Foto: Arlindo Homem / Patriarcado de Lisboa |
Consagrados em Cristo, para o bem de todos
«Casa de oração para todos os povos», assim queria Deus o seu templo na profecia que ouvimos. E assim continua a querê-lo nesta catedral de Lisboa, cuja dedicação celebramos.
Os desejos de Deus fazem a história dos homens, no melhor que ela tem. Resistências humanas atrasam-na infelizmente. Aquela profecia ultrapassava qualquer restrição étnica ou cultural, porque a certeza de um Deus único prometia a universalidade do seu culto.
Profecia a reter ainda agora, quando persistem alegações ditas “religiosas” para alimentar guerras que o não são, nem podiam ser. Quando se absolutizam diferenças em vez de respeitar o único absoluto – que é o Deus de todos para todos.
É uma lição difícil de aprender, porque nós, seres humanos, também não somos simples e resistimos a ser simplificados por Deus, no único sentimento que o define e nos devia definir a nós, o amor universal e autêntico.
E é o que importa, embora sem simplismos. Como insiste o Papa Francisco, a totalidade é poliédrica: una, certamente, mas de muitas faces. Manter estes dois aspetos é da máxima importância para nos respeitarmos distintos, sem nos dividirmos no essencial.
Assim em tudo e na religião principalmente. Bem compreendida, só pode ser fator de comunhão com Deus e entre nós: como uma casa de oração para todos os povos.
Nesta circunstância, convém recordar o que se passou em Lisboa naquele mês de outubro de 1147. Mês que começou árabe e terminou português. Não se tratou propriamente duma “reconquista cristã”. Cristãos já havia na cidade, como há muitos séculos persistia a Igreja local com os seus bispos. Tratou-se de continuar noutro contexto e com outras gentes o que já existia e certamente persistiu. Aos cristãos moçárabes juntaram-se os que vieram e aqui ficaram, portugueses e doutras partes. Ao bispo moçárabe, que foi morto na tomada da cidade, sucedeu um clérigo inglês que vinha na Cruzada e refez-se o quadro eclesial integrando muitos elementos anteriores.
Um historiador atual descreve o que existia até então: «… os moçárabes olissiponenses deviam concentrar-se na sua “catedral”, Santa Maria de Alcamim, situada no arrabalde ocidental. A associação de um orago cristão [Santa Maria] a uma referência microtoponímia islâmica [Alcamim] atesta uma certa simbiose cultural, que se manteve décadas depois de conquistada a cidade, uma vez que Santa Maria de Alcamim só foi substituída pela atual dedicação da igreja a São Cristóvão bem adiantado o século XIII» (Paulo Almeida Fernandes, in Bispos e Arcebispos de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 2018, p. 83).
Se trago isto a uma homilia é por considerar muito importante purificar a memória com os factos realmente sucedidos, sem preconceitos que os deturpem. É certo que esta catedral cuja dedicação celebramos substituiu a moçárabe e se ergueu onde estava uma mesquita. Mas a comunidade cristã de Lisboa continuou, juntando agora os que chegaram, das várias nações que eram.
É muito ilustrativo este outro passo, duma historiadora também recente: «Em 1147, enquanto se lavavam as lajes do chão da nova catedral, para de seguida as polvilhar com areia, varrer e ungir com óleos santos, e enquanto se aspergiam as paredes e o ar com perfumes e óleos santos para limpar, segundo os sete passos do ritual romano, o espaço da antiga mesquita, com as suas sete ordens de colunas e suas respetivas sete abóbadas, da memória dos infiéis que aí tinham vivido e convivido, os habitantes de Lisboa deviam esperar que estes rituais purificadores pudessem realmente consagrar um novo começo» (Maria João Branco, in ibidem, p. 88).
E assim foi. Se ainda captássemos as vozes que aqui mesmo soavam na altura, ouviríamos certamente o protoportuguês dos moçárabes e o dos nortenhos, o inglês, o francês e o alemão dos cruzados, bem como o latim dos clérigos, e talvez algum árabe dos vencidos por convencer. Tudo como então se falava e tudo a relançar o cosmopolitismo que sempre definiu a nossa cidade, ancoradouro ancestral de quem viajasse do Mediterrâneo para o Atlântico Norte e depois para o mundo inteiro; ou de lá viesse, como ainda vem.
