Cidade do Vaticano (RV) - O
Papa Francisco e a Cúria Romana ouviram, nesta sexta-feira (19/02), na
Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, a primeira pregação da Quaresma
feita pelo frei capuchinho Raniero Cantalamessa.
Na
pregação intitulada “A adoração em Espírito e verdade. Reflexão sobre a
Constituição Sacrosanctum Concilium” o religioso frisou que após o
Concílio Vaticano II houve um despertar do Espírito Santo. “Ele não é
mais ‘o desconhecido’ na Trindade. A Igreja tornou-se mais consciente de
sua presença e de sua ação”, disse.
O papel do Espírito Santo
Segundo o religioso, “se há uma área em que a teologia e a vida da
Igreja Católica foi enriquecida nestes 50 anos de pós-concílio, é
certamente a relacionada ao Espírito Santo”, mas ressalta que “existem
vazios e lacunas a serem preenchidos, em especial, sobre o papel do
Espírito Santo. Já tomava nota desta necessidade São João Paulo II,
quando, por ocasião do XVI centenário, em 1981, do concílio ecumênico de
Constantinopla, escrevia em sua Carta Apostólica, a seguinte
afirmação”:
"Todo o trabalho de renovação da Igreja, que o Concílio Vaticano II
tão providencialmente propôs e iniciou [...] não pode ser realizado a
não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda da sua luz e do seu poder
".
A Constituição conciliar Sacrosanctum concilium, sobre a Sagrada
Liturgia, “nasce da necessidade, sentida por um longo tempo e por
muitos, de uma renovação das formas e ritos da liturgia católica. A
partir deste ponto de vista, os seus frutos foram muitos e, no conjunto,
benéficos para a Igreja”.
Espírito, protagonista escondido
Segundo Cantalamessa, o Espírito Santo permanece ainda um pouco
escondido em relação às Pessoas da Santíssima Trindade. Um problema
encontrado no texto conciliar sobre a renovação litúrgica:
“Toda celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do
seu Corpo que é a Igreja, ação sagrada por excelência, cuja eficácia,
com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra
ação da Igreja ”.
“Nós indivíduos ou atores da liturgia, hoje, somos capazes de
perceber uma lacuna nesta descrição”, disse o frei ao Papa e à Cúria
Romana. “Os protagonistas aqui realçados são dois: Cristo e a Igreja.
Falta alguma alusão ao lugar do Espírito Santo. Também no resto da
Constituição, o Espírito Santo nunca é sujeito de um discurso direto, só
nomeado aqui e ali, e sempre oblíquo.”
A liturgia como obra do Espírito Santo
“Se a liturgia cristã é o exercício da função sacerdotal de Jesus
Cristo, a melhor maneira de descobrir a sua natureza, é ver como Jesus
exerceu a sua função sacerdotal em sua vida e em sua morte. A
tarefa do sacerdote é oferecer ‘orações e sacrifícios’ a Deus. Agora
sabemos que era o Espírito Santo que colocava no coração do Verbo feito
carne o grito “Abba”! que encerra toda a sua oração. Lucas observa
explicitamente quando escreve: "Naquela mesma hora Jesus exultou de
alegria no Espírito Santo e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e
da terra...". A própria oferta do seu corpo em sacrifício na cruz
aconteceu, segundo a Carta aos Hebreus, “em um Espírito eterno”, isto é,
por um impulso do Espírito Santo. O silêncio sobre o Espírito Santo, inevitavelmente, atenua o caráter trinitário da liturgia.
Cantalamessa deu algumas “orientações
práticas para o nosso modo de viver a liturgia e fazer que com ela
execute uma das suas principais tarefas, que é a santificação das
almas”.
Espírito e oração de adoração
“O Espírito Santo não autoriza a inventar novas e arbitrárias formas
de liturgia ou modificar de própria iniciativa aquelas existentes. Ele é
o único, no entanto, que renova e dá vida a todas as expressões da
liturgia”, disse ele.
