O ESPÍRITO SANTO NOS
INTRODUZ
NO MISTÉRIO DA MORTE DE
CRISTO
Nas duas meditações anteriores, tentamos mostrar como o Espírito
Santo nos introduz na “plena verdade” sobre a pessoa de Cristo, fazendo-nos
conhecê-lo como “Senhor” e como “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”. Nas
restantes meditações a nossa atenção, da pessoa, se move para o obrar de
Cristo, do ser para o agir. Vamos tentar mostrar como o Espírito Santo ilumina
o mistério pascal, e, em primeiro lugar, na presente meditação, o mistério da
sua e da nossa morte.
Apenas tornado público o programa destas pregações da Quaresma,
em entrevista ao L’Osservatore Romano, foi-me colocada a questão: “Quanto
espaço para a atualidade estará em suas meditações?” Eu respondi: Se por
“atualidade” entende-se no sentido de referências a situações ou eventos que
ocorrem, temo que haja bem pouco de atualidade nas próximas pregações de
Quaresma. Mas, na minha opinião, “atual” não é somente “o que está acontecendo”
e não é sinônimo de “recente”. As coisas mais “atuais” são aquelas eternas, ou
seja, aquelas que tocam as pessoas no âmago mais profundo da própria
existência, em todas as épocas e em todas as culturas. É a mesma distinção que
existe entre “urgente” e “importante”. Somos sempre tentados a preferir o
urgente ao importante, a preferir o “recente” ao “eterno”. É uma tendência que
o ritmo acelerado da comunicação e a necessidade de novidade da mídia tornam
particularmente aguda hoje.
O que é mais importante e atual para o crente, e, certamente,
para cada homem e para cada mulher, do que saber se a vida tem um sentido ou
não, se a morte é o fim de tudo, ou, pelo contrário, o início da verdadeira
vida? Ora, o mistério pascal de morte e ressurreição de Cristo é a única
resposta para estes problemas. A diferença que há entre esta atualidade e
aquela midiática da crônica é a mesma que há entre quem passa o tempo olhando
para o desenho deixado pela onda na praia (que a onda seguinte apaga!), e quem
eleva o olhar para contemplar o mar na sua imensidão.
Com essa consciência meditemos, portanto, no mistério pascal de
Cristo, começando pela sua morte de cruz.
A Carta aos Hebreus diz que Cristo “movido pelo Espírito eterno,
ofereceu a si mesmo sem mácula a Deus” (Hb 9, 14). “Espírito eterno” é outra
maneira de dizer Espírito Santo, como atesta uma variante antiga do texto. Isto
significa que, como homem, Jesus recebeu do Espírito Santo, que estava nele, o
impulso para oferecer-se em sacrifício ao Pai e a força que o sustentou durante
a sua paixão. A liturgia expressa essa mesma convicção quando, na oração antes
da comunhão, faz o sacerdote dizer: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo,
pela vontade do Pai e com a obra do Espírito Santo (cooperante Spiritu Sancto) destes
vida ao mundo”.
Ocorre para o sacrifício como para a oração de Jesus. Um dia
Jesus “exultou no Espírito Santo e disse: Te dou graças, ó Pai, Senhor do Céu e
da terra” (Lc 10, 21). Era o Espírito Santo que suscitava nele a oração e era o
Espírito Santo que o incentivava a oferecer-se ao Pai. O Espírito Santo que é o
dom eterno que o Filho faz de si mesmo ao Pai na eternidade, é também a força
que o empurra a fazer-se dom sacrificial ao Pai por nós no tempo.
A relação entre o Espírito Santo e a morte de Jesus é
enfatizada, especialmente, no Evangelho de João. “Não havia ainda Espírito –
comenta o evangelista sobre a promessa dos rios de água viva – porque Jesus não
havia sido ainda glorificado” (Jo 7, 39), ou seja, de acordo com o significado
desta palavra em João, não havia sido ainda levantado sobre a cruz. Da cruz
Jesus “emite o espírito”, simbolizado pela água e pelo sangue; de fato, escreve
em sua Primeira Carta: “Há três que dão testemunho: o Espírito, a água e o
sangue” (1 João 5, 7-8).
