31 março, 2017

Frei Cantalamessa - IV Pregação da Quaresma 2017 - Texto integral



(RV) "O Espírito Santo nos introduz no mistério" foi o tema da IV Pregação da Quaresma do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap ao Papa Francisco e à Cùria, na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano.

Eis o texto na ìntegra:
 
"Refletimos nas duas primeiras meditações quaresmais sobre o Espírito Santo, que nos insere, nos introduz, na plena verdade sobre a pessoa de Cristo, fazendo-nos proclamá-lo Senhor e verdadeiro Deus. Na última meditação passamos do ser para o agir de Cristo, da sua pessoa para as suas obras, e, especialmente, para o mistério da sua morte redentora. Hoje nos propomos meditar sobre o mistério da sua e da nossa ressurreição.
São Paulo atribui abertamente a ressurreição de Jesus da morte, à obra do Espírito Santo. Ele diz que Cristo "foi constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de santidade, em virtude da ressurreição dos mortos” (Rm 1,4). Em Cristo, tornou-se realidade a grande profecia de Ezequiel sobre o Espírito que entra nos ossos secos, ressuscita-os dos seus túmulos e faz de um grande número de mortos "um grande exército" de ressuscitados à vida e à esperança (cf. Ez 37, 1-14).
Mas, não gostaria de continuar a minha meditação seguindo essa linha de raciocínio.  Fazer do Espírito Santo o princípio inspirador de toda a teologia (intenção da assim chamada Teologia do terceiro artigo!) não significa colocar o Espírito Santo, à força, em toda afirmação, nomeando-o a cada passo. Não estaria na natureza do Paráclito que, como aquela da luz, ilumina todas as coisas permanecendo, ele próprio, por assim dizer, na sombra, como nos bastidores. Mais que falar “do” Espírito Santo, a Teologia do terceiro artigo consiste em falar “no” Espírito Santo, com tudo o que esta simples mudança de preposição comporta.

1. A ressurreição de Cristo: abordagem histórica

Antes de mais nada, digamos algo sobre a ressurreição de Cristo como fato “histórico”. Podemos definir a ressurreição como um evento histórico, no sentido usual deste termo, que é de realmente acontecido, no sentido, isto é, onde histórico se opõe a mítico e a lendário? Para expressar-nos em termos do debate recente: Jesus ressuscitou apenas no kerygma, ou seja, no anúncio da Igreja (como alguém afirmou na linha de Rudolf Bultmann), ou, pelo contrário, ressuscitou também na realidade e na história? E mais: ele ressuscitou, a pessoa de Jesus, ou ressuscitou somente a sua causa, no sentido metafórico no qual ressuscitar significa sobreviver, ou a vitória de uma ideia, após a morte da pessoa que a propôs?
Vemos, portanto, em que sentido se dá uma abordagem também histórica à ressurreição de Cristo. Não porque qualquer um de nós aqui tenha a necessidade de ser persuadido a respeito disso, mas, como disse Lucas no começo do seu evangelho, “para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (cf. Lc 1, 4) e que transmitimos aos demais.
A fé dos discípulos, salvo algumas excepções (João, as piedosas mulheres), não resiste ao teste do seu trágico fim. Com a paixão e a morte, a escuridão cobre tudo. Seu estado de espírito emerge das palavras dos dois discípulos de Emaús: "Esperávamos que fosse ele… mas já faz três dias" (Lc 24, 21). Estamos em um beco sem saída da fé. O caso Jesus é considerado encerrado.
Agora – continuando nosso trabalho de historiadores – vamos para alguns anos, ou melhor, algumas semanas, depois. O que encontramos? Um grupo de homens, o mesmo que esteve ao lado de Jesus, que vai repetindo, em voz alta, que Jesus de Nazaré é o Messias, o Senhor, o Filho de Deus; que está vivo e que virá para julgar o mundo. O caso de Jesus não só foi reaberto, mas, em pouco tempo foi levado a uma dimensão absoluta e universal. Aquele homem afeta não só o povo de Israel, mas todos os homens de todos os tempos. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (1Pd 2, 4), ou seja, começo de uma nova humanidade. A partir de agora, sabendo ou não, não há nenhum outro nome debaixo do céu dado aos homens, no qual é possível salvar-se, a não ser aquele de Jesus de Nazaré (cf. At 4, 12).
O que provocou tal mudança que fez com que os mesmos homens que antes haviam negado Jesus ou tinham fugido, agora dizem em público estas coisas, fundam Igrejas e se deixam, inclusive, prender, flagelar, matar por ele? Em coro, eles nos dão esta resposta: “Ressuscitou! Nós vimos!”. O ultimo ato que pode fazer o historiador, antes de ceder a palavra à fé, é verificar aquela resposta.
A ressurreição é um acontecimento histórico, em um sentido muito particular. Ela está no limite da história, como aquele fio que separa o mar da terra firme. Está dentro e fora ao mesmo tempo. Com ela, a história se abre ao que está além da história, à escatologia. É, portanto, em certo sentido, a ruptura da história e a sua superação, assim como a criação é o seu começo. Isto significa que a ressurreição é um evento em si mesmo não testemunhável e atingível com as nossas categorias mentais que são todas ligadas à experiência do tempo e do espaço. E, de fato, ninguém vê o momento em que Jesus ressuscita. Ninguém pode dizer que viu Jesus ressuscitar, mas só de tê-lo visto ressuscitado.
A ressurreição, portanto, é conhecida a posteriori, em seguida. Como é a presença física do Verbo em Maria que demonstra o fato que se encarnou; assim a presença espiritual de Cristo na comunidade, evidenciada pelas aparições, demonstra que ressuscitou. Isso explica o fato de que nenhum historiador profano diga uma palavra sobre a ressurreição. Tácito, que também lembra da morte de um “um certo Cristo” nos dias de Pôncio Pilatos[1], cala sobre a ressurreição. Aquele evento não tinha relevância e sentido a não ser para quem experimentava as suas consequências, no seio da comunidade.
Em que sentido, então, falamos de uma abordagem histórica para a ressurreição? Aquilo que se apresenta para a consideração do historiador e o permite falar da ressurreição, são dois fatos: primeiro, a súbita e inexplicável fé dos discípulos, uma fé tão tenaz a ponto de resistir até mesmo à prova do martírio; segundo, a explicação de tal fé que os interessados nos deixaram. Escreveu um exegeta eminente: "No momento decisivo, quando Jesus foi capturado e executado, os discípulos não cultivavam nenhum pensamento sobre a ressurreição. Eles fugiram e deram por encerrado o caso de Jesus. Algo teve de intervir que, em um curto espaço de tempo, não só provocou a mudança radical de seu estado de espírito, mas os levou também a uma atividade totalmente diferente e à fundação da Igreja. Esse "algo" é o núcleo histórico da fé pascal[2]".
Foi justamente notado que, se se nega o caráter histórico e objetivo da ressurreição, o nascimento da fé e da Igreja se tornaria um mistério ainda mais inexplicável do que a própria ressurreição: "A ideia de que o imponente edifício da história do cristianismo seja como uma enorme pirâmide pendurada sobre um fato insignificante é, certamente, menos credível do que a afirmação de que todo o evento – ou seja, o dado de fato mais o significado inerente a ele – tenha realmente ocupado um lugar na história comparável ao que lhe atribui o Novo Testamento[3]”.
Qual é, então, o ponto de chegada da pesquisa histórica com relação à ressurreição? Podemos apreendê-lo nas palavras dos discípulos de Emaús. Alguns discípulos, na manhã da Páscoa, foram ao túmulo de Jesus e descobriram que as coisas estavam como haviam relatado as mulheres, que foram antes deles, “mas a ele, não o viram” (cf. Lc 24, 24). Até a história vai a sepulcro de Jesus e deve constatar que as coisas estão da forma como disseram os testemunhos. Mas ele, o Ressuscitado, não o vê. Não basta constatar historicamente os fatos, é necessário “ver” o Ressuscitado, e isso a história não pode dar, mas só a fé[4].  Quem chega correndo da terra firme rumo a costa do mar deve parar de repente; pode ir além com o olhar, mas não com os pés.