“O Espírito Santo vivifica especialmente a oração de adoração que é o
coração de toda oração litúrgica. A sua peculiaridade deriva do fato de
que é o único sentimento que podemos alimentar somente e exclusivamente
pelas pessoas divinas”.
Espírito e oração de intercessão
“O Espírito Santo intercede por nós e nos ensina a interceder pelos
outros. A intercessão é uma componente essencial da oração litúrgica. Em
toda a sua oração, a Igreja não faz outra coisa a não ser interceder:
por si mesma e pelo mundo, pelos justos e pelos pecadores, pelos vivos e
pelos mortos. Também esta é uma oração que o Espírito Santo quer animar
e confirmar”.
“A oração de intercessão é, portanto, agradável a Deus, porque é
livre de egoísmo, reflete mais de perto a gratuidade divina e está de
acordo com a vontade de Deus, que quer que todos os homens sejam
salvos”, concluiu Cantalamessa. (MJ)
A seguir, a íntegra da pregação do frei capuchinho.
Pe. Raniero Cantalamessa, OFM Cap
Primeira Pregação da Quaresma
A ADORAÇÃO EM ESPÍRITO E VERDADE
Reflexão sobre a Constituição Sacrosanctum Concilium
1. O Concílio Vaticano II: um afluente, não o rio
Nessas meditações quaresmais eu gostaria de continuar a reflexão
sobre outros grandes documentos do Vaticano II, depois de meditar no
Advento, na Lumen Gentium. Mas creio que é útil fazer uma premissa. O
Vaticano II é um afluente, não é o rio. Em seu famoso trabalho sobre "O
Desenvolvimento da Doutrina Cristã", o beato Cardeal Newman declarou
enfaticamente que parar a tradição em um ponto do seu curso, mesmo sendo
um concílio ecumênico, seria torna-la uma morta tradição e não uma
“tradição viva”. A tradição é como uma música. O que seria de uma
melodia que parasse numa nota, repetindo-a ad infinitum? Isso acontece
com um disco que arranha e sabemos o efeito que produz.
São João XXIII queria que o Concílio fosse para a Igreja “como um
novo Pentecostes". Em um ponto, pelo menos, essa oração foi ouvida. Após
o Concílio houve um despertar do Espírito Santo. Ele não é mais “o
desconhecido” na Trindade. A Igreja tornou-se mais consciente de sua
presença e de sua ação. Na homilia da Missa crismal da Quinta-feira
Santa de 2012, o Papa Bento XVI afirmava:
"Quem olha para a história da época pós-conciliar é capaz de
reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação, que frequentemente
assumiu formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que torna
quase palpável a vivacidade inesgotável da Santa Igreja, a presença e a
ação eficaz do Espírito Santo".
Isso não significa que nós podemos desprezar os textos do Concílio ou
ir além deles; significa reler o Concílio à luz dos seus próprios
frutos. Que os concílios ecumênicos possam ter efeitos não compreendidos
no momento, por aqueles que fizeram parte deles, é uma verdade
evidenciada pelo próprio cardeal Newman sobre o Vaticano I[1], porém
testemunhada mais vezes na história. O concílio ecumênico de Éfeso do
431, com a definição de Maria como Theotokos, Mãe de Deus, procurava
afirmar a unidade da pessoa de Cristo, não aumentar o culto à Virgem,
mas, de fato, o seu fruto mais evidente foi precisamente este último.
Se há uma área em que a teologia e a vida da Igreja Católica foi
enriquecida nestes 50 anos de pós-concílio, é certamente a relacionada
ao Espírito Santo. Em todas as principais denominações cristãs,
estabeleceu-se nesses últimos tempos, aquilo que, com uma expressão
cunhada por Karl Barth, foi chamada de “a Teologia do Terceiro artigo”. A
teologia do terceiro artigo é aquela que não termina com o artigo sobre
o Espírito Santo, mas começa com ele; que leva em conta a ordem com que
se formou a fé cristã e o seu credo, e não só o seu produto final. Foi,
de fato, à luz do Espírito Santo que os apóstolos descobriram quem era
realmente Jesus e a sua revelação sobre o Pai. O credo atual da Igreja é
perfeito e ninguém sequer sonha em muda-lo, porém, ele reflete o
produto final, o último estágio alcançado pela fé, não o caminho através
do qual se chega a isso, enquanto que, em vista de uma renovada
evangelização, é vital para nós conhecer também o caminho por meio do
qual se chega à fé, não só a sua codificação definitiva que proclamamos
no credo de memória.
