25 outubro, 2016

Homilia na Solenidade da Dedicação da Sé



«Porque a minha Casa será chamada Casa de Oração para todos os povos» (Is 56)

Irmãos caríssimos

A profecia que ouvimos a Isaías, falando por Deus, ganha hoje e aqui particular relevo e premência. Era o desígnio para o templo antigo, universalmente aberto. Para nós, cristãos, vendo em Cristo o novo templo onde nos podemos encontrar a todos, só pode e deve ser um apelo para que assim seja, nas atuais circunstâncias da nossa cidade e além dela.
Há oito séculos e meio consagrou-se esta sé, retomada então e depois da conquista de D. Afonso Henriques. “Retomada”, digo, pois guardamos vestígios de culto cristão mais antigo. É bem possível que a sé de Lisboa, enquanto igreja do bispo local, já por aqui fosse em tempos romanos e visigóticos. O destino posterior, na época árabe, não lhe apagaria a memória, sempre mantida por cristãos; ainda que pudessem ter a sé noutro local, até voltar aonde estamos. O passado esvaneceu-se, a herança perdurou.
Podemos também dizer que a dedicação desta igreja ao Deus de nós todos lhe marcou muito especialmente o destino, simbolizando o da cidade inteira. Lisboa, a antiga Olissipo, qual “enseada amena”, sempre acolheu populações diversas, do Mediterrâneo ao Mar do Norte e aos mares todos depois. Era a ponta e a porta ocidental do Continente, chegada ou despedida de tanta gente que sulcava o Mar Oceano. 
Significativamente, o seu primeiro bispo conhecido tivera um nome grego, Potâmio, no longínquo século IV. E o seu primeiro bispo do período português veio de Inglaterra e chamava-se Gilberto. Até ao final do século XV subsistiam, não longe daqui, tanto a judiaria como a mouraria. Numa coabitação em geral pacífica, com algumas aproximações ao cristianismo contempladas nos sínodos diocesanos da altura, no referente à iniciação. 
Chegara entretanto o tempo da expansão portuguesa e das concomitantes missões cristãs. Como lembra o que está escrito no pórtico desta sé, por todo o lado se difundiu o som – o som do Evangelho, que repetidas vagas de missionários levaram de Lisboa aos quatro cantos do mundo. Assim no século XVI com o Padre António Vieira, que nasceu aqui perto. Assim no XVII com São João de Brito, daqui perto também. Assim os que “partem” hoje, com maior ou menor distância, incluindo famílias que se tornam missionárias. E mesmo entre nós uma família cristã, propriamente dita, quase reaparece como novidade…
Levemos muito a sério o que escreveu São João Paulo II sobre as atuais fronteiras da missão: «Em várias partes da Europa, há necessidade do primeiro anúncio do Evangelho: aumenta o número das pessoas não batizadas, seja pela consistente presença de imigrantes que pertencem a outras religiões, seja também porque famílias de tradição cristã não batizaram os filhos […]. Com efeito, a Europa faz parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos, onde, para além duma nova evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização. […] Mesmo no “velho” continente existem extensas áreas sociais e culturais onde se torna necessária uma verdadeira e própria missio ad gentes» (Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, nº 46). São palavras do Papa Wojtyla, de há 13 anos já. São um diagnóstico perfeito da Lisboa atual. 
Na esteira de tantos e tantas nos consagramos hoje, retomando-nos para Deus e de Deus para todos, evangelicamente totais e nem precisando de ir para tão longe. Vivem na nossa cidade cerca de cem povos, em grande variedade de línguas e culturas. Quando repetimos a frase profética – “a minha Casa será chamada Casa de Oração para todos os povos” – ainda melhor verificamos o dia-a-dia desta mesma sé, onde grande parte, senão a maioria, dos que aqui entram é de estrangeiros, especialmente turistas. Digo “turistas”, mas podem ser buscadores de mais – do mais que lhes devemos oferecer, se os acolhermos de pessoa a pessoa, ao modo perfeito de Jesus. Como insistimos no nosso hino sinodal, «longe ou perto, o necessário é mostrar Cristo presente!»

Na verdade, se “missão” significa proporcionar Cristo aos outros, as atuais circunstâncias hão de oferecê-Lo também em nós, na disponibilidade para recebermos quem chega e assim partilharmos os sinais da Sua presença viva. Reciprocando o que Ele disse: «Em qualquer cidade em que entrardes […] curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: “O Reino de Deus já está próximo de vós”» (Lc 10, 8-9). 
Significa também que a primeira “saída” que importa à missão é a saída de nós próprios, dando espaço aos outros. Como que dizendo, aos que chegam hoje à igreja mãe da nossa diocese, o que São Paulo disse aos que primeiros que chegavam: «Já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus» (Ef 2, 19). Mantemos certamente o horizonte universal da missão. Mas de algum modo “partimos” também, quando acolhemos os outros no espaço que esvaziamos de nós próprios, para que inteiramente caibam, ainda melhor e sempre mais. A Igreja “em saída”, como a queremos com o Papa Francisco e a ativamos no caminho sinodal de Lisboa, concretiza-se igualmente assim. Sair de si para dar lugar aos outros, acolhendo-os e prosseguindo com eles rumo à cidade de todos. E, se com o Papa acalentamos “o sonho missionário de chegar a todos”, permitamos também que todos cheguem até nós, para assim crescerem – e nós com eles.   
Numa cidade onde tantos precisam de tanto, material e espiritualmente falando, encontraremos na prática do bem o traço mais profundo do mútuo reconhecimento, como lembra o seguinte passo evangélico, de especial oportunidade agora: «João – um discípulo - tomou a palavra e disse: “Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome e impedimo-lo, porque ele não te segue juntamente connosco”. Jesus disse-lhe: “Não o impeçais, pois quem não é contra vós é por vós”» (Lc 9, 49-50).     

Irmãos caríssimos: Celebrar a dedicação da sé significa consagrá-la ao Deus de todos os que nela entrarem, oferecendo-lhes sinais convincentes da Sua presença viva e vivificante. Para tal, toda a criatividade é pouca e toda a disponibilidade se requer. Importante é fazê-lo, para contribuirmos, nós também, para a concretização duma cidade inclusiva, realmente intercultural e solidária. 
Discípulos de Cristo, ganharemos luz e critério para acolhermos quem quer que chegue. Disto mesmo é sinal a nossa sé, e nós próprios a ativação e o sacramento.       
Sé de Lisboa, 25 de outubro de 2016

+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa

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