2. Significado apologético da ressurreição

Passando da história para a fé, muda também o modo de falar da ressurreição. O do Novo Testamento e da liturgia da Igreja é uma linguagem assertiva, apodíctica, que não se baseia em demonstrações dialéticas. "Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos" (1 Cor 15, 20), diz Paulo. Aqui se está no nível da fé, não mais no da demonstração. É o que chamamos de kerygma. "Scimus Christum surrexisse a mortuis vere", canta a liturgia do Domingo de Páscoa: "Nós sabemos que Cristo verdadeiramente ressuscitou". Não só acreditamos, mas tendo acreditado, sabemos que é assim, disso temos certeza. A prova mais segura da ressurreição se tem depois, não antes, que se acreditou, porque então se experimenta que Jesus está vivo.
Mas o que é a ressurreição considerada do ponto de vista da fé? É o testemunho de Deus sobre Jesus Cristo. Deus Pai, que, em vida, já havia corroborado Jesus de Nazaré com prodígios e sinais, agora colocou um selo definitivo no seu reconhecimento, ressuscitando-o da morte. Em seu discurso de Atenas, São Paulo formula assim a coisa: “Deus o ressuscitou dos mortos dando, assim, a todos os homens uma prova certa sobre ele” (At 17, 31). A ressurreição é o poderoso “Sim” de Deus, o seu “Amém” pronunciado sobre a vida do seu Filho Jesus.
A morte de Cristo não era, em si, suficiente para dar testemunho da verdade de sua causa. Muitos homens - temos uma prova trágica disso em nossos dias - morrem por razões erradas, até mesmo por razões iníquas; A sua morte não torna verdadeira a sua causa; somente testemunha que eles acreditavam na verdade dela. A morte de Cristo não é a garantia da sua verdade, mas do seu amor, pois "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pela pessoa amada” (Jo 15, 13).
Somente a ressurreição é o selo de autenticidade divina de Cristo. É por isso que, a quem lhe pedia um sinal, Jesus respondeu: "Destruí este santuário, e em três dias eu o levantarei" (Jo 2, 18s) e em outro lugar diz: "Não vai ser dada a esta geração nenhum sinal, a não ser o sinal de Jonas” que depois de três dias no ventre do peixe viu novamente a luz (Mt 16,4). Paulo tem razão de edificar sobre a ressurreição, como seu fundamento, todo o edifício da fé: “Se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria nossa fé. Nós seríamos falsas testemunhas de Deus... seríamos os mais dignos de compaixão de todos os homens"(1 Cor 15, 14-15,19). É possível compreender por que Santo Agostinho pode dizer que "a fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo". Que Cristo tenha morrido todo mundo acredita, também os pagãos, mas que tenha ressuscitado, só os cristãos acreditam, e não é cristão quem não acredita[5].