Retomo a frase citada: «… os habitantes de Lisboa deviam esperar que estes rituais purificadores pudessem realmente consagrar um novo começo». Retomo-a, porque corresponde a uma novidade que, essa sim, nos deve unir a todos. É a que Jesus Cristo refere no passo evangélico que também escutámos, ultrapassando a materialidade do templo pela personalização do culto. Assim o disse: «Arrasai este templo e Eu o levantarei em três dias». E o evangelista comenta: «Jesus, porém, falava do templo do seu corpo».
Os construtores da nova catedral assinalaram-no, traçando-a como um corpo. A nave cresce desde o pórtico e abre-se em dois braços no transepto, culminando na cabaceira, assim mesmo designada. Configura um “corpo”. O corpo de Cristo, que eclesialmente somos nós, os que aqui estamos, nos integramos e expandimos. Para chegar a todos, para incluir cada um, naquele relacionamento mútuo em que o próprio Cristo se apresenta.
Assim somos e havemos de ser na cidade. E assim há de ser a própria cidade, respeitadora de quem está e acolhedora de quem chega. Também na sua história, corretamente contada, avultarão os momentos de inclusão, mais do que os de exclusão, que infelizmente não faltaram. Valorizemos para o futuro o que se conseguiu apesar de tudo, como o melhor de si própria.
Com uma centena de povos residentes, acolhamos o que cada um transporta de próprio e positivo, para o enriquecimento sociocultural do todo. Cresçamos em humanidade, como a humanização de Deus em Cristo nos impele a crescer. Em cada um e cada uma, venha de onde vier, haverá uma pedra viva do seu templo eterno.
E saibamos traduzir isto mesmo em condições de vida e convivência, mantendo e alargando vizinhanças, garantindo habitação e saúde, educação e bem-estar, incluindo quem chega sem esquecer quem já está e não pode ser sacrificado por ganhos alheios, que redundariam em desumanização de todos. Uma cidade é um corpo vivo de gente convivente e para tal é necessário que quem a visita encontre antes de mais os seus habitantes, onde estão e como gostam de estar. Só assim ganhamos todos, como os órgãos de um corpo, saudáveis no conjunto.
Também neste sentido, celebrar a Dedicação da sé é dedicarmo-nos com ela, personalizando o templo que tanto se alonga como alarga. No coração da sé está o altar em que Cristo se oferece. No coração da cidade estaremos hoje nós, consagrados em Cristo para o bem de todos.
Sé de Lisboa, 25 de outubro de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
«Casa de oração para todos os povos», assim queria Deus o seu templo na profecia que ouvimos. E assim continua a querê-lo nesta catedral de Lisboa, cuja dedicação celebramos.
Os desejos de Deus fazem a história dos homens, no melhor que ela tem. Resistências humanas atrasam-na infelizmente. Aquela profecia ultrapassava qualquer restrição étnica ou cultural, porque a certeza de um Deus único prometia a universalidade do seu culto.
Profecia a reter ainda agora, quando persistem alegações ditas “religiosas” para alimentar guerras que o não são, nem podiam ser. Quando se absolutizam diferenças em vez de respeitar o único absoluto – que é o Deus de todos para todos.
É uma lição difícil de aprender, porque nós, seres humanos, também não somos simples e resistimos a ser simplificados por Deus, no único sentimento que o define e nos devia definir a nós, o amor universal e autêntico.
E é o que importa, embora sem simplismos. Como insiste o Papa Francisco, a totalidade é poliédrica: una, certamente, mas de muitas faces. Manter estes dois aspetos é da máxima importância para nos respeitarmos distintos, sem nos dividirmos no essencial.
Assim em tudo e na religião principalmente. Bem compreendida, só pode ser fator de comunhão com Deus e entre nós: como uma casa de oração para todos os povos.
Nesta circunstância, convém recordar o que se passou em Lisboa naquele mês de outubro de 1147. Mês que começou árabe e terminou português. Não se tratou propriamente duma “reconquista cristã”. Cristãos já havia na cidade, como há muitos séculos persistia a Igreja local com os seus bispos. Tratou-se de continuar noutro contexto e com outras gentes o que já existia e certamente persistiu. Aos cristãos moçárabes juntaram-se os que vieram e aqui ficaram, portugueses e doutras partes. Ao bispo moçárabe, que foi morto na tomada da cidade, sucedeu um clérigo inglês que vinha na Cruzada e refez-se o quadro eclesial integrando muitos elementos anteriores.