O Espírito Santo leva Jesus à cruz e da cruz Jesus dá o Espírito
Santo. No momento do nascimento e, depois, publicamente, em seu batismo, o
Espírito Santo é dado a Jesus; no momento da morte, Jesus dá o Espírito Santo:
“Depois de ter recebido o Espírito Santo prometido, ele o derramou, e é isto
que vedes e ouvis”, disse Pedro às multidões no dia de Pentecostes (At 2, 33).
Os Padres da Igreja gostavam de destacar esta reciprocidade. “O Senhor –
escrevia Santo Inácio de Antioquia – recebeu em sua cabeça uma unção perfumada
(myron), para emanar sobre a Igreja a incorruptibilidade[1]”.
Neste ponto, devemos trazer à memória a observação de Santo
Agostinho sobre a natureza dos mistérios de Cristo. Segundo ele, há uma
verdadeira celebração a modo de mistério e não só a modo de aniversário, quando
“não só se comemora um acontecimento, mas se faz de tal forma que se dá a
compreender o seu significado para nós e tal significado seja acolhido
santamente[2]”. E é isso que nós queremos fazer nesta meditação, guiados pelo
Espírito Santo: ver o que significa para nós a morte de Cristo, o que ela mudou
com relação à nossa morte.
2. Um morreu por todos
O Credo da Igreja termina com as palavras “espero a ressurreição
dos mortos e a vida do mundo que há de vir”. Não menciona o que ocorre antes da
ressurreição e da vida eterna, ou seja, a morte. Precisamente porque a morte
não é objeto de fé, mas de experiência. A morte, no entanto, nos diz respeito
muito de perto para passá-la em silêncio.
Para poder avaliar a mudança operada por Cristo com relação à
morte, vamos ver quais foram os remédios usados pelo homem para o problema da
morte, até mesmo porque continuam sendos os mesmos usados pelo homem de hoje na
busca do “consolar-se”. A morte é o problema humano número um. Santo Agostinho
antecipa a reflexão filosófica moderna sobre a morte.
“Quando nasce um homem – escreve – muitas hipóteses são feitas:
talvez será bonito, talvez será feio; talvez será rico, talvez será pobre;
talvez viverá muito, talvez não… Mas, de ninguém se diz: talvez morrerá ou
talvez não morrerá. Esta é a única coisa absolutamente certa da vida. Quando
sabemos que alguém está enfermo de hidropisia (naquele tempo esta era a doença
incurável, hoje existem outras), dizemos: “Coitado, ele deve morrer; está
condenado, não existe remédio”. Mas não devemos dizer o mesmo de alguém que
nasceu? “Coitado, deve morrer, não há remédio, está condenado!”. Que diferença
faz se em um tempo um pouco mais comprido ou um pouco mais curto? A morte é a
doença mortal que é contraída no nascimento[3]”.
Talvez, mais do que uma vida mortal, a nossa deve ser
considerada uma “morte vital”, um viver morrendo[4]. Este pensamento de
Agostinho foi retomado, em termos secularizados, por Martin Heidegger que fez a
morte entrar a pleno título no objeto da filosofia. Definindo a vida e o homem
“um ser para a morte”, ele faz da morte não um acidente que põe fim à vida, mas
a própria substância da vida, aquilo da qual ela é tecida. Viver é morrer. Cada
momento que vivemos é algo que é queimado, subtraído à vida e entregue à
morte[5]. “Viver para a morte” significa que a morte não é somente o fim, mas
também o fim da vida. Se nasce para morrer, para nada mais. Viemos do nada e
voltamos para o nada. O nada é a única possibilidade do homem.