3. Significado mistérico da ressurreição

Até aqui o significado apologético da ressurreição de Cristo, que é destinado a estabelecer a autenticidade da missão de Cristo e a legitimidade da sua pretensão divina. A esse se deve acrescentar outro significado que poderemos chamar mistérico ou salvífico, em quanto que diz respeito também a nós que cremos. A ressurreição de Cristo nos diz respeito e é um mistério “para nós”, porque fundamenta a esperança da nossa própria ressurreição da morte:
“E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus  dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11).
A fé em uma vida após a morte aparece, de forma clara e explícita, apenas no final do Antigo Testamento. O segundo livro dos Macabeus é o testemunho mais avançado: "Depois de morrermos – exclama um dos sete irmãos mortos por Antíoco – (Deus) nos ressuscitará à vida nova e eternal” (cf. 2 Mac 7,1-14). Mas essa fé não nasce de repente, do nada; está enraizada vitalmente em toda a precedente revelação bíblica, da qual representa a conclusão esperada e, por assim dizer, o fruto mais maduro.
Especialmente duas certezas levaram a esta conclusão: a certeza da onipotência de Deus e a certeza da insuficiência e da injustiça da retribuição terrena. Aparecia sempre mais evidente – especialmente depois da experiência do exílio – que a sorte dos bons neste mundo é tal que, sem a esperança de uma retribuição diferente dos justos após a morte, seria impossível não cair no desespero. Nesta vida, de fato, tudo acontece da mesma forma ao justo e ao ímpio, tanto na felicidade quanto na desgraça. O livro do Coélet representa a expressão mais lúcida desta amarga conclusão (cf. Ecl 7, 15).
O pensamento de Jesus sobre o assunto é expresso na discussão com os Saduceus sobre o caso da mulher que teve sete maridos (Lc 20, 27-38). De acordo com a revelação bíblica mais antiga, a mosaica, eles não aceitaram a doutrina da ressurreição dos mortos que consideravam uma novidade. Referindo-se à lei do levirato (Dt 25: a mulher que ficou viúva, sem filhos homens, deve casar-se com o cunhado), eles especulam o caso limite de uma mulher que, dessa forma, passou por sete maridos. No final, com a certeza de ter demonstrado o absurdo da ressurreição, perguntam: "Esta mulher, na ressurreição, de quem será esposa"?
Sem se afastar do terreno escolhido pelos seus adversários, com poucas palavras, Jesus primeiro revela onde está o erro dos saduceus e o corrige, depois, dá à fé na ressurreição a sua fundamentação mais profunda e mais convincente. Jesus se pronuncia sobre duas coisas: sobre o modo e sobre o fato da ressurreição. Quanto ao fato de que haverá uma ressurreição dos mortos, Jesus recorda o episódio da sarça ardente, onde Deus se proclama "Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó". Se Deus se proclama "Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, quando Abraão, Isaac e Jacó morreram há gerações, e se, por outro lado, “Deus é Deus dos vivos e não dos mortos”, então quer dizer que Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em algum lugar!
Mais do que sobre a resposta de Jesus aos Saduceus, a fé na ressurreição se fundamenta no fato da sua ressurreição da morte. “Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, exclama Paulo, como podem dizer alguns de vocês que não existe ressurreição dos mortos? Se não existe ressurreição dos mortos, nem sequer Cristo ressuscitou!” (1 Cor 15,12-13). É absurdo pensar em um corpo, cuja cabeça reina gloriosa no céu e cujo corpo se decompõe eternamente na terra ou acabe no nada.
A fé cristã na ressurreição dos mortos responde, além disso, ao desejo mais instintivo do coração humano. Nós – diz Paulo – não queremos ser despojados do nosso corpo, mas revestidos, ou seja, não queremos sobreviver com uma parte somente do nosso ser – a alma – , mas com todo o nosso eu, alma e corpo; por isso, não desejamos que o nosso corpo mortal seja destruído, mas que “seja absorvido pela vida” e se vista, ele próprio, de imortalidade (cf. 2 Cor 5, 1-5; 1 Cor 15, 51-53).
Da vida eterna, nós não só temos nesta vida uma promessa: nós também temos "as primícias" e o "sinal" (ou arras, ndt). Jamais se deveria traduzir o termo grego arrabôn usado por São Paulo a respeito do Espírito (2 Cor 1, 22; 5,5; Ef 1, 14) com “penhor” (pignus), mas só com sinal. Santo Agostinho explicou muito bem a diferença. O penhor, diz, não é o começo do pagamento, mas algo que se dá enquanto se espera o pagamento; assim que o pagamento é feito, o penhor é devolvido. Não acontece isso com o sinal. Ele não é devolvido no momento do pagamento, mas completado. Já faz parte do pagamento. “Se Deus, por meio do seu Espírito, nos deu como sinal o amor, quando nos for dada toda a realidade, nos será tirado o sinal? Certamente que não, mas o que já foi dado será completado[6]".
Como “as primícias” anunciam a safra cheia e são parte dela, assim o sinal é parte da posse plena do Espírito. É o “Espírito que habita em nós” (Rm 8,11), mais que a imortalidade da alma, que garante, como se vê, a continuidade entre a nossa vida presente e aquela futura.
Sobre o modo da ressurreição, naquela mesma ocasião Jesus afirma a condição espiritual dos ressuscitados: "Aqueles que são considerados dignos do outro mundo e da ressurreição dos mortos, não tomam mulher nem marido; e nem podem mais morrer, porque são iguais aos anjos e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus”.
Foi feita uma tentativa de ilustrar a transição da condição terrestre para aquela de ressuscitados com exemplos tirados da natureza: a semente da qual brota a árvore, a natureza morta no inverno que ressurge na primavera, a lagarta que se transforma em uma borboleta. Paulo simplesmente diz: "semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico ressuscita corpo espiritual"(1 Cor 15, 42- 44).
A verdade é que tudo o que diz respeito à nossa condição no pós-vida permanece um mistério impenetrável; não porque Deus quis mantê-lo escondido, mas porque, como somos forçados a pensar em tudo nas categorias de tempo e espaço, não temos as ferramentas para representá-lo. A eternidade não é uma entidade que existe a parte e que pode ser definida em si mesma, como se fosse um tempo esticado infinitamente. É o modo de ser de Deus. A eternidade é Deus! Entrar na vida eterna significa simplesmente ser admitidos, por graça, a compartilhar o modo de ser de Deus.
Tudo isso não teria sido possível se a eternidade não tivesse antes entrado no tempo. É em Cristo ressuscitado e graças a ele que nós podemos revestir o modo de ser de Deus. São Paulo se representa aquilo que o espera depois da morte como um “ir para estar com Cristo” (Fl 1,23). A mesma coisa pode ser deduzida a partir da palavra de Jesus ao bom ladrão: "Hoje estarás comigo no paraíso" (Lc 23, 43). O paraíso é um ser “com Cristo”, como seus "herdeiros". A vida eterna é um reunir-se dos membros com a cabeça, um “apinhar-se” com ele na glória, depois de ter estado unido com ele no sofrimento (Rm 8,17).
Uma boa história contada por um escritor alemão moderno nos ajuda a nos dar um sentido de vida eterna mais do que todas as tentativas racionais de explicação. Em um mosteiro medieval moravam dois monges ligados entre si por profunda amizade espiritual. Um se chamava Rufus e o outro Rufinus. Em todo o seu tempo livre a única coisa que faziam era tentar imaginar e descrever como seria a vida eterna na Jerusalém celeste. Rufus que era um mestre-de-obras imaginava-a como uma cidade com portas de ouro, cravejada de pedras preciosas; Rufinus que era organista, como toda ressoante de celestes melodias.
No final, fizeram um pacto: qualquer um deles que tivesse morrido primeiro deveria voltar na noite seguinte, para garantir ao amigo que as coisas eram assim como eles haviam imaginado. Teria sido suficiente uma palavra. Se fosse como eles tinham pensado, se deveria dizer simplesmente: taliter!, ou seja, isso mesmo;! se – mas era completamente impossível – fosse de outra forma, deveria dizer: aliter, diferente!
Uma noite, enquanto estava no órgão, o coração de Rufino parou. O amigo velou ansiosamente toda a noite, mas nada; esperou em vigílias e jejuns por semanas e meses, e nada. Finalmente, no aniversário da sua morte, eis que, à noite, em um halo de luz, entra na sua cela o amigo. Vendo que silencia, é ele que lhe pergunta, confiante na resposta afirmativa: taliter? É tão verdade? Mas o amigo balança a cabeça em sinal negativo. Em desespero, grita: aliter? É diferente? Mais uma vez um sinal negativo da cabeça. E, finalmente, dos lábios fechados do amigo, em um instante, duas palavras: totaliter aliter: Totalmente diferente! Rufus entende em um flash que o céu é infinitamente mais do que eles tinham imaginado, que não pode ser descrito, e logo depois morre também ele, pelo desejo de alcançá-lo[7].
O fato, é claro, é uma lenda, mas o seu conteúdo é bastante bíblico. "O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o corçaão do homem não percebeu, tudo o que Deus preparou para os que o amam” (1 Cor 2, 9). São Simeão, o Novo Teólogo, um dos santos mais amados na Igreja Ortodoxa, teve uma visão um dia; estava certo de ter contemplado Deus em pessoa e, com a certeza de que não poderia haver nada maior e mais radioso do que tinha visto, disse: “Se o céu é isso, me basta!” O Senhor lhe respondeu: "Es realmente bem mesquinho, se te contentas com estes bens, porque, com relação aos bens futuros, esses são como um céu pintado no papel, em comparação ao céu real[8]”.
Quando se quer atravessar um braço de mar, dizia Santo Agostinho, a coisa mais importante não é sentar-se na costa e aguçar a visão para ver o que está do outro lado, mas é subir no barco que leva àquela margem. E também para nós a coisa mais importante não é especular sobre como será a nossa vida eterna, mas fazer as coisas que sabemos que nos levam a ela[9]. Que o nosso dia de hoje seja um pequeno passo em direção a ela.
Traduçao de Thácio Siqueira
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[1] Tacito, Anais 25.
[2] Martin Dibelius, Iesus,  Berlim 1966, p. 117.
[3] Charles H. Dodd, History and the Gospel, London 1964, p.76 (ed. Italiana Storia ed Evangelo, Brescia 1976, p. 87).
[4] Cf. Søren Kierkegaard, Diario, X, 4, A, 523.
[5] Cf. S. Agostinho, Enarr. in Psalmos, 120, 6 (CCL, 40, p 1791).
[6] S. Agostinho, Discursos, 23, 9 (CC 41, p. 314).
[7] H. Franck, Der Regenbogen. Siebenmalsieben Geschichten, Leipzig 1927.
[8] S. Simeão Novo Teólogo, Segunda oração de agradecimento (SCh 113, p. 350).
[9] Agostinho, A Trindade IV,15,30; Confissões, VII, 21.

Purificar a memória do passado: contar a história de forma diferente




RV) Com sentimentos de gratidão a Deus, acompanhado por uma certa maravilha, o Papa louvou a iniciativa que  - disse  - até há uns anos atrás terá sido impensável:

 “Falar de Lutero, católicos e protestantes juntos por iniciativa de um organismo da Santa Sé. Estamos a tocar realmente com as mãos os frutos da acção do Espírito Santo, que ultrapassa todas as barreiras e transforma os conflitos em ocasiões de crescimento na comunhão”

Sublinhou Francisco recordando que “Do conflito à comunhão” é precisamente o título do documento da Comissão Luterano-Católica Romana com vista nas comemorações comuns do 5º centenário do início da Reforma Luterana.

O Papa manifestou a sua alegria também por essas comemorações terrem dado a estudiosos de várias instituições a oportunidade de aprofundar juntos a figura de Lutero e a sua crítica à Igreja do seu tempo. Isto – continuou – permite ultrapassar o clima de mútua desconfiança e de rivalidades que caracterizaram o passado.