A esta luz aparece claramente as implicações de determinadas
afirmações do concílio, mas aparecem também os vazios e lacunas a serem
preenchidos, em especial, precisamente sobre o papel do Espírito Santo.
Já tomava nota desta necessidade São João Paulo II, quando, por ocasião
do XVI centenário do concílio ecumênico de Constantinopla, em 1981,
escrevia em sua Carta Apostólica, a seguinte afirmação:
"Todo o trabalho de renovação da Igreja, que o Concílio Vaticano II
tão providencialmente propôs e iniciou [...] não pode ser realizado a
não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda da sua luz e do seu
poder[2]".
2. O lugar do Espírito Santo na liturgia
Esta premissa geral é particularmente útil ao lidar com o tema da
liturgia, a Sacrosanctum concilium. O texto nasce da necessidade,
sentida por um longo tempo e por muitos, de uma renovação das formas e
ritos da liturgia católica. A partir deste ponto de vista, os seus
frutos foram muitos e, no conjunto, benéficos para a Igreja. Menos
advertida era, naquele momento, a necessidade de debruçar-se sobre
aquilo que, seguindo Romano Guardini, geralmente chama-se “o espírito da
liturgia[3]”, e que - no sentido que vou explicar - eu chamaria mais de
“a liturgia do Espírito” (Espírito com letra maiúscula!).
Fies à intenção declarada destas nossas meditações de valorizar
alguns aspectos mais espirituais e interiores dos textos conciliares, é
precisamente neste ponto que eu gostaria de refletir. A SC dedica a isso
só um curto texto inicial, fruto do debate que precedeu a redação final
da constituição[4]:
“Em tão grande obra, que permite que Deus seja perfeitamente
glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa sempre a si a
Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio
dele rende culto ao Eterno Pai. Com razão se considera a Liturgia como o
exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis
significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens;
nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo - cabeça e membros - presta a
Deus o culto público integral. Portanto, qualquer celebração litúrgica
é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, ação
sagrada par excelência, cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo
grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja[5]”.
É nos indivíduos, ou nos "atores" da liturgia que hoje somos capazes
de perceber uma lacuna nesta descrição. Os protagonistas aqui realçados
são dois: Cristo e a Igreja. Falta qualquer alusão ao lugar do Espírito
Santo. Também no resto da Constituição, o Espírito Santo nunca é sujeito
de um discurso direto, só nomeado aqui e ali, e sempre “oblíquo”.
O Apocalipse nos diz a ordem e o número completo dos atores
litúrgicos quando resume o culto cristão na frase: "O Espírito e a
Esposa dizem (a Cristo, o Senhor), Vem!" (Ap 22, 17). Mas Jesus já havia
manifestado perfeitamente a natureza e a novidade do culto da Nova
Aliança no diálogo com a Samaritana: "Mas vem a hora, e já chegou, em
que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade,
e são esses adoradores que o Pai deseja". (Jo 4, 23).
A expressão "Espírito e Verdade", à luz do vocabulário joanino, só
pode significar duas coisas: ou "o Espírito de verdade", ou seja, o
Espírito Santo (Jo 14, 17; 16,13) ou o Espírito de Cristo, que é a
verdade (Jo 14, 6). Uma coisa é certa: não tem nada a ver com a
explicação subjetiva, cara a idealistas e românticos, de que "espírito e
verdade", indicariam a interioridade escondida do homem, em oposição a
qualquer culto externo e visível. Não se trata só apenas da passagem do
exterior para o interior, mas da passagem do humano para o divino.