É a inversão mais radical da visão cristã, segundo a qual o
homem é um “ser para a eternidade”. No entanto, a afirmação à qual chegou a
filosofia depois da sua longa reflexão sobre o homem não é nem escandalosa e
nem absurda. Simplesmente, a filosofia faz o seu trabalho; mostra qual seria o
destino humano deixado a si mesmo. Ajuda a compreender a diferença que faz a fé
em Cristo.
Talvez, mais do que a filosofia são os poetas que dizem as
palavras de sabedoria mais simples e mais verdadeiras sobre a morte. Um deles,
Giuseppe Ungaretti, falando do estado de espírito dos soldados nas trincheiras
na Grande Guerra, descreveu a situação de cada homem diante do mistério da
morte:
“Se está
como no outono
sobre as árvores
as folhas”.
A própria Escritura do Antigo Testamento não tem uma resposta
clara sobre a morte. Sobre ela fala-se nos livros sapienciais, mas sempre em
perspectiva de pergunta, mais do que de resposta. Jó, os Salmos, o Coélet, o
Siracide, a Sabedoria: todos estes livros dedicam uma atenção considerável ao
tema da morte. “Ensina-nos a contar nossos dias – diz um salmo – para que
tenhamos coração sábio” (Sl 90, 12). Por que nascer? Por que morrer? Para onde
se vai depois da morte? São todas perguntas que para o sábio do Antigo
Testamento permanecem sem mais resposta do que esta: Deus quer assim; sobre
tudo haverá um julgamento.
A Bíblia nos relata as opiniões perturbadoras dos descrentes da
época: “Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se
conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos
como quem não existiu” (Sb 2,1 ss). Somente neste livro da Sabedoria, que é o
mais recente dos livros sapienciais, a morte começa a ser iluminada pela idéia
de uma retribuição de outro mundo. As almas dos justos, se pensa, estão nas
mãos de Deus, embora não se saiba exatamente o que isso signifique (cf. Sb 3,
1). É verdade que em um salmo se lê: “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte
dos seus fieis” (Sl 116, 15). Mas não podemos apoiar-nos muito sobre este
versículo tão explorado, porque o significado da frase parece ser outro: Deus
faz pagar caro a morte dos seus fieis; ou seja, ele é o vingador, ele pede
contas.
Como o homem reagiu a esta dura necessidade? Uma maneira
improvisada foi esquecer isso, distrair-se. Para Epicuro, por exemplo, a morte
é um falso problema: “Quando existo eu – dizia – ainda não existe a morte;
quando existe a morte, não existo mais eu”. Portanto, ela não nos diz respeito.
Nessa lógica de exorcizar a morte encontram-se, também, as leis napoleônicas
que retiravam os cemitérios para fora das cidades.
Houve também quem se agarrou a remédios positivos. O mais
universal se chama a prole, sobreviver nos filhos; um outro, sobreviver na
fama: “Não morrerei totalmente (“non omnis moriar) – dizia o poeta latino –,
porque, de mim, permanecerão os meus escritos, a minha fama”. “Erigi um
monumento mais durável do que o bronze[6]”. Para o marxismo o homem sobrevive
na sociedade do futuro, não como indivíduo, mas como espécie.
Outro desses remédios paliativos é a reencarnação. Mas é uma
loucura. Aqueles que professam esta doutrina como parte integrante de sua
cultura e religião, ou seja, aqueles que realmente sabem o que é a
reencarnação, sabem também que não é um remédio e um consolo, mas uma punição.
Não é uma prorrogação concedida ao gozo, mas para a purificação. A alma se
reencarna porque ainda tem algo para expiar, e se deve expiar, deverá sofrer. A
palavra de Deus trunca todas estas formas de fuga ilusórias: “É fato que os homens
devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento” (Hb 9, 27). Uma só
vez! A doutrina da reencarnação é incompatível com a fé dos cristãos.