O estudo atento e rigoroso, livre de preconceitos e polemicas ideológicas, permite à Igreja, hoje em diálogo, de discernir e assumir o que de positivo e legítimo houve na Reforma, e de se distanciar dos erros, exagerações e falências, reconhecendo os pecados que tinham levar à divisão”

O passado não se apaga – disse Francisco – mas depois de 50 anos de diálogo ecuménico entre católicos e protestantes é possível fazer uma purificação da memória, ou seja “contar esta história de forma diferente”, sem rancor.

Hoje como cristãos somos chamados a libertar-nos  de preconceitos em relação à fé que os outros professam com uma tónica e uma linguagem diferente, a perdoarmo-nos reciprocamente pelas culpas cometidas pelos nossos pais e a invocar juntos de Deus o dom da reconciliação e da unidade” – conclui o Papa.

(DA)

30 março, 2017

Informação sobre as Renúncias Quaresmais

PATRIARCADO DE LISBOA


INFORMAÇÃO SOBRE AS RENÚNCIAS QUARESMAIS

Estando a decorrer a Renúncia Quaresmal de 2017, o Patriarcado de Lisboa informa o seguinte:
 1. Da “Renúncia Quaresmal” de 2011, no montante de €245 719, destinado “à ajuda da Igreja de Lisboa a outras Igrejas mais pobres”, de entre as quais a diocese do Mindelo, o Patriarca de Lisboa,  em conformidade com os fins anunciados, decidiu:
- Entregar à diocese de Palai, na India, para ajuda à construção de um hospital: €50 000;
- Pagar a formação de seminaristas de África (onde se incluem do Mindelo, Santiago e S. Tomé e Príncipe) e da Índia, nos anos letivos  de 2010/12 o montante de: €154 400.  
- Continuar a pagar a formação  do clero autóctone desses países, como “ajuda às igrejas mais pobres”, tendo despendido  entre 2013/16 mais: €605 600.
- Casa do Gaiato do Tojal, sem acordos com Segurança Social: €80 000.

2. Da “Renúncia Quaresmal” de 2012, no montante de € 286 251, destinado ao Fundo Diocesano “Igreja Solidária”,  confiou a gestão à Cáritas diocesana.

3. Da “Renúncia Quaresmal” de 2013, no montante de €233 148,37, destinado a partilhar com Igrejas irmãs que nos solicitem ajuda, sem excluir situações de pobreza da própria família diocesana”:
- Por não ter sido possível celebrar acordos de cooperação entre o Estado e a Casa do Gaiato, entregou para a sustentação de cerca de sessenta rapazes: €95 000;
- Partilhou com outras igrejas irmãs de Portugal, na formação dos seus alunos, entre 2010 e 2016, o montante de: €646 000.

4. Da “Renúncia Quaresmal” de 2014, no montante de €285 950,11, destinado “a apoiar a Ajuda de Berço”, entregou, por arredondamento: €300 000.

5. Da “Renúncia Quaresmal” de 2015, no montante de €250 910,57 destinado “a apoiar as instituições sociais diocesanas, designadamente as que acompanham os mais novos, como a Casa do Gaiato de Lisboa, ou pessoas sem-abrigo e fragilizadas, como a Comunidade Vida e Paz”, foi entregue:
- Comunidade Vida e Paz: € 50 000;
- Instituto de Beneficência Maria da Conceição Ferrão Pimentel: €105 000;
- Casa do Gaiato do Tojal: €85 000;
- para resposta a necessidades emergentes: €10 910,57.

6. Da “Renúncia Quaresmal” de 2016, agora em fecho de contas, mas já com o resultado de €252 803,39 será entregue a pessoas e instituições, no contexto da realização das obras de misericórdia, com o objetivo da valorização humana  autónoma e livre dos beneficiários.

Patriarcado de Lisboa, 30 março  de 2017

29 março, 2017

A esperança contra todas as outras formas de esperança



Cidade do Vaticano (RV) – O Papa Francisco recebeu, na manhã desta quarta-feira, dia 29 de Março de 2017, às 9,00 horas de Roma, na pequena sala da Aula Paulo VI, no Vaticano, os participantes à reunião da Comissão permanente para o Diálogo entre o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso e as Super-intendências iraquianas: xiita, sunita, e aquela para os cristãos: Yazidi, Sabei/Mandei.

Às 10 horas de Roma, Francisco presidiu a habitual Audiência Geral na Praça de S. Pedro, hoje , mais uma vez repleta de fiéis e peregrinos vindos das diversas partes da Itália e do mundo inteiro para assistir a catequese do Santo Padre. Tema da catequese deste ano é a esperança cristã. Hoje Francisco, apoiando-se na carta aos Romanos do Apostolo Paulo (Rm 4,16-25), falou de modo particular da “esperança contra todas as formas de esperança”.

O passo da Carta de S. Paulo aos Romanos que acabamos apenas de escutar, faz-nos um grande dom. De facto, somos habituados a reconhecer em Abraão o nosso pai na fé; hoje o Apóstolo nos faz compreender que Abraão é para nós também Pai na esperança e isto porque na sua história, nós podemos colher um anúncio da Ressurreição, da vida nova que vence o mal e a morte.

No texto, prossegue o Papa, se diz que Abraão acreditou no Deus que “dá a vida aos mortos e chama à existência as coisas que não existem, como se existissem”; Ele “ sem vacilar na fé não tomou em consideração o seu próprio corpo, já sem vigor por ser quase centenário, nem o seio de Sara, já sem vida”.

Esta é a esperança que também nós somos chamados a viver. O Deus que se revela à Abraão é o Deus que salva, o Deus que faz sair do desespero e da morte, o Deus que chama à vida. Na história de Abraão tudo se torna um hino ao Deus que liberta e regenera, tudo se torna profecia. E se torna profecia para nós que reconhecemos e celebramos o cumprimento de tudo isso no mistério da Páscoa. Deus, de facto, “ressuscitou Jesus dos mortos” para que também nós possamos passar por intermédio d’Ele da morte à vida. E então, realmente, Abraão pode muito bem ser chamado “pai de muitos povos” enquanto resplandece como anúncio de uma humanidade nova, resgatada por Cristo do pecado e da morte e introduzida uma vez por todas no abraço do amor de Deus.  

Abraão é portanto, para nós hoje, observa o Santo Padre,  não só o nosso pai na fé, mas é também, o nosso pai na esperança. Pois «foi com uma esperança, para além do que se podia esperar, que Abraão acreditou».

Estas palavras do apóstolo Paulo, acrescenta o Pontífice, mostram-nos a ligação íntima que existe entre a fé e a esperança. Esta não se apoia em raciocínios, previsões e certezas humanas, conseguindo ir mais além do que humanamente se pode esperar. É o caso de Abraão que acreditou na promessa divina de que haveria de ser pai de muitos povos, quando já nada o fazia esperar: a morte já o espreitava e a sua esposa, Sara, era estéril.

De facto, sublina ainda Francisco, a esperança teologal é capaz de subsistir no meio da derrocada de todas as esperanças humanas, porque não se funda numa palavra nossa, mas na Palavra de Deus. É uma esperança apoiada sobre uma promessa que, do ponto de vista humano, parece insegura e fora de todas as previsões; e contudo vemo-la resistir à própria morte, se quem promete é o Deus da Ressurreição e da Vida.

Eis então que somos chamados, a seguir o exemplo de Abraão: não obstante a sua vida já votada à morte, ele fiou-se de Deus, «plenamente convencido que Ele tinha poder para realizar o que tinha prometido». Peçamos a graça de viver apoiados, não tanto nas nossas seguranças e capacidades, mas sobretudo na esperança que brota da promessa de Deus, como verdadeiros filhos de Abraão. Só então a nossa vida assumirá uma luz nova, com a certeza de que Aquele que ressuscitou o seu Filho nos há de ressuscitar também a nós, para nos tornarmos verdadeiramente um só com Ele e com todos os nossos irmãos e irmãs na fé.