Se a liturgia cristã é "o exercício da função sacerdotal de Jesus
Cristo", a melhor maneira de descobrir a sua natureza, é ver como Jesus
exerceu a sua função sacerdotal em sua vida e em sua morte. A tarefa do
sacerdote é oferecer "orações e sacrifícios" a Deus (cf. Hb 5,1; 8,3).
Agora sabemos que era o Espírito Santo que colocava no coração do Verbo
feito carne o grito “Abba”! que encerra toda a sua oração. Lucas observa
explicitamente quando escreve: "Naquela mesma hora Jesus exultou de
alegria no Espírito Santo e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e
da terra..." (cf. Lc 10, 21). A própria oferta do seu corpo em
sacrifício na cruz aconteceu, segundo a Carta aos Hebreus, “em um
Espírito eterno” (Hb 9, 14), isto é, por um impulso do Espírito Santo.
São Basilio tem um texto esclarecedor.
" O caminho do conhecimento de Deus procede do único Espírito,
através do único Filho, até o único Pai; inversamente, a bondade
natural, a santificação segundo a natureza, a dignidade real, se
difundem do Pai, por meio do Unigênito, até o Espírito[6]”.
Em outras palavras, a ordem da criação, ou da saída das criaturas de
Deus, parte do Pai, passa através do Filho e chega a nós no Espírito
Santo. A ordem do conhecimento ou do nosso retorno a Deus, do qual a
liturgia é a expressão mais alta, segue o caminho oposto: parte do
Espírito, passa através do Filho e termina no Pai. Essa visão
descendente e ascendente da missão do Espírito Santo está presente
também no mundo latino. O beato Isaac de Stella (sec. XII), expressa em
termos muito próximos aos de Basílio:
"Como as coisas divinas desceram a nós pelo Pai, pelo Filho e o
Espírito Santo, ou no Espírito Santo, então, as coisas humanas sobem ao
Pai por meio do Filho, e [no] Espírito Santo[7]".
Não se trata, como podemos ver, de ser, por assim dizer, o torcedor
de uma ou de outra das três pessoas da Trindade, mas de salvaguardar o
dinamismo trinitário da liturgia. O silêncio sobre o Espírito Santo,
inevitavelmente, atenua o caráter trinitário da liturgia. Por isso
parece-me particularmente oportuno a chamada que São João Paulo II fazia
na Novo Millennio Ineunte:
"Obra do Espírito Santo em nós, a oração abre-nos, por Cristo e em
Cristo, à contemplação do rosto do Pai. Aprender esta lógica trinitária
da oração cristã, vivendo-a plenamente sobretudo na liturgia, meta e
fonte da vida eclesial, mas também na experiência pessoal, é o segredo
dum cristianismo verdadeiramente vital, sem motivos para temer o futuro
porque volta continuamente às fontes e aí se regenera[8]".
3. A adoração "no espírito"
Vamos tentar tirar, a partir dessas premissas, algumas orientações
práticas para o nosso modo de viver a liturgia e fazer que ela execute
uma das suas principais tarefas, que é a santificação das almas. O
Espírito Santo não autoriza inventar novas e arbitrárias formas de
liturgia ou modificar de própria iniciativa aquelas existentes (tarefa
que cabe a hierarquia). Ele é o único, no entanto, que renova e dá vida a
todas as expressões da liturgia. Em outras palavras, o Espírito Santo
não faz coisas novas, mas faz novas as coisas! A palavra de Jesus
repetida por Paulo: "É o Espírito que dá vida" (Jo 6, 63; 2 Cor 3, 6)
aplica-se principalmente à liturgia.