Em nossos dias têm-se ido além. Há um movimento mundial chamado
de “transumanismo”. Ele tem muitas faces, nem todas negativas, mas o seu núcleo
comum é a crença de que a espécie humana, graças aos avanços da tecnologia, já
começou a caminhar para uma superação radical de si mesma, para viver por
séculos e possivelmente para sempre! De acordo com um dos seus representantes
mais proeminentes, Zoltan Istvan, o objetivo final será “tornar-se como Deus e
vencer a morte”. Um crente judeu ou cristão não pode não pensar imediatamente
nas palavras quase idênticas pronunciadas no início da história humana: “Não
morrereis, sereis como Deus” (cf. Gn 3,4-5), com o resultado que nós
conhecemos.
3. A morte foi tragada pela vitória
Existe só um verdadeiro remédio para a morte e nós cristãos
defraudamos o mundo se não o proclamamos com a palavra e a vida. Escutemos como
o Apóstolo Paulo anuncia ao mundo esta mudança
“Se pela falta de um só a multidão morreu, com quanto maior
profusão a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se
derramaram sobre a multidão […]. Se, com efeito, pela falta de um só a morte imperou
através deste único homem, muito mais os que recebem a abundância da graça e do
dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo” (Rm 5, 15.17).
Com maior lirismo, o triunfo de Cristo sobre a morte é descrito
na primeira Carta aos Coríntios:
“’A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua
vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?’ O aguilhão da morte é o pecado e a
força do pecado é a Lei; Graças se rendam a Deus, que nos dá a vitória por
nosso Senhor Jesus Cristo!” (1 Cor 15, 54-57).
O fator decisivo é colocado no momento da morte de Cristo: “Ele
morreu por todos” (2 Cor 5,15). Mas o que aconteceu de tão decisivo naquele
momento para mudar a própria face da morte? Podemos representá-lo visualmente
dessa forma. O Filho de Deus desceu na sepultura, como em uma prisão escura,
mas saiu pela parede oposta. Não voltou atrás por onde havia entrado, como
Lázaro que voltou a morrer. Não, ele abriu uma brecha no lado oposto pela qual
todos aqueles que crêem nele podem segui-lo.
Um antigo Padre escreve: “Ele tomou sobre si os sofrimentos do
homem sofredor por meio do seu corpo capaz de sofrer, mas com o Espírito que
não podia morrer, Cristo matou a morte que matava o homem[7]”. E Santo
Agostinho: “Através da paixão Cristo passa da morte à vida e assim abre para
nós, que cremos na sua ressurreição, para passarmos também da morte à vida[8]”.
A morte tornou-se uma passagem e uma passagem para aquilo que não passa! Diz
bem o Crisóstomo:
“É verdade, ainda morremos como antes, mas não permanecemos na
morte: e isso não é morrer. O poder e a força real da morte é apenas isso: que
um morto não tem nenhuma possibilidade de voltar à vida. Mas se depois da morte
ele recebe de novo a vida e, mais ainda, lhe é dado uma vida melhor, então,
esta, já não é mais morte, mas um sono[9]”.
Todas estas formas de explicar o sentido da morte de Cristo são
verdadeiras, mas não nos dão a explicação mais profunda. Essa deve ser buscada
naquilo que, com a sua morte, Jesus veio colocar na condição humana, mais do
que naquilo que ele veio tirar; deve ser buscada no amor de Deus, não no pecado
do homem. Se Jesus sofre e morre de uma morte violenta infligida-lhe por ódio,
não o faz apenas para pagar no lugar dos homens a sua dívida impagável (a
dívida de dez mil talentos, na parábola, é perdoada pelo rei!); morre
crucificado para que o sofrimento e a morte dos seres humanos sejam
habitados pelo amor!