Um historiador atual descreve o que existia até então: «… os moçárabes olissiponenses deviam concentrar-se na sua “catedral”, Santa Maria de Alcamim, situada no arrabalde ocidental. A associação de um orago cristão [Santa Maria] a uma referência microtoponímia islâmica [Alcamim] atesta uma certa simbiose cultural, que se manteve décadas depois de conquistada a cidade, uma vez que Santa Maria de Alcamim só foi substituída pela atual dedicação da igreja a São Cristóvão bem adiantado o século XIII» (Paulo Almeida Fernandes, in Bispos e Arcebispos de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 2018, p. 83).
Se trago isto a uma homilia é por considerar muito importante purificar a memória com os factos realmente sucedidos, sem preconceitos que os deturpem. É certo que esta catedral cuja dedicação celebramos substituiu a moçárabe e se ergueu onde estava uma mesquita. Mas a comunidade cristã de Lisboa continuou, juntando agora os que chegaram, das várias nações que eram.
É muito ilustrativo este outro passo, duma historiadora também recente: «Em 1147, enquanto se lavavam as lajes do chão da nova catedral, para de seguida as polvilhar com areia, varrer e ungir com óleos santos, e enquanto se aspergiam as paredes e o ar com perfumes e óleos santos para limpar, segundo os sete passos do ritual romano, o espaço da antiga mesquita, com as suas sete ordens de colunas e suas respetivas sete abóbadas, da memória dos infiéis que aí tinham vivido e convivido, os habitantes de Lisboa deviam esperar que estes rituais purificadores pudessem realmente consagrar um novo começo» (Maria João Branco, in ibidem, p. 88).
E assim foi. Se ainda captássemos as vozes que aqui mesmo soavam na altura, ouviríamos certamente o protoportuguês dos moçárabes e o dos nortenhos, o inglês, o francês e o alemão dos cruzados, bem como o latim dos clérigos, e talvez algum árabe dos vencidos por convencer. Tudo como então se falava e tudo a relançar o cosmopolitismo que sempre definiu a nossa cidade, ancoradouro ancestral de quem viajasse do Mediterrâneo para o Atlântico Norte e depois para o mundo inteiro; ou de lá viesse, como ainda vem.
Retomo a frase citada: «… os habitantes de Lisboa deviam esperar que estes rituais purificadores pudessem realmente consagrar um novo começo». Retomo-a, porque corresponde a uma novidade que, essa sim, nos deve unir a todos. É a que Jesus Cristo refere no passo evangélico que também escutámos, ultrapassando a materialidade do templo pela personalização do culto. Assim o disse: «Arrasai este templo e Eu o levantarei em três dias». E o evangelista comenta: «Jesus, porém, falava do templo do seu corpo».
Os construtores da nova catedral assinalaram-no, traçando-a como um corpo. A nave cresce desde o pórtico e abre-se em dois braços no transepto, culminando na cabaceira, assim mesmo designada. Configura um “corpo”. O corpo de Cristo, que eclesialmente somos nós, os que aqui estamos, nos integramos e expandimos. Para chegar a todos, para incluir cada um, naquele relacionamento mútuo em que o próprio Cristo se apresenta.
Assim somos e havemos de ser na cidade. E assim há de ser a própria cidade, respeitadora de quem está e acolhedora de quem chega. Também na sua história, corretamente contada, avultarão os momentos de inclusão, mais do que os de exclusão, que infelizmente não faltaram. Valorizemos para o futuro o que se conseguiu apesar de tudo, como o melhor de si própria.
Com uma centena de povos residentes, acolhamos o que cada um transporta de próprio e positivo, para o enriquecimento sociocultural do todo. Cresçamos em humanidade, como a humanização de Deus em Cristo nos impele a crescer. Em cada um e cada uma, venha de onde vier, haverá uma pedra viva do seu templo eterno.
E saibamos traduzir isto mesmo em condições de vida e convivência, mantendo e alargando vizinhanças, garantindo habitação e saúde, educação e bem-estar, incluindo quem chega sem esquecer quem já está e não pode ser sacrificado por ganhos alheios, que redundariam em desumanização de todos. Uma cidade é um corpo vivo de gente convivente e para tal é necessário que quem a visita encontre antes de mais os seus habitantes, onde estão e como gostam de estar. Só assim ganhamos todos, como os órgãos de um corpo, saudáveis no conjunto.
Também neste sentido, celebrar a Dedicação da sé é dedicarmo-nos com ela, personalizando o templo que tanto se alonga como alarga. No coração da sé está o altar em que Cristo se oferece. No coração da cidade estaremos hoje nós, consagrados em Cristo para o bem de todos.
Sé de Lisboa, 25 de outubro de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Partriarcado de Lisboa
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