O apóstolo exortava os fiéis a orar "no Espírito" (Ef 6:18; cf.
também Judas 20). O que significa orar no Espírito? Significa permitir
que Jesus continue a exercer o próprio ofício sacerdotal no seu corpo
que é a Igreja. A oração cristã se torna uma extensão no corpo da oração
do chefe. É conhecida a afirmação de Santo Agostinho:
"Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é aquele que reza por nós,
reza em nós e que é rezado por nós. Reza por nós como nosso sacerdote,
reza em nós como nosso chefe, é rezado por nós como nosso Deus.
Reconheçamos, portanto, nele, a nossa voz, e em nós a sua voz[9]”.
A esta luz, a liturgia nos aparece como o "Opus Dei", a “obra de
Deus”, não só porque tem Deus por objeto, mas também porque tem Deus
como sujeito; Deus não é só rezado por nós, mas reza em nós. O mesmo
grito, Abbá! que o Espírito, vindo a nós, dirige ao Pai (Gl 4, 6; Rm 8,
15) mostra que quem reza em nós, pelo Espírito, é Jesus, o Filho único
de Deus. Por si mesmo, de fato, o Espírito Santo não poderia dirigir-se a
Deus, chamando-o Abbá, Pai, porque ele não é “gerado”, mas somente
“procede” do Pai. Se pode fazê-lo é porque é o Espírito de Cristo que
continua em nós a sua oração filial.
E, especialmente, quando a oração torna-se cansaço e luta é que se
descobre toda a importância do Espírito Santo para a nossa vida de
oração. O Espírito se torna, então, a força da nossa oração “fraca”, a
luz da nossa oração apagada; em uma palavra, a alma da nossa oração.
Verdadeiramente, ele “irriga o que é árido”, como dizemos na sequência
em sua honra.
Tudo isso acontece por fé. Basta eu dizer ou pensar: “Pai, tu me
deste o Espírito de Jesus; formando, portanto, "um só Espírito" com
Jesus, eu recito este Salmo, celebro esta santa missa, ou estou
simplesmente em silêncio, aqui em sua presença. Quero dar-te aquela
glória e aquela alegria que te daria Jesus, se fosse ele a orar ainda da
terra”.
O Espírito Santo vivifica especialmente a oração de adoração que é o
coração de toda oração litúrgica. A sua peculiaridade deriva do fato de
que é o único sentimento que podemos alimentar única e exclusivamente
para com as pessoas divinas. É o que distingue o culto de latria do
culto de dulia reservado aos santos e de hiperdulia reservado à Santa
Virgem. Nós veneramos Nossa Senhora, não a adoramos, ao contrário do que
algumas pessoas pensam dos católicos.
A adoração cristã é também trinitária. É trinitária no seu
desenvolvimento, porque é adoração feita “ao Pai, por meio do Filho, no
Espírito Santo”, e é trinitária no seu fim, porque é adoração feita
junto “ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”.
Na espiritualidade Ocidental, quem desenvolveu mais a fundo o tema da
adoração foi o cardeal Pierre de Bérulle (1575-1629). Para ele, Cristo é
o perfeito adorador do Pai, que precisa unir-se para adorar a Deus com
uma adoração de valor infinito[10]. Escreve:
"Desde toda a eternidade, havia um Deus infinitamente adorável, mas
não havia ainda um adorador infinito; [...] Tu es agora, oh Jesus, este
adorador, este homem, este servidor infinito por potência, qualidade e
dignidade, para satisfazer plenamente este dever e fazer esta homenagem
divina[11]”.
Se existe uma lacuna nesta visão, que também deu à Igreja belos
frutos e moldou a espiritualidade francesa por séculos, essa é a mesma
que temos colocado em destaque na constituição do Vaticano II: a pouca
atenção dada ao papel do Espírito Santo. Do Verbo encarnado, o discurso
de Bérulle muda para a "corte real" que o segue e o acompanha: a Santa
Virgem, João Batista, os apóstolos, os santos; falta o reconhecimento do
papel essencial do Espírito Santo.