O homem havia se condenado sozinho a uma morte absurda e eis que
entrando nessa morte ele descobre que ela está repleta do amor de Deus. O amor
não pôde privar-se da morte, por causa da liberdade do ser humano: o amor
de Deus não pode eliminar com um passe de mágica a trágica realidade do mal e
da morte. O seu amor é forçado a deixar que o sofrimento e a morte pronunciem a
sua palavra. Mas, dado que o amor penetrou na morte e a encheu da divina
presença, é o amor que agora pronuncia a última palavra…
4. O que mudou da morte
Portanto, com Jesus, o que foi que mudou sobre a morte? Nada e
tudo! Nada para a razão, tudo para a fé. Não mudou a necessidade de entrar na
tumba, mas foi dada a oportunidade de sair dela. É o que ilustra poderosamente
o ícone ortodoxo da Ressurreição, do qual vemos uma interpretação moderna na
parede esquerda desta capela. O Ressuscitado desce aos abismos e arrasta para
fora consigo Adão e Eva e atrás deles todos aqueles que se agarram a ele, nos
abismos deste mundo.
Isto explica a atitude paradoxal do crente perante a morte, tão
semelhante ao de todos os demais e tão diferente. Uma atitude feita de tristeza,
medo, horror, porque sabe que deve descer naquele abismo escuro; mas também de
esperança porque sabe que pode sair dele. “Se nos entristece a certeza de ter
de morrer – diz o prefácio dos defuntos – nos consola a esperança da
imortalidade futura”. Para os fiéis de Tessalônica, afligidos pela morte de
alguns deles, São Paulo escrevia:
“Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos,
para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. De fato, se
cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos também que Deus, por meio de
Jesus, há de levar consigo aqueles que adormeceram” (1 Tes 4, 13-14).
Não lhes pede que não se aflijam pela morte, mas de sê-lo “como
os outros”, como os não-crentes. A morte não é para o crente o fim da vida, mas
o início daquela verdadeira; não é um salto no vazio, mas um salto na
eternidade. Ela é um nascimento e um batismo. É um nascimento, porque somente
então começa a vida verdadeira, aquela que não se destina à morte, mas dura
para sempre. Por isso a Igreja não celebra a festa dos santos no dia do seu
nascimento terreno, mas no dia do seu nascimento ao céu, o seu “dies natalis”.
Entre a vida de fé no tempo e a vida eterna há uma relação análoga àquela que
existe entre a vida do embrião no seio materno e aquela da criança, uma vez
nascida. Escreve o Cabasilas:
“Este mundo carrega em gestação o homem interior, novo, criado
segundo Deus, para que ele, aqui plasmado, modelado e tornado perfeito, não
seja gerado àquele mundo perfeito que não envelhece. Da mesma forma que o
embrião que, enquanto está na existência tenebrosa e fluida, a natureza prepara
para a vida na luz, assim é com os santos[10]”.
A morte é também um batismo. Assim Jesus chama a sua própria
morte: “Há um batismo com que eu devo ser batizado” (Lc 12,50). São Paulo fala
do batismo como de um ser “batizados na morte de Cristo” (Rm 6,4). Nos tempos
antigos, no momento do batismo a pessoa era mergulhada totalmente na água;
todos os pecados e todo o homem velho ficavam sepultados na água e saia dela
uma nova criatura, simbolizada pela túnica branca na qual era revestida. Assim
acontece na morte: morre a lagarta, nasce a borboleta. Deus “enxugará toda
lágrima de seus olhos, e não haverá mais a morte, nem pranto, nem lamentação,
nem angústia, porque as coisas de antes passaram” (Ap 21,4). Tudo sepultado
para sempre.
Durante vários séculos, especialmente a partir do século XVII,
um aspecto importante da ascese católica consistia na “preparação para a morte”,
isto é, em meditar sobre a morte, descrevendo visualmente as várias fases e o
seu avanço inexorável da periferia do corpo para o coração. Quase todas as
imagens de santos pintadas neste período mostra-os com um crânio ao lado,
também Francisco de Assis que havia chamado a morte de “irmã”.
