16 outubro, 2019

Papa: rever os critérios da vida para salvar a vida na Terra


"Uma crise global requer uma visão e uma abordagem global, que passam

Num artigo inédito, o Papa Francisco fala da necessidade de pedir e dar o perdão, ações possíveis somente no Espírito Santo, para superar a atual crise ecológica. O texto, do qual o 'Corriere della Sera' publicou uma parte, está contido no livro “Nostra Madre Terra. Una lettura cristiana della sfida dell'ambiente", publicado pela LEV, que reúne os discursos do Papa sobre o cuidado da criação e será lançada no dia 24 de outubro em Itália e em França, com prefácio assinado pelo patriarca Bartolomeu. 

Papa Francisco 

Precisamente porque tudo está interligado (cfr Laudato si' 42; 56) no bem, no amor, precisamente por isto cada falta de amor repercute em tudo. A crise ecológica que estamos a enfrentar é, acima de tudo, um dos efeitos desse olhar doente sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo, sobre o tempo que passa; um olhar doente que não nos faz perceber tudo como um dom oferecido para nos descobrirmos amados.

É este amor autêntico, que às vezes chega a nós de uma maneira inimaginável e inesperada, que nos pede para rever os nossos estilos de vida, os nossos critérios de julgamento, os valores nos quais baseamos as nossas escolhas. De facto, já é sabido que a poluição, mudanças climáticas, desertificação, migrações ambientais, consumo insustentável dos recursos do planeta, acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade, são aspetos inseparáveis ​​da desigualdade social: da crescente concentração do poder e da riqueza nas mãos de poucos e da assim chamada sociedade do  bem-estar, dos loucos gastos militares, da cultura do descarte desperdício e de uma falta de consideração do mundo do ponto de vista das periferias, da falta de proteção das crianças e dos menores, dos idosos vulneráveis ​​e nascituros. 

Soluções puramente ambientais não são suficientes

Um dos grandes riscos de nosso tempo, então, diante da séria ameaça à vida no planeta causada pela crise ecológica, é o de este fenómeno não ser lido como o aspecto de uma crise global, mas de nos limitarmos a procurar - embora necessárias e indispensáveis - soluções puramente ambientais.

Ora, uma crise global requer uma visão e uma abordagem global, que passam antes de tudo por um renascimento espiritual no sentido mais nobre do termo.

Paradoxalmente, as mudanças climáticas poderiam tornar-se uma oportunidade para nos questionar-mo-nos sobre o mistério de ser criado e sobre aquilo pelo qual vale a pena viver. Isto levaria a uma profunda revisão dos nossos modelos culturais e económicos, para um crescimento na justiça e na partilha, na redescoberta do valor de cada pessoa, no empenho para que, quem hoje está à margem, possa ser incluído e aquele que vier amanhã, ainda possa desfrutar do beleza do nosso mundo, que é e continuará a ser um dom oferecido à nossa liberdade e à nossa responsabilidade.

“Nostra Madre Terra. Una lettura cristiana della sfida dell'ambiente" 
  
Tomar consciência de uma cultura que se impõe

A cultura dominante - aquela que respiramos por meio das leituras, encontros, entretenimento, nas mídias etc. - baseia-se na posse: das coisas, do sucesso, da visibilidade, do poder.

Quem tem muito vale muito, é admirado, considerado e exerce alguma forma de poder; enquanto aqueles que têm pouco ou nada, correm o risco de perder até mesmo o próprio rosto, porque desaparece, torna-se um daqueles invisíveis que povoam as nossas cidades, uma daquelas pessoas das quais não nos damos conta ou com quem procuramos não entrar em contacto. Certamente, cada um de nós é, antes de tudo, vítima dessa mentalidade, porque somos de muitas maneiras bombardeados por ela.

Desde pequenos, crescemos num mundo onde uma ideologia mercantil generalizada, que é a verdadeira ideologia e prática da globalização, estimula em nós um individualismo que se torna narcisismo, ganância, ambições elementares, negação do outro ... Portanto, neste nossa situação atual, um comportamento justo e sábio, antes que a acusação ou o julgamento, é antes de tudo o da tomada de consciência. 

Estruturas de pecado

Estamos envolvidos, de facto, em estruturas de pecado (como São João Paulo II a chamou) que produzem o mal, poluem o meio ambiente, ferem e humilham os pobres, favorecem a lógica da posse e do poder, explorando os recursos naturais de maneira exagerada, obrigando populações inteiras a abandonar as suas terras, alimentam o ódio, a violência e a guerra. Trata-se de uma tendência cultural e espiritual que distorce o nosso senso espiritual que vice-versa - em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus - naturalmente nos direciona ao bem, ao amor e ao serviço aos outros. 

Redescobrir-se pessoas pertencentes a uma só família

Por estas razões, o ponto de viragem não poderá vir simplesmente do nosso esforço ou de uma revolução tecnológica: sem negligenciar tudo isto, precisamos de redescobrir-nos pessoas, isto é, homens e mulheres que reconhecem serem incapazes de saber quem são sem os outros, e que se sentem chamados a considerar o mundo à sua volta não como um objetivo em si, mas como um sacramento da comunhão. Desta maneira, os problemas de hoje podem tornar-se autênticas oportunidades para que possamos descobrir-mo-nos verdadeiramente como uma única família, a família humana. 

O perdão para superar a crise ecológica

Enquanto tomamos consciência de que estamos a perder o objetivo, que estamos a dar prioridade ao que não é essencial ou até mesmo ao que não é bom e faz mal, pode nascer em nós o arrependimento e o pedido de perdão. Eu, sinceramente sonho com um crescimento da consciência e de um sincero arrependimento de todos nós, homens e mulheres do século XXI, crentes e não crentes, das nossas sociedades, por deixar-mo-nos levar por lógicas que dividem, provocam fome, isolam e condenam. Seria belo se nos tornássemos capazes de pedir perdão aos pobres, aos excluídos; então tornaríamos capazes de nos arrepender sinceramente também do mal feito à terra, ao mar, ao ar, aos animais ..
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Pedir e perdoar são ações possíveis apenas no Espírito Santo, porque é Ele o artífice da comunhão que abre os fechamentos dos indivíduos; e é necessário muito amor para deixar de lado o próprio orgulho, para perceber que cometemos um erro e para ter esperança de que novos caminhos sejam realmente possíveis.

O arrependimento, portanto,  para todos nós, para a nossa época, é uma graça a ser implorada humildemente ao Senhor Jesus Cristo, para que essa nossa geração possa ser recordada na história não pelos seus erros, mas pela humildade e a sabedoria de ter sabido reverter a rota. 

Recomeçar a partir dos relacionamentos, a inovação tecnológica não é suficiente

O que estou a dizer, talvez possa parecer idealista e pouco concreto, enquanto aparecem mais caminhos viáveis que visam desenvolver inovações tecnológicas, a redução do uso de embalagens, o desenvolvimento de energia a partir de fontes renováveis ​​etc. Tudo isto é, sem dúvida, não apenas um dever, mas necessário. No entanto, não é suficiente.

A ecologia é ecologia do homem e de toda a criação, não apenas de uma parte. Assim como para uma doença grave o remédio por si só não é suficiente, mas é necessário olhar para o doente e entender as causas que levaram ao aparecimento do mal, assim analogamente a crise de nosso tempo deve ser enfrentada nas suas raízes. O caminho proposto consiste, então, em repensar o nosso futuro a partir das relações: os homens e as mulheres do nosso tempo têm tanta sede de autenticidade, de rever sinceramente os critérios da vida, de apostar naquilo que vale a pena, reestruturando a existência e a cultura.

VN

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