste nesta fidelidade à tradição viva, da qual Francisco nos deu o exemplo, com a recente alteração do Catecismo da Igreja Católica sobre a questão da pena de morte.

Mas, vamos aos factos. Diz ter informado ao Papa Francisco, em 23 de junho de 2013, sobre o caso McCarrick, na audiência que lhe concedeu, bem como a tantos outros representantes Pontifícios, por ele encontrados, pela primeira vez, naquele dia. Imagino a enorme quantidade de informações verbais e escritas que ele teve que receber, naquela ocasião, sobre tantas pessoas e situações. Duvido muito que McCarrick lhe tenha interessado, como gostaria que fosse, uma vez que você era um Arcebispo emérito, de 82 anos, e com sete anos sem nenhum cargo. Além do mais, as instruções escritas e preparadas para si pela Congregação para os Bispos, no início do seu serviço em 2011, não faziam nenhuma referência a McCarrick, exceto o que eu lhe disse, pessoalmente, sobre a sua situação de Bispo emérito, que devia obedecer a certas condições e restrições, devido aos comentários sobre o seu comportamento no passado.

A partir de 30 de junho de 2010, desde quando eu era Prefeito desta Congregação,  jamais tinha levado o caso McCarrick a audiências com o Papa Bento XVI ou com o Papa Francisco, exceto nestes últimos dias, depois do seu declínio do Colégio dos Cardeais. O ex-Cardeal, que se aposentou em maio de 2006, tinha sido exortado, fortemente, a não viajar e a não aparecer em público, para não provocar outros comentários sobre isso. É um erro apresentar as medidas tomadas contra ele como "sanções" decretadas pelo Papa Bento XVI e canceladas pelo Papa Francisco. Após reexaminar os arquivos, não encontrei nenhum documento, sobre este caso, assinado por qualquer um dos Papas, tampouco nenhuma anotação das audiências do meu predecessor, Cardeal Giovanni-Battista Re, que tivessem obrigado o Arcebispo emérito McCarrick ao silêncio e à vida retirada, com o rigor das penas canónicas. O motivo é que, na época, não se dispunha, como hoje, de provas suficientes sobre a sua presumível culpa. Daí a posição da Congregação, inspirada pela prudência, e as Cartas do meu predecessor e minhas, que reafirmavam, por meio do Núncio Apostólico Pietro Sambi e, depois, também por meio de si, a exortação a um estilo de vida discreta, de oração e penitência, pelo seu próprio bem e pelo bem da Igreja. O seu caso teria sido objeto de novas medidas disciplinares se a Nunciatura em Washington ou qualquer outra fonte, tivesse fornecido informações recentes e decisivas sobre o seu comportamento. Faço votos, como tantos, que, por respeito às vítimas e por questão de justiça, a investigação em curso nos Estados Unidos e na Cúria Romana possa oferecer-nos, finalmente, uma visão geral crítica dos procedimentos e das circunstâncias deste caso doloroso, para que acontecimentos deste tipo não se repitam no futuro.

Como este homem de Igreja, sobre o qual, hoje, se conhece a sua incoerência, possa ter sido promovido, repetidas vezes, ao ponto de ser revestido de altíssimas funções, como Arcebispo de Washington e de Cardeal? Eu mesmo fiquei muito impressionado e reconheço os erros no processo de seleção feito no seu caso. No entanto, sem descer em detalhes, devemos saber que as decisões tomadas pelo Sumo Pontífice baseiam-se em informações, disponíveis naquele preciso momento, que constituem objeto de um julgamento prudencial, que não é infalível. Parece-me injusto concluir que as pessoas responsáveis pelo discernimento prévio sejam corruptas, ainda que, neste caso específico, alguns indícios fornecidos por testemunhos deveriam ter sido mais bem examinados. O prelado em questão soube defender-se com grande habilidade, das dúvidas levantadas sobre ele. Por outro lado, o facto de que possam existir no Vaticano pessoas que praticam e apoiam comportamentos contrários aos valores do Evangelho em matéria de sexualidade, não nos autoriza a generalizar e a declarar indigno e cúmplice  esse ou aquele e até mesmo o Santo Padre. Não ocorre, antes de tudo que os ministros da verdade se guardem da calúnia e da difamação?