Uma das atrações turísticas de Roma até hoje é o cemitério dos
Capuchinhos de Via Veneto. Não se pode negar que tudo isso ainda pode ser uma
chamada útil para uma época tão secularizada e despreocupada como a nossa;
especialmente se lemos como um aviso dirigido a quem vê o escrito que fica em
um dos esqueletos: “Aquilo que tu es, eu fui; aquilo que eu sou, tu serás”.
Tudo isso deu pé para que alguém diga que o cristianimo cresce
com o medo da morte. Mas é um erro terrível. O cristianismo, nós vimos, não é
feito para aumentar o medo da morte, mas para removê-lo; Cristo, diz a Carta
aos Hebreus, veio “para libertar aqueles que, com medo da morte, estavam
sujeitos à escravidão por toda a vida” (Hb 2,15). O cristianismo não cresce com
o pensamento de nossa própria morte, mas com o pensamento da morte de Cristo!
Por isso, mais eficaz que meditar sobre a nossa morte, é meditar
sobre a paixão e morte de Jesus e devemos dizer, por honra às gerações que nos
precederam, que tal meditação era também o pão de cada dia na espiritualidade
dos séculos recordados. Essa é uma meditação que suscita comoção e gratidão,
não angústia; nos faz exclamar, como o apóstolo Paulo: “Me amou e se entregou
por mim” (Gl 2, 20).
Um “piedoso exercício” que eu gostaria de recomendar a todos
durante a Quaresma é o de tomar em mãos um Evangelho e ler por conta própria,
com calma e na íntegra, a narração da paixão. Basta menos de meia hora. Conheci
uma mulher intelectual que se professava ateia. Um dia caiu-lhe em cima uma
daquelas notícias que deixam uma pessoa meio morta: a sua filha de dezesseis
anos tem um tumor nos ossos. É operada. A moça volta da sala de operação
martirizada, com tubos, sondas e catéteres por todos os lados. Sofre
terrivelmente, geme e não quer ouvir nenhuma palavra de conforto.
A mãe, conhecendo a sua piedade e religiosidade, pensando em
agradá-la, lhe diz: “Gostarias que eu te lesse algo do Evangelho?”. “Sim,
mamãe!”. “O quê?”. “Leia-me a paixão”. Ela, que nunca havia lido um Evangelho,
correu para comprar um dos capelães; sentou-se ao lado da cama e começou a ler.
Depois de um tempo a filha adormeceu, mas ela continua, na penumbra, a ler em
silêncio até o fim. “A filha adormecia – dirá ela própria no livro escrito
depois da morte da filha –, e a mãe acordava!”. Acordava do seu ateísmo. A
leitura da paixão de Cristo havia mudado a sua vida para sempre[11].
Concluamos com a simples, mas pungente oração da liturgia:
“Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam
redemisti mundum”. “Te adoramos, Oh Cristo, e te bendizemos, porque pela tua
santa cruz redemistes o mundo”.
Fr. Raniero Cantalamessa,
pregador da Casa Pontifícia
________________________________________[1] S. Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios, 17.
[2] S. Agostinho, Epistola 55,1,2 (CSEL, 34,1, p.170).
[3] Cf. S. Agostinho, Sermo Guelf. 12, 3 (Misc. Ag. I, p. 482 s.).
[4] S. Agostinho, Confissões I, 6, 7.
[5] Cf. M. Heidegger, Essere e Tempo, § 51, Longanesi, Milano 1976, p. 308 s.
[6] Orácio, Odi, III, 30,1.6.
[7] Melitão de Sardes, Sobre a Páscoa, 66 (SCh 123, p. 96).
[8] S. Agostinho, Comentário aos Salmos, 120,6)
[9] S. João Crisóstomo, In Haebr, hom. 17,2 (PG 63, 129).
[10] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 1-2, edição de U. Neri, UTET, Turim 1971, 65-67.
[11] Cf. Rosanna Garofalo, Sopra le ali dell’aquila, Ancora, Milão 1993.
________________________________
Comunidade Shalom / News Va.
Tradução de Thácio Siqueira
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