Em qualquer movimento de retorno a Deus, lembrou-nos São Basílio,
tudo parte do Espírito, passa através do Filho e termina no Pai. Não
basta, portanto, recordar de vez em quando que existe também o Espírito
Santo; é necessário reconhecer-lhe o papel de elo essencial, tanto no
caminho de saída das criaturas de Deus quanto no de retorno das
criaturas a Deus. O abismo existente entre nós e o Jesus da história
está cheio do Espírito Santo. Sem ele, tudo na liturgia é somente
memória; com ele, tudo é também presença.
No livro do Êxodo, lemos que, no Sinai, Deus indicou para Moisés uma
cavidade na rocha, e escondido no interior dela ele poderia contemplar a
sua glória sem morrer (cf. Ex 33, 21). Comentando este passo, o próprio
São Basílio escreve:
"Qual é hoje, para nós cristãos, aquela cavidade, aquele lugar, onde
podemos refugiar-nos para contemplar e adorar a Deus? É o Espírito
Santo! De quem aprendemos? Do próprio Jesus que disse: Os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em Espírito e verdade![12]”
Que perspectivas, que beleza, que poder, que atração tudo isso dá ao
ideal da adoração cristã! Quem não sente a necessidade de esconder-se de
vez em quando, no vórtice rodopiante do mundo, naquela cavidade
espiritual para contemplar a Deus e adorá-lo como Moisés?
4. Oração de intercessão
Junto com a adoração, um componente essencial da oração litúrgica é a
intercessão. Em toda a sua oração, a Igreja não faz mais do que
interceder: por si mesma e pelo mundo, pelos justos e pelos pecadores,
pelos vivos e pelos mortos. Também esta é uma oração que o Espírito
Santo quer animar e confirmar. Dele São Paulo escreve:
"Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não
sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo
intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que perscruta os
corações sabe o que deseja o Espírito, o qual intercede pelos santos,
segundo Deus. "(Rm 8, 26-27).
O Espírito Santo intercede por nós e nos ensina a interceder, por sua
vez, pelos outros. Fazer oração de intercessão significa unir-se, na
fé, a Cristo ressuscitado que vive em um estado constante de intercessão
pelo mundo (cf. Rm 8, 34; Heb 7, 25; 1 João 2, 1). Na grande oração com
a qual concluiu a sua vida terrena, Jesus nos oferece o exemplo mais
sublime de intercessão.
"Rogo por eles, por aqueles que me deste. [...] Guarde-os no teu
nome. Não peço que os tires do mundo, mas que os pretejas do mal.
Consagra-os na verdade. [...] Não rogo somente por estes, mas também por
aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim... "(Jo 17, 9ss).
Do Servo Sofredor se diz, em Isaías, que Deus lhe dá em prêmio as
multidões “porque carregava os pecados de muitos e intercedia pelos
pecadores” (Is 53, 12): Essa profecia encontrou o seu perfeito
cumprimento em Jesus que, na cruz, intercede pelos seus executores (cf.
Lc 23, 34).
A eficácia da oração de intercessão não depende de “muitas palavras”
(cf. Mt 6, 7), mas do grau de união que se consegue ter com as
disposições filiais de Cristo. Mais do que as palavras de intercessão,
deve-se, pelo contrário, multiplicar os intercessores, ou seja, invocar a
proteção de Maria e dos Santos. Na festa de Todos os Santos, a Igreja
pede a Deus para ser ouvida “pela abundância dos intercessores”
(“multiplicatis intercessoribus”).
Multiplicam-se os intercessores até quando se rezam uns pelos outros. Diz Santo Ambrósio:
"Se você orar por você, só você vai orar por você, e se cada um só
reza por si, a graça que alcança será menor com relação àquele que
intercede pelos outros. Ora, dado que os indivíduos rezam por todos,
acontece também que todos rezam pelos indivíduos. Portanto, para
concluir, se você reza somente por você, você é o único que reza por
você. Mas se, pelo contrário, você reza por todos, todos rezarão por
você, estando você no meio daqueles todos[13]”.