Caro Representante Pontifício emérito, digo francamente que acusar o Papa Francisco de ter coberto com pleno conhecimento de causa este presumível predador sexual e de ser, portanto, cúmplice da corrupção que se espalha na Igreja, ao ponto de considerá-lo indigno de continuar a sua reforma como primeiro pastor da Igreja, resulta-me incrível e inacreditável de todos os pontos de vista. Eu não consigo entender como pôde deixar-se convencer dessa monstruosa acusação que não está de pé. Francisco não teve nada a ver com as promoções de McCarrick em Nova York, Metuchen, Newark e Washington. Ele o destituiu da sua dignidade de Cardeal quando se tornou evidente uma acusação crível de abuso sobre menores. Eu nunca ouvi o Papa Francisco referir-se a este pretenso grande conselheiro do seu pontificado para as nomeações na América, embora Ele não esconda a confiança que tem para com alguns prelados. Eu sinto que estas não estão nas suas preferências, nem naquelas de amigos que apoiam a sua interpretação dos factos. No entanto, acho aberrante que se aproveite do escândalo clamoroso dos abusos sexuais nos Estados Unidos para infligir à autoridade moral do seu Superior, o Sumo Pontífice, um golpe inaudito e não merecido.

Eu tenho o privilégio de me encontrar por longo tempo com o Papa Francisco em cada semana, para tratar de nomeações de Bispos e dos problemas que investem o seu governo. Eu sei muito bem como ele trata as pessoas e os problemas: com muita caridade, misericórdia, atenção e seriedade, como você mesmo experimentou. Ler como você conclui a sua última mensagem, aparentemente muito espiritual, tirando sarro e lançando uma dúvida sobre a sua fé, pareceu-me realmente muito sarcástico, e  até mesmo blasfemo!

Isso não pode vir do Espírito de Deus.

Querido irmão, gostaria realmente de ajudá-lo a recuperar a comunhão com Aquele que é o garante visível da comunhão da Igreja Católica; entendo que amarguras e decepções tenham marcado o seu caminho no serviço à Santa Sé, mas não pode concluir assim a sua vida sacerdotal, numa rebelião aberta e escandalosa, que inflige uma ferida muito dolorosa na Esposa de Cristo, que você pretende servir melhor, agravando a divisão e a confusão no povo de Deus! O que posso responder à sua pergunta a não ser: saia da sua clandestinidade, arrependa-se da sua rebelião e retorne a melhores sentimentos em relação ao Santo Padre, em vez de exacerbar a hostilidade contra ele. Como pode celebrar a Santa Eucaristia e pronunciar o seu nome no cânon da Missa? Como pode rezar o Terço, a São Miguel Arcanjo e à Mãe de Deus, condenando aquele que Ela protege e acompanha todos os dias no seu pesado e corajoso ministério?

Se o Papa não fosse um homem de oração, se estivesse agarrado ao dinheiro, se ele favorecesse os ricos, em vez dos pobres, se não demontrasse uma energia incansável para acolher todos os pobres e dar-lhes o generoso conforto da sua palavra e dos seus gestos, se não multiplicasse todos os meios possíveis para anunciar e comunicar a alegria do Evangelho a todos e a todas na Igreja e além de suas fronteiras visíveis, se não estendesse a mão às famílias, aos idosos abandonados, aos doentes da alma e do corpo e especialmente aos jovens em busca de felicidade, talvez se poderia preferir qualquer outro, de acordo consigo, com comportamentos diplomáticas ou políticos diferentes, mas eu que pude conhecê-lo bem, não posso colocar em questão a sua integridade pessoal, a sua consagração à missão e acima de tudo o carisma e a paz que ele tem pela graça de Deus e pelo poder do Senhor ressuscitado.

Em resposta ao seu ataque injusto e injustificado nos factos, querido Viganò, concluo, portanto, que a acusação é uma armação política desprovida de um real fundamento que possa incriminar o Papa, e repito que isso fere profundamente a comunhão da Igreja. Queira Deus que esta injustiça seja rapidamente reparada e que o Papa Francisco continue a ser reconhecido pelo que é: um pastor insigne, um pai compassivo e firme, um carisma profético para a Igreja e para o mundo. Que ele continue com alegria e plena confiança a sua reforma missionária, confortado pela oração do povo de Deus e pela solidariedade renovada de toda a Igreja junto com Maria, Rainha do Santo Rosário.

Marc Cardeal Ouellet

Prefeito da Congregação para os Bispos,

Festa de Nossa Senhora do Santo Rosário, 7 de outubro de 2018.


VATICAN NEWS

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