Finalmente, não faltou uma saudação especial do Papa aos peregrinos de língua oficial portuguesa presentes na Praça de S. Pedro: “Com particular afeto, disse o Santo Padre, saúdo o grupo de «Amigos dos Museus de Portugal» e também os professores e os alunos do «Colégio Cedros», desejando a todos os peregrinos presentes de língua portuguesa e as respetivas famílias, uma renovada vitalidade espiritual na fiel e generosa adesão a Cristo e à Igreja. Olhai o futuro com esperança e não vos canseis de trabalhar na vinha do Senhor. Vele sobre o vosso caminho a Virgem Maria.

28 março, 2017

Mensagem do Papa ao X Fórum sobre o Futuro da Agricultura




(RV) E enquanto em Nova Iorque se fala de armas nucleares, em Bruxelas decorre o X Fórum sobre o Futuro da Agricultura no mundo. Ocasião para o Santo Padre transmitir também uma mensagem através do Cardeal Secretario Pietro Parolin que nele participa. Francisco convida a um empenho não só no sentido de melhorar o sistema de produção e de comercialização, mas também e sobretudo que se ponha a tónica no direito de cada ser humano a ter acesso a uma alimentação sã e suficiente e a ser nutrido conforme as próprias necessidades. É cada vez mais evidente a necessidade de pôr a pessoa humana no centro de qualquer acção, quer se trate de trabalhadores agrícolas, operadores económicos ou consumidores. Esta abordagem – lê-se na mensagem apresentada pelo Cardeal Parolin – se for partilhada como impulso ideal e não como dado técnico, permite ter presente a estreita relação entre agricultura, cuidado e custódia da Criação, o crescimento económico, os níveis de desenvolvimento e as necessidades actuais e futuras da população mundial.

As expectativas ligadas aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável definidas pela comunidade internacional [e que deverão ser atingidas até ao 2030], requerem que se enfrente a situação de certos países e zonas do mundo onde a actividade agrícola é carente porque não suficientemente diversificada e, por conseguinte, inadequada a responder ao contexto ambiental e às mutações climáticas. Trata-se de um mecanismo complexo que atinge sobretudo os mais vulneráveis excluídos não só dos processos de produção como também obrigados a abandonar as próprias terras e procurar refúgio e esperança de vida noutros lugares.

O futuro da agricultura – lê-se na mensagem – não pode ser pensado impondo modelos de produção que beneficiem apenas uma parte da população mundial, em prejuízo da outra parte. Qualquer esforço deve ser orientado, antes de mais, a fazer com que cada país possa crescer os próprios recursos para chegar à auto-suficiência alimentar. Há que pensar em novos modelos de consumo, formas de organização comunitária que valorize os pequenos produtores e preservem os ecossistemas locais e a bio-diversidade. Há que adoptar políticas de cooperação que não agravem a situação das populações menos avançadas ou a sua dependência externa.

O fosso entre a amplidão dos problemas e os resultados positivos até agora obtidos não deve desencorajar, nem criar desconfianças, mas sim responsabilizar – escreve o Papa na sua mensagem, esperançoso de que nesse Fórum cada um possa encontrar o encorajamento necessário para intensificar a obra empreendida, tornando-a cada vez mais criativa e estruturada. “É muito o que se fazer” – remata o Papa na mensagem.

Eliminação armas nucleares: um imperativo moral e humanitário




(RV) O Papa Francisco dirigiu nesta terça-feira uma mensagem à Conferência da ONU sobre a proibição das armas nucleares que iniciou ontem em Nova Iorque e termina no próximo dia 31. O objectivo principal é negociar um instrumento jurídico vinculante sobre a proibição dessas armas e leve à sua eliminação total. A reunião destes dias é a primeira parte deste processo. A delegação da Santa Sé a este encontro é chefiada pelo Subsecretário para as Relações com os Estados, D. António Camilleri. Será ele quem  apresentará a mensagem do Papa. Nela Francisco recorda, como fizera na sua visita à ONU em Setembro de 2015, que a Paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento das relações amigáveis entre as nações sublinhadas no preâmbulo da Carta da ONU são incompatíveis com uma ética e um direito baseados na destruição recíproca. Por isso, há que empenhar-se, todos, a favor de um mundo sem armas nucleares, e aplicar plenamente o Tratado de não proliferação.

A situação de conflito que se vive hoje no mundo – terrorismo, guerras assimétricas, segurança informática, problemáticas ambientais, pobreza… levam a perguntar-se se as armas nucleares podem ser realmente um freio, uma resposta eficaz a esses desafios. Isto sobretudo tendo em conta as catastróficas consequências humanas e ambientais a que o uso de tais armas levaria. E nem se fale nos recursos que tais armas requerem, recursos que poderiam ser empregues na promoção da paz e do desenvolvimento humano integral, na luta contra a pobreza e actuação da agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável – sublinha o Papa.

Além disso – continua – há que perguntar-se se é sustentável um equilíbrio baseado no medo, medo que tende a minar as relações de confiança entre os povos.

A paz e a estabilidade internacionais  não podem ser fundadas num falso sentido de segurança, na ameaça da destruição reciproca, na simples manutenção de um equilíbrio de poder. A paz – afirma o Papa na sua mensagem – deve ser construída sobre a justiça, o desenvolvimento humano integral, no respeito dos direitos fundamentais, na protecção do ambiente, na participação de todos na vida pública, na confiança entre os povos, na promoção de instituições pacíficas, no acesso à educação e à saúde, no diálogo e na sociedade. Nesta perspectiva, precisamos de ir para além do freio nuclear: a comunidade internacional é chamada a adoptar estratégias visionárias para promover o objectivo da paz e a estabilidade e evitar abordagens míopes aos problemas de segurança nacional e internacional.

Neste contexto- frisa ainda o Papa – o objectivo final da eliminação total das armas nucleares torna-se um imperativo moral e humanitário. É um processo que requer diálogo, construção e consolidação de mecanismos de confiança e cooperação.

Francisco chama ainda atenção para a crescente interdependência e globalização, o que significa que tudo é interligado e que qualquer resposta à ameaça nuclear tem de ser colectiva e consertada, baseada na confiança reciproca, orientada para o bem comum. Há que evitar recriminações recíprocas e de polarização que dificultam o diálogo em vez de o encorajar.

O Papa conclui a sua densa mensagem fazendo notar que esta reunião que pretende negociar um Tratado inspirado em argumentações éticas e morais é um exercício de esperança. E  augura que possa constituir um passo decisivo na caminhada em direcção a um mundo sem armas nucleares

27 março, 2017

ABENÇOADA TENTAÇÃO!

 
 
 
 
Às vezes, vem-me assim um abatimento, uma tristeza, não entendo de onde e porquê, como que a dizer-me que estou só, espiritualmente falando, como se Deus se tivesse apartado de mim e me deixasse entregue a mim próprio e às minhas fraquezas e defeitos.

E se me distraio e não luto, há uma secura, um vazio, que me quer iludir, colocando-me dúvidas, que insidiosamente entra na minha mente e me faz perguntar a mim próprio se tudo isto faz sentido, se Deus existe, se toda esta entrega me leva realmente a algum lado.

E hoje, como tantas vezes, o dia começou assim.

Mas estamos na Quaresma e à minha mente, à minha imaginação veio a imagem de Jesus Cristo no deserto, só, em jejum, e a ser tentado pelo demónio.

Qualquer comparação, entre as duas situações, seria absolutamente absurda, mas abriu-me a mente para a realidade de que, afinal estes momentos de abatimento, de tristeza, são também uma tentação do inimigo, a querer afastar-me da certeza de Deus, da alegria de Deus, da companhia, (mesmo que aparentemente ausente), de Deus.

