Para vermos donde Deus nos vê
«E teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa… Apenas o teu Pai, que está presente em segredo…»
«E teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa… Apenas o teu Pai, que está presente em segredo…»
Uma Quaresma, irmãos, uma Quaresma para convertermos o olhar. Como é
necessário, como é urgente. Nada menos do que isto, de facto. Ouvimo-lo
a Jesus, falando da verdadeira esmola, da verdadeira oração e do
verdadeiro jejum.
Da verdade de tudo, que só acontece sob o olhar de
Deus, apenas o olhar de Deus. De Deus que vê o oculto, de Deus que está
no segredo. Aí mesmo, onde residem as intenções e o essencial das vidas,
nossas e alheias. Na nascente e na foz, no princípio e na finalidade do
que se faz ou não se faz, bem como no porquê das coisas. O verdadeiro
porquê.
Jesus ofereceu-se em cada cuidado prestado, inteiramente e
porque sim. Não precisava de mais e nunca buscou plateia nem aplauso,
bem pelo contrário. Porque as necessidades dos outros eram imediatamente
as suas; como do próprio Deus, que nos cria a todos e nos reclama em
cada um. O segredo de Jesus foi estar sempre com o Pai. Sendo um só com
Ele, foi constantemente para todos.
Quando Jesus rezou – e Jesus
rezava sempre, pois que nada fazia fora de Deus – era ao Pai que se
dirigia, dia e noite, em espírito e verdade. Qualquer ostentação,
“religiosa” que fosse, estaria a mais.
Quando jejuou – mesmo Ele, que
também comia e bebia – era por lhe bastar como alimento o cumprimento
da vontade do Pai, plena saciedade da alma.
Agora nós, que nos
queremos seus discípulos e celebramos as Cinzas das nossas vaidades…
Começando a Quaresma, propomo-nos ser também assim, muito mais assim, ou
seja, vendo as coisas como Ele próprio as via e, pelo seu Espírito, nos
ensina a vê-las. Porque ser cristão é substancialmente um outro modo de
ver e o nosso batismo é propriamente uma iluminação. Não há nenhuma
cura de cegueira nos Evangelhos que se resuma à incapacidade física.
Nunca se trata de oftalmologia apenas, mas de soteriologia sempre.
Reduzimos
liturgicamente a ornamentação. Como o devemos fazer no consumo de bens,
para maior atenção e correspondência às necessidades dos outros. Mas,
com tudo isto, vejamos como Jesus via e sintamos como Jesus sentia – o
coração de Deus no coração do mundo.
Na sua Mensagem Quaresmal o
Papa Francisco lembra a parábola do rico egoísta e gozador e do pobre
Lázaro, a morrer de miséria. A Lázaro só Deus é que o via, recebendo-o
logo no “seio de Abraão”, nome antigo do Paraíso que oferece. Não o via o
rico, nem podia ver, com o olhar derramado sobre tantas púrpuras e
linhos, mais iguarias sem fim. Por isso também não viu a Deus nem lhe
reteve a Palavra, que requer silêncio para escutar e guardar. Guardar no
oculto, saber no segredo e sóbrios do mais. Com o espírito inteiramente
livre para Deus e o coração disponível para os outros.
Convertamos o
olhar interior do desejo, purifiquemo-lo de mil concupiscências que nos
aprisionam o espírito. Uma Quaresma pode não ser demais, quando a vida
inteira corre o risco de ser de menos. Tragicamente de menos, para nós
que nos adiamos e para os outros que nos esperam, se não coincidirmos
com o olhar de Deus, que vê o que está oculto e debaixo de tanta
aparência e distração. De Deus que aí mesmo nos espera, no reino da
misericórdia e da justiça – e, só assim, da paz.Sem culpar ninguém para
nos desculparmos a nós, olhemos um pouco em redor, pelas notícias que se
propalam, as novidades que se anseiam, os comentários que se fazem e as
culpas e desculpas que se distribuem à vez. Olhemos realmente para tudo
isto e façamo-lo agora com “olhos de ver”. Tanto juízo apressado sobre o
grande ou pequeno mundo, tanta distração do essencial e tão fraco
critério habitualmente… Na precipitação com que vamos, na excitação que
nos induzem, ficamos tão pela rama, vogamos tão longe do olhar de Deus.
Do olhar de Deus sobre nós e os outros.
Dos olhos compassivos de
Jesus, mesmo quando advertia, sempre para salvar. Como olhou para
Natanael, ainda que este desprezasse quem quer que viesse de Nazaré.
Como olhou para Levi, mesmo que este cobrasse para estrangeiros. Como
olhou para Zaqueu, que também não gozava de grande consideração em
Jericó. Como olhou para aquela mulher apanhada em adultério… Como olha
agora para cada um de nós, que havemos de pôr a mão na consciência e aí
mesmo encontrar o olhar de Deus, que vê o que está oculto. O olhar de
Deus, tão íntimo, tão essencial, tão recriador. Como o daquele pai que
rejubilou com o regresso do filho pródigo e o viu quando este ainda
vinha longe.
Deixemos então que o Espirito divino, esse mesmo que
Jesus compartilha com o Pai, nos purifique inteiramente, para
coincidirmos mais no nosso íntimo e segredo com a própria intimidade
divina, outro nome da misericórdia plena. Ser cristão é ser ungido pelo
Espírito de Cristo. Sejamo-lo, pois, e tão feitos como ditos. Que esta
Quaresma chegue para tal, num mundo tão cansado de esperar, mesmo quando
ilude a esperança. Não a retardemos nós.
Em cada Quaresma
fazemos uma renúncia diocesana em favor de necessidades mais prementes.
Em 2016 juntámos cerca de duzentos e cinquenta mil euros para responder a
várias urgências sócio-caritativas. Este ano a renúncia destina-se a
obras no Seminário dos Olivais, onde se formam os futuros padres para o
Patriarcado de Lisboa e para outras dioceses de Portugal, África e
Índia, alguns gratuitamente. A manutenção e os custos deste inestimável
serviço eclesial são consideráveis, ainda que feitos com muita
contenção.
Precisamos agora de restaurar a parte do edifício que tem
servido para a Conferência Episcopal Portuguesa, que sairá no próximo
Verão. Assim poderemos cumprir a indicação da Congregação para o Clero
que prevê um “tempo propedêutico”, sempre que possível em casa própria,
como será o Seminário de Caparide, e um Seminário Maior onde se façam
depois os estudos filosóficos, teológicos e pastorais.
Sei que posso
contar com a sensibilidade e o carinho dos diocesanos de Lisboa para com
os nossos Seminários. Também aí se aprende a ver o mundo com um olhar
profundamente cristão e pastoral, sendo este o critério maior para
certificar a vocação dos futuros padres. Mas só com a ajuda de muitos se
poderá levar por diante tão grande tarefa, que aliás beneficia, além de
Lisboa, tantas outras dioceses.
Confiemos em Deus que conhece por dentro a generosidade dos corações e sempre recompensa “a cem por um”!
Sé Patriarcal, 1 de março de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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