(RV) Pela
quinta vez um Papa visita as Nações Unidos. Na linha dos seus
predecessores (Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) Francisco exprimiu o
seu apreço por esta Organização que está a comemorar os 70 anos de
vida, considerando-a “a resposta jurídica e política adequada para o
momento histórico” que estamos a viver, uma “resposta imprescindível,
dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou
falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas”.
Por isso a Igreja Católica – disse o Papa - atribui muita importância à ONU e tem muita esperança nas suas actividades.
Como exemplo de frutos positivos destes 70 anos de vida da ONU o Papa
referiu a codificação e o desenvolvimento do direito internacional, a
normativa internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do
direito humanitário, luzes – disse que contrastam a obscuridade da
desordem causada por ambições descontroladas e egoísmos colectivos.
Restam, certo, problemas graves por resolver, mas “se faltasse toda esta
actividade internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao
uso descontrolado das suas próprias potencialidades”.
Por todos estes “avanços políticos, jurídicos e técnicos que
representam um percurso de concretização do ideal de fraternidade
humana”, o Papa prestou homenagem a todos quantos serviram com lealdade e
sacrifício a ONU nestes 70 anos, alguns dando a própria vida, como Dag
Hammarskjold e inúmeros funcionários caídos em missões humanitárias, de
paz e reconciliação.
O caminho percorrido até hoje pela ONU mostra – disse o Papa – que
“há constante necessidade de reforma para se poder chegar ao objectivo
final que é a de “conceder a todos os países, sem excepção, uma
participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões”,
especialmente no Conselho de Segurança, nos organismos financeiros e nos
grupos e mecanismos criados para enfrentar as crises económicas.
“Isto ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento”
Citando a Carta Constitucional da ONU, o Papa recordou que a tarefa
desta organização é a promoção do direito e que a limitação do poder
está implícita no conceito de direito. Portanto, nenhum grupo humano se
pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os
direitos de outros indivíduos ou grupos sociais. Acontece, porém, que
hoje, “o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos” e
muitas são as vítimas deste “mau exercício do poder”: desde o ambiente
natural a seres humanos.
“Por isso é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a protecção do ambiente e pondo fim à exclusão”.
O Papa fala da necessidade dum verdadeiro “direito do ambiente” e
recorda que qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade, pois o
homem precisa de um meio ambiente favorável para se desenvolver. Além
disso, e na óptica de todas as religiões monoteístas, “o universo provém
duma decisão de amor do Criador” que permite ao homem servir-se dele
sem, todavia, abusar dele e muito menos destruí-lo.
Francisco demonstra como a destruição do ambiente a ambição egoísta e
ilimitada do poder estão interligados e geram exclusão, negação total
da fraternidade:
“A exclusão económica e social é uma negação total da fraternidade
humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente”.
É a cultura “do descarte” dos mais frágeis da sociedade, tantas vezes
denunciada pelo Papa Bergoglio, que diz sentir-se interpelado por esta
dramática situação de exclusão e desigualdade e, por isso, eleva a sua
voz a favor de “soluções urgentes e eficazes” e vê na Assembleia Mundial
que tem hoje início na ONU para adoptar a chamada “Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável” e na próxima Conferência de Paris sobre
alterações climáticas, “um importante sinal de esperança”.
E sem tirar nada aos compromissos solenemente assumidos, o Papa
recorda aos governantes que o mundo lhes pede vivamente “uma vontade
efectiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas
imediatas para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais
rapidamente possível o fenómeno da exclusão social e económica, com as
suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de
órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas,
trabalho escravo, incluindo prostituição, tráfico de drogas e armas,
terrorismo e criminalidade internacional organizada”.
Não se pode ficar por um nominalismo declamatório ou por instrumentos
de medição para tranquilizar as consciências. É preciso ser práticos,
concretos e deixar-se guiar por “um conceito perene de justiça, sabendo
que antes e depois dos programas estão pessoas concretas que “se vêem,
muitas vezes, obrigadas a viver miseravelmente, privados de qualquer
direito”.
Pessoas a quem se deve permitir ser “actores dignos do seu próprio
destino” – frisou o Papa, fazendo notar que o desenvolvimento integral e
a dignidade não podem ser impostos, mas construídos em todos os
ambientes da relação humana: amigos, famílias, escolas, sindicatos,
províncias, países, etc.
Isto pressupõe o direito à educação, também para as meninas.
Pressupõe “o direito primário das famílias de educar e o direito das
Igrejas e de agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na
educação das suas filhas e filhos”.
É tarefa dos governos garantir o mínimo absoluto a nível material e
espiritual para que as famílias possam viver dignamente. E esse mínimo
significa casa, trabalho, terra, água, alimentação e liberdade de
espírito, que inclui liberdade religiosa, direito à educação e outros
direitos civis, enfim, direito à vida… em poucas palavras direito à
existência da própria natureza humana.
A medida, o indicador mais simples da nova Agenda do Desenvolvimento
deverá ser a concretização de tudo isto insistindo ainda na questão
ambiental para recordar que o “O homem não se cria a si mesmo. Ele é
espírito e vontade, mas também natureza”. E quando recusamos qualquer
instancia acima de nós, vendo-nos unicamente a nós mesmo, começa o
desperdício da criação – frisou Francisco citando Bento XVI, segundo o
qual “ a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão exigem o
reconhecimento duma lei moral inscrita na própria natureza humana, que
inclui a distinção natural entre o homem e a mulher e o respeito
absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões”.
Sem o reconhecimento dos limites éticos naturais e dos pilares de
desenvolvimento, o ideal de preservar as gerações vindouras do flagelo
da guerra, assim como a promoção social e de um padrão mais elevado de
vida em maior liberdade – disse o Papa referindo-se mais uma vez ao
Preâmbulo da Carta das ONU – permanecem uma miragem. Pior ainda:
palavras vazias servem “como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou
para promover uma colonização ideológica através da imposição de
modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos e, em
última análise, irresponsáveis”.
A guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão ao ambiente –
frisou Francisco – dizendo que há que envidar esforços para evitar a
guerra, recorrer incansavelmente a negociações, a mediadores, a
arbitragens, como aliás propõe a Carta da ONU. Mas os 70 anos da ONU, e
sobretudo os primeiros 15 anos deste milénio, mostram tanto a eficácia
da aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua
inobservância.
“Se se respeita e se aplica a Carta da ONU, com transparência e
sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório
de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas,
obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma
com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se
contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de pandora com
forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o
ambiente cultural e também o ambiente biológico.”
O Papa fez notar que a proliferação das armas, especialmente as de
destruição massiva, como podem ser as armas nucleares, estão em
contradição com os princípios da construção jurídica internacional e das
Nações Unidas, tornando-as em “Nações Unidas pelo medo e a
desconfiança”.
“È preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando
plenamente, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para
se chegar a uma proibição total destes instrumentos.”
O recente acordo neste âmbito na Ásia e Médio Oriente é visto pelo
Papa como um sinal positivo, mas as graves consequências de intervenções
politicas e militares no Médio Oriente, África do Norte e outras partes
da África, onde cristãos e outras pessoas são obrigadas a fugir ou a
pagar com a vida, levou o Papa a apelar a um sério “exame de consciência
por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos
assuntos internacionais”.
Em todas as situação de guerras e conflitos - não só de perseguição
religiosa e cultural como no caso da Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia,
Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos - existem pessoas concretas