A oração de intercessão é, portanto, agradável a Deus, porque é mais
livre de egoísmo, reflete mais de perto a gratuidade divina e está de
acordo com a vontade de Deus, que quer “que todos os homens sejam
salvos” (cf. 1 Tm 2, 4). Deus é como um pai compassivo que tem o dever
de punir, mas que tenta todas as desculpas possíveis para não ter que
fazê-lo e é feliz, em seu coração, quando os irmãos do culpado conseguem
detê-lo dessa punição.
Se faltam esses braços fraternos estendidos a Deus, Ele próprio
reclama disso na Escritura: “Ele viu que não havia ninguém,
maravilhou-se porque ninguém intercedia” (Is 59, 16). Ezequiel
transmite-nos esta lamentação de Deus: "Busquei entre eles um homem que
levantasse um muro e se colocasse na brecha perante mim, para defender o
país, para que eu não o devastasse, porém não o encontrei” (Ez 22, 30).
A palavra de Deus enfatiza o extraordinário poder que tem junto a
Deus, pela sua própria disposição, a oração daqueles que Ele colocou no
comando do seu povo. Diz-se em um salmo que Deus havia decidido
exterminar o seu povo por causa do bezerro de ouro, “se Moisés não
tivesse se interposto diante dele para evitar a sua ira” (cf. Sl 106,
23).
Aos pastores e guias espirituais ouso dizer: quando, na oração, vocês
sentirem que Deus está zangado com o povo que vos foi confiado, não
tomem rapidamente o partido de Deus, mas do povo! Assim fez Moisés, até o
ponto de protestar e de querer ser riscado, ele próprio, com eles, do
livro da vida (cf. Ex 32, 32), e a Bíblia deixa claro que isto era
justamente o que Deus queria, porque ele "abandonou a intenção de
prejudicar o seu povo". Quando se está diante do povo, então, devemos
dar razão, com toda a força, a Deus. Quando Moisés, pouco depois,
encontrou-se na frente do povo, então se acendeu a sua ira: esmagou o
bezerro de ouro, dispersou o pó na água e fez as pessoas engolirem a
água (cf. Ex 32: 19ss). Somente aquele que defendeu o povo diante de
Deus e carregou o peso do seu pecado, tem o direito – e terá a coragem
–, depois, de brigar com o próprio povo, em defesa de Deus, como fez
Moisés.
Terminemos proclamando juntos o texto que melhor reflete o lugar do
Espírito Santo e a orientação trinitária da liturgia, que é a doxologia
final do cânon romano: "Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós, Deus
Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e glória,
agora e para sempre. Amém".
[Tradução Thácio Siqueira, ZENIT]
[1] Cf. I. Ker, Newman, the Councils, and Vatican II, in “Communio”. International Catholic Review, 2001, pp. 708-728.
[2] João Paulo II, Carta apostólica A Concilio Constantinopolitano I, 25 marzo 1981, in AAS 73 (1981) 515-527.
[3] R.Guardini, Vom Geist del Liturgie, 23 ed., Grünewald 2013; J.
Ratzinger, Der Geist del Liturgie, Herder, Freiburg, i.b., 2000.
[4] Storia del concilio Vaticano II, organizado por G. Alberigo, vol. III, Bologna 1999, p 245 s.
[5] SC, 7.
[6] S. Basílio de Cesareia, De Spiritu Sancto XVIII, 47 (PG 32 , 153).
[7] B. Isacc de Stella, De anima (PL 194, 1888).
[8] NMI, 32.
[9] S. Agostinho, Enarrationes in Psalmos 85, 1: CCL 39, p. 1176.
[10] M. Dupuy, Bérulle, une spiritualité de l’adoration, Paris 1964.
[11] P. de Bérulle, Discours de l'Etat et des grandeurs de Jésus (1623), ed. Paris 1986, Discours II, 12.
[12] S. Basílio, De Spiritu Sancto, XXVI,62 (PG 32, 181 s.).
[13] S. Ambrósio, De Cain et Abel, I, 39 (CSEL 32, p. 372).
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