E quero perceber porque é que Deus permite tais momentos, permite tais tentações, como um modo de me fortalecer na fé, tornando mais consciente em mim a necessidade espiritual e de vida, de cada vez mais estar unido a Ele em oração e vigília permanente, não só por mim, mas para dar testemunho de que Ele está realmente no meio de nós e em nós.

E então, a secura pode ainda permanecer, a sensação de estar só pode ainda continuar, mas no fundo do coração brilha a luz da certeza do que Ele me diz, do que Ele nos diz, se O quisermos escutar:
Eu estou aqui e nunca daqui sairei, a não ser que conscientemente me queiras rejeitar.

Abençoada tentação, que acaba por produzir tais frutos da graça de Deus!


Monte Real, 27 de Março de 2017
Joaquim Mexia Alves

26 março, 2017

Frei Cantalamessa - III Pregação da quarema 2017 - Texto integral





O ESPÍRITO SANTO NOS INTRODUZ
NO MISTÉRIO DA MORTE DE CRISTO

1. O Espírito Santo no mistério pascal de Cristo

Nas duas meditações anteriores, tentamos mostrar como o Espírito Santo nos introduz na “plena verdade” sobre a pessoa de Cristo, fazendo-nos conhecê-lo como “Senhor” e como “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”. Nas restantes meditações a nossa atenção, da pessoa, se move para o obrar de Cristo, do ser para o agir. Vamos tentar mostrar como o Espírito Santo ilumina o mistério pascal, e, em primeiro lugar, na presente meditação, o mistério da sua e da nossa morte.
Apenas tornado público o programa destas pregações da Quaresma, em entrevista ao L’Osservatore Romano, foi-me colocada a questão: “Quanto espaço para a atualidade estará em suas meditações?” Eu respondi: Se por “atualidade” entende-se no sentido de referências a situações ou eventos que ocorrem, temo que haja bem pouco de atualidade nas próximas pregações de Quaresma. Mas, na minha opinião, “atual” não é somente “o que está acontecendo” e não é sinônimo de “recente”. As coisas mais “atuais” são aquelas eternas, ou seja, aquelas que tocam as pessoas no âmago mais profundo da própria existência, em todas as épocas e em todas as culturas. É a mesma distinção que existe entre “urgente” e “importante”. Somos sempre tentados a preferir o urgente ao importante, a preferir o “recente” ao “eterno”. É uma tendência que o ritmo acelerado da comunicação e a necessidade de novidade da mídia tornam particularmente aguda hoje.
O que é mais importante e atual para o crente, e, certamente, para cada homem e para cada mulher, do que saber se a vida tem um sentido ou não, se a morte é o fim de tudo, ou, pelo contrário, o início da verdadeira vida? Ora, o mistério pascal de morte e ressurreição de Cristo é a única resposta para estes problemas. A diferença que há entre esta atualidade e aquela midiática da crônica é a mesma que há entre quem passa o tempo olhando para o desenho deixado pela onda na praia (que a onda seguinte apaga!), e quem eleva o olhar para contemplar o mar na sua imensidão.
Com essa consciência meditemos, portanto, no mistério pascal de Cristo, começando pela sua morte de cruz.
A Carta aos Hebreus diz que Cristo “movido pelo Espírito eterno, ofereceu a si mesmo sem mácula a Deus” (Hb 9, 14). “Espírito eterno” é outra maneira de dizer Espírito Santo, como atesta uma variante antiga do texto. Isto significa que, como homem, Jesus recebeu do Espírito Santo, que estava nele, o impulso para oferecer-se em sacrifício ao Pai e a força que o sustentou durante a sua paixão. A liturgia expressa essa mesma convicção quando, na oração antes da comunhão, faz o sacerdote dizer: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, pela vontade do Pai e com a obra do Espírito Santo (cooperante Spiritu Sancto) destes vida ao mundo”.
Ocorre para o sacrifício como para a oração de Jesus. Um dia Jesus “exultou no Espírito Santo e disse: Te dou graças, ó Pai, Senhor do Céu e da terra” (Lc 10, 21). Era o Espírito Santo que suscitava nele a oração e era o Espírito Santo que o incentivava a oferecer-se ao Pai. O Espírito Santo que é o dom eterno que o Filho faz de si mesmo ao Pai na eternidade, é também a força que o empurra a fazer-se dom sacrificial ao Pai por nós no tempo.
A relação entre o Espírito Santo e a morte de Jesus é enfatizada, especialmente, no Evangelho de João. “Não havia ainda Espírito – comenta o evangelista sobre a promessa dos rios de água viva – porque Jesus não havia sido ainda glorificado” (Jo 7, 39), ou seja, de acordo com o significado desta palavra em João, não havia sido ainda levantado sobre a cruz. Da cruz Jesus “emite o espírito”, simbolizado pela água e pelo sangue; de fato, escreve em sua Primeira Carta: “Há três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue” (1 João 5, 7-8).
O Espírito Santo leva Jesus à cruz e da cruz Jesus dá o Espírito Santo. No momento do nascimento e, depois, publicamente, em seu batismo, o Espírito Santo é dado a Jesus; no momento da morte, Jesus dá o Espírito Santo: “Depois de ter recebido o Espírito Santo prometido, ele o derramou, e é isto que vedes e ouvis”, disse Pedro às multidões no dia de Pentecostes (At 2, 33). Os Padres da Igreja gostavam de destacar esta reciprocidade. “O Senhor – escrevia Santo Inácio de Antioquia – recebeu em sua cabeça uma unção perfumada (myron), para emanar sobre a Igreja a incorruptibilidade[1]”.
Neste ponto, devemos trazer à memória a observação de Santo Agostinho sobre a natureza dos mistérios de Cristo. Segundo ele, há uma verdadeira celebração a modo de mistério e não só a modo de aniversário, quando “não só se comemora um acontecimento, mas se faz de tal forma que se dá a compreender o seu significado para nós e tal significado seja acolhido santamente[2]”. E é isso que nós queremos fazer nesta meditação, guiados pelo Espírito Santo: ver o que significa para nós a morte de Cristo, o que ela mudou com relação à nossa morte.

2. Um morreu por todos

O Credo da Igreja termina com as palavras “espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”. Não menciona o que ocorre antes da ressurreição e da vida eterna, ou seja, a morte. Precisamente porque a morte não é objeto de fé, mas de experiência. A morte, no entanto, nos diz respeito muito de perto para passá-la em silêncio.
Para poder avaliar a mudança operada por Cristo com relação à morte, vamos ver quais foram os remédios usados pelo homem para o problema da morte, até mesmo porque continuam sendos os mesmos usados pelo homem de hoje na busca do “consolar-se”. A morte é o problema humano número um. Santo Agostinho antecipa a reflexão filosófica moderna sobre a morte.
“Quando nasce um homem – escreve – muitas hipóteses são feitas: talvez será bonito, talvez será feio; talvez será rico, talvez será pobre; talvez viverá muito, talvez não… Mas, de ninguém se diz: talvez morrerá ou talvez não morrerá. Esta é a única coisa absolutamente certa da vida. Quando sabemos que alguém está enfermo de hidropisia (naquele tempo esta era a doença incurável, hoje existem outras), dizemos: “Coitado, ele deve morrer; está condenado, não existe remédio”. Mas não devemos dizer o mesmo de alguém que nasceu? “Coitado, deve morrer, não há remédio, está condenado!”. Que diferença faz se em um tempo um pouco mais comprido ou um pouco mais curto? A morte é a doença mortal que é contraída no nascimento[3]”.
Talvez, mais do que uma vida mortal, a nossa deve ser considerada uma “morte vital”, um viver morrendo[4]. Este pensamento de Agostinho foi retomado, em termos secularizados, por Martin Heidegger que fez a morte entrar a pleno título no objeto da filosofia. Definindo a vida e o homem “um ser para a morte”, ele faz da morte não um acidente que põe fim à vida, mas a própria substância da vida, aquilo da qual ela é tecida. Viver é morrer. Cada momento que vivemos é algo que é queimado, subtraído à vida e entregue à morte[5]. “Viver para a morte” significa que a morte não é somente o fim, mas também o fim da vida. Se nasce para morrer, para nada mais. Viemos do nada e voltamos para o nada. O nada é a única possibilidade do homem.
É a inversão mais radical da visão cristã, segundo a qual o homem é um “ser para a eternidade”. No entanto, a afirmação à qual chegou a filosofia depois da sua longa reflexão sobre o homem não é nem escandalosa e nem absurda. Simplesmente, a filosofia faz o seu trabalho; mostra qual seria o destino humano deixado a si mesmo. Ajuda a compreender a diferença que faz a fé em Cristo.
Talvez, mais do que a filosofia são os poetas que dizem as palavras de sabedoria mais simples e mais verdadeiras sobre a morte. Um deles, Giuseppe Ungaretti, falando do estado de espírito dos soldados nas trincheiras na Grande Guerra, descreveu a situação de cada homem diante do mistério da morte:

“Se está
como no outono
sobre as árvores
as folhas”.

A própria Escritura do Antigo Testamento não tem uma resposta clara sobre a morte. Sobre ela fala-se nos livros sapienciais, mas sempre em perspectiva de pergunta, mais do que de resposta. Jó, os Salmos, o Coélet, o Siracide, a Sabedoria: todos estes livros dedicam uma atenção considerável ao tema da morte. “Ensina-nos a contar nossos dias – diz um salmo – para que tenhamos coração sábio” (Sl 90, 12). Por que nascer? Por que morrer? Para onde se vai depois da morte? São todas perguntas que para o sábio do Antigo Testamento permanecem sem mais resposta do que esta: Deus quer assim; sobre tudo haverá um julgamento.
A Bíblia nos relata as opiniões perturbadoras dos descrentes da época: “Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu” (Sb 2,1 ss). Somente neste livro da Sabedoria, que é o mais recente dos livros sapienciais, a morte começa a ser iluminada pela idéia de uma retribuição de outro mundo. As almas dos justos, se pensa, estão nas mãos de Deus, embora não se saiba exatamente o que isso signifique (cf. Sb 3, 1). É verdade que em um salmo se lê: “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus fieis” (Sl 116, 15). Mas não podemos apoiar-nos muito sobre este versículo tão explorado, porque o significado da frase parece ser outro: Deus faz pagar caro a morte dos seus fieis; ou seja, ele é o vingador, ele pede contas.
Como o homem reagiu a esta dura necessidade? Uma maneira improvisada foi esquecer isso, distrair-se. Para Epicuro, por exemplo, a morte é um falso problema: “Quando existo eu – dizia – ainda não existe a morte; quando existe a morte, não existo mais eu”. Portanto, ela não nos diz respeito. Nessa lógica de exorcizar a morte encontram-se, também, as leis napoleônicas que retiravam os cemitérios para fora das cidades.
Houve também quem se agarrou a remédios positivos. O mais universal se chama a prole, sobreviver nos filhos; um outro, sobreviver na fama: “Não morrerei totalmente (“non omnis moriar) – dizia o poeta latino –, porque, de mim, permanecerão os meus escritos, a minha fama”. “Erigi um monumento mais durável do que o bronze[6]”. Para o marxismo o homem sobrevive na sociedade do futuro, não como indivíduo, mas como espécie.
Outro desses remédios paliativos é a reencarnação. Mas é uma loucura. Aqueles que professam esta doutrina como parte integrante de sua cultura e religião, ou seja, aqueles que realmente sabem o que é a reencarnação, sabem também que não é um remédio e um consolo, mas uma punição. Não é uma prorrogação concedida ao gozo, mas para a purificação. A alma se reencarna porque ainda tem algo para expiar, e se deve expiar, deverá sofrer. A palavra de Deus trunca todas estas formas de fuga ilusórias: “É fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento” (Hb 9, 27). Uma só vez! A doutrina da reencarnação é incompatível com a fé dos cristãos.
Em nossos dias têm-se ido além. Há um movimento mundial chamado de “transumanismo”. Ele tem muitas faces, nem todas negativas, mas o seu núcleo comum é a crença de que a espécie humana, graças aos avanços da tecnologia, já começou a caminhar para uma superação radical de si mesma, para viver por séculos e possivelmente para sempre! De acordo com um dos seus representantes mais proeminentes, Zoltan Istvan, o objetivo final será “tornar-se como Deus e vencer a morte”. Um crente judeu ou cristão não pode não pensar imediatamente nas palavras quase idênticas pronunciadas no início da história humana: “Não morrereis, sereis como Deus” (cf. Gn 3,4-5), com o resultado que nós conhecemos.

3. A morte foi tragada pela vitória

Existe só um verdadeiro remédio para a morte e nós cristãos defraudamos o mundo se não o proclamamos com a palavra e a vida. Escutemos como o Apóstolo Paulo anuncia ao mundo esta mudança
“Se pela falta de um só a multidão morreu, com quanto maior profusão a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre a multidão […]. Se, com efeito, pela falta de um só a morte imperou através deste único homem, muito mais os que recebem a abundância da graça e do dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo” (Rm 5, 15.17).
Com maior lirismo, o triunfo de Cristo sobre a morte é descrito na primeira Carta aos Coríntios:
“’A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?’ O aguilhão da morte é o pecado e a força do pecado é a Lei; Graças se rendam a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo!” (1 Cor 15, 54-57).
O fator decisivo é colocado no momento da morte de Cristo: “Ele morreu por todos” (2 Cor 5,15). Mas o que aconteceu de tão decisivo naquele momento para mudar a própria face da morte? Podemos representá-lo visualmente dessa forma. O Filho de Deus desceu na sepultura, como em uma prisão escura, mas saiu pela parede oposta. Não voltou atrás por onde havia entrado, como Lázaro que voltou a morrer. Não, ele abriu uma brecha no lado oposto pela qual todos aqueles que crêem nele podem segui-lo.
Um antigo Padre escreve: “Ele tomou sobre si os sofrimentos do homem sofredor por meio do seu corpo capaz de sofrer, mas com o Espírito que não podia morrer, Cristo matou a morte que matava o homem[7]”. E Santo Agostinho: “Através da paixão Cristo passa da morte à vida e assim abre para nós, que cremos na sua ressurreição, para passarmos também da morte à vida[8]”. A morte tornou-se uma passagem e uma passagem para aquilo que não passa! Diz bem o Crisóstomo:
“É verdade, ainda morremos como antes, mas não permanecemos na morte: e isso não é morrer. O poder e a força real da morte é apenas isso: que um morto não tem nenhuma possibilidade de voltar à vida. Mas se depois da morte ele recebe de novo a vida e, mais ainda, lhe é dado uma vida melhor, então, esta, já não é mais morte, mas um sono[9]”.
Todas estas formas de explicar o sentido da morte de Cristo são verdadeiras, mas não nos dão a explicação mais profunda. Essa deve ser buscada naquilo que, com a sua morte, Jesus veio colocar na condição humana, mais do que naquilo que ele veio tirar; deve ser buscada no amor de Deus, não no pecado do homem. Se Jesus sofre e morre de uma morte violenta infligida-lhe por ódio, não o faz apenas para pagar no lugar dos homens a sua dívida impagável (a dívida de dez mil talentos, na parábola, é perdoada pelo rei!); morre crucificado para que o sofrimento e a morte dos seres humanos  sejam habitados pelo amor!
O homem havia se condenado sozinho a uma morte absurda e eis que entrando nessa morte ele descobre que ela está repleta do amor de Deus. O amor não pôde  privar-se da morte, por causa da liberdade do ser humano: o amor de Deus não pode eliminar com um passe de mágica a trágica realidade do mal e da morte. O seu amor é forçado a deixar que o sofrimento e a morte pronunciem a sua palavra. Mas, dado que o amor penetrou na morte e a encheu da divina presença, é o amor que agora pronuncia a última palavra…

4. O que mudou da morte

Portanto, com Jesus, o que foi que mudou sobre a morte? Nada e tudo! Nada para a razão, tudo para a fé. Não mudou a necessidade de entrar na tumba, mas foi dada a oportunidade de sair dela. É o que ilustra poderosamente o ícone ortodoxo da Ressurreição, do qual vemos uma interpretação moderna na parede esquerda desta capela. O Ressuscitado desce aos abismos e arrasta para fora consigo Adão e Eva e atrás deles todos aqueles que se agarram a ele, nos abismos deste mundo.
Isto explica a atitude paradoxal do crente perante a morte, tão semelhante ao de todos os demais e tão diferente. Uma atitude feita de tristeza, medo, horror, porque sabe que deve descer naquele abismo escuro; mas também de esperança porque sabe que pode sair dele. “Se nos entristece a certeza de ter de morrer – diz o prefácio dos defuntos – nos consola a esperança da imortalidade futura”. Para os fiéis de Tessalônica, afligidos pela morte de alguns deles, São Paulo escrevia:
“Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. De fato, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos também que Deus, por meio de Jesus, há de levar consigo aqueles que adormeceram” (1 Tes 4, 13-14).
Não lhes pede que não se aflijam pela morte, mas de sê-lo “como os outros”, como os não-crentes. A morte não é para o crente o fim da vida, mas o início daquela verdadeira; não é um salto no vazio, mas um salto na eternidade. Ela é um nascimento e um batismo. É um nascimento, porque somente então começa a vida verdadeira, aquela que não se destina à morte, mas dura para sempre. Por isso a Igreja não celebra a festa dos santos no dia do seu nascimento terreno, mas no dia do seu nascimento ao céu, o seu “dies natalis”. Entre a vida de fé no tempo e a vida eterna há uma relação análoga àquela que existe entre a vida do embrião no seio materno e aquela da criança, uma vez nascida. Escreve o Cabasilas:
“Este mundo carrega em gestação o homem interior, novo, criado segundo Deus, para que ele, aqui plasmado, modelado e tornado perfeito, não seja gerado àquele mundo perfeito que não envelhece. Da mesma forma que o embrião que, enquanto está na existência tenebrosa e fluida, a natureza prepara para a vida na luz, assim é com os santos[10]”.
A morte é também um batismo. Assim Jesus chama a sua própria morte: “Há um batismo com que eu devo ser batizado” (Lc 12,50). São Paulo fala do batismo como de um ser “batizados na morte de Cristo” (Rm 6,4). Nos tempos antigos, no momento do batismo a pessoa era mergulhada totalmente na água; todos os pecados e todo o homem velho ficavam sepultados na água e saia dela uma nova criatura, simbolizada pela túnica branca na qual era revestida. Assim acontece na morte: morre a lagarta, nasce a borboleta. Deus “enxugará toda lágrima de seus olhos, e não haverá mais a morte, nem pranto, nem lamentação, nem angústia, porque as coisas de antes passaram” (Ap 21,4). Tudo sepultado para sempre.
Durante vários séculos, especialmente a partir do século XVII, um aspecto importante da ascese católica consistia na “preparação para a morte”, isto é, em meditar sobre a morte, descrevendo visualmente as várias fases e o seu avanço inexorável da periferia do corpo para o coração. Quase todas as imagens de santos pintadas neste período mostra-os com um crânio ao lado, também Francisco de Assis que havia chamado a morte de “irmã”.
Uma das atrações turísticas de Roma até hoje é o cemitério dos Capuchinhos de Via Veneto. Não se pode negar que tudo isso ainda pode ser uma chamada útil para uma época tão secularizada e despreocupada como a nossa; especialmente se lemos como um aviso dirigido a quem vê o escrito que fica em um dos esqueletos: “Aquilo que tu es, eu fui; aquilo que eu sou, tu serás”.
Tudo isso deu pé para que alguém diga que o cristianimo cresce com o medo da morte. Mas é um erro terrível. O cristianismo, nós vimos, não é feito para aumentar o medo da morte, mas para removê-lo; Cristo, diz a Carta aos Hebreus, veio “para libertar aqueles que, com medo da morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a vida” (Hb 2,15). O cristianismo não cresce com o pensamento de nossa própria morte, mas com o pensamento da morte de Cristo!
Por isso, mais eficaz que meditar sobre a nossa morte, é meditar sobre a paixão e morte de Jesus e devemos dizer, por honra às gerações que nos precederam, que tal meditação era também o pão de cada dia na espiritualidade dos séculos recordados. Essa é uma meditação que suscita comoção e gratidão, não angústia; nos faz exclamar, como o apóstolo Paulo: “Me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20).
Um “piedoso exercício” que eu gostaria de recomendar a todos durante a Quaresma é o de tomar em mãos um Evangelho e ler por conta própria, com calma e na íntegra, a narração da paixão. Basta menos de meia hora. Conheci uma mulher intelectual que se professava ateia. Um dia caiu-lhe em cima uma daquelas notícias que deixam uma pessoa meio morta: a sua filha de dezesseis anos tem um tumor nos ossos. É operada. A moça volta da sala de operação martirizada, com tubos, sondas e catéteres por todos os lados. Sofre terrivelmente, geme e não quer ouvir nenhuma palavra de conforto.
A mãe, conhecendo a sua piedade e religiosidade, pensando em agradá-la, lhe diz: “Gostarias que eu te lesse algo do Evangelho?”. “Sim, mamãe!”. “O quê?”. “Leia-me a paixão”. Ela, que nunca havia lido um Evangelho, correu para comprar um dos capelães; sentou-se ao lado da cama e começou a ler. Depois de um tempo a filha adormeceu, mas ela continua, na penumbra, a ler em silêncio até o fim. “A filha adormecia – dirá ela própria no livro escrito depois da morte da filha –, e a mãe acordava!”. Acordava do seu ateísmo. A leitura da paixão de Cristo havia mudado a sua vida para sempre[11].
Concluamos com a simples, mas pungente oração da liturgia: “Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum”. “Te adoramos, Oh Cristo, e te bendizemos, porque pela tua santa cruz redemistes o mundo”.

Fr. Raniero Cantalamessa,
pregador da Casa Pontifícia
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[1] S. Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios, 17.
[2] S. Agostinho, Epistola 55,1,2 (CSEL, 34,1, p.170).
[3] Cf. S. Agostinho, Sermo Guelf. 12, 3 (Misc. Ag. I, p. 482 s.).
[4] S. Agostinho, Confissões I, 6, 7.
[5] Cf. M. Heidegger, Essere e Tempo, § 51, Longanesi, Milano 1976, p. 308 s.
[6] Orácio, Odi, III, 30,1.6.
[7] Melitão de Sardes, Sobre a Páscoa, 66 (SCh 123, p. 96).
[8] S. Agostinho, Comentário aos Salmos, 120,6)
[9] S. João Crisóstomo, In Haebr, hom. 17,2 (PG 63, 129).
[10] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 1-2, edição de U. Neri, UTET, Turim 1971, 65-67.
[11] Cf. Rosanna Garofalo, Sopra le ali dell’aquila, Ancora, Milão 1993.
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Comunidade Shalom / News Va.
Tradução de Thácio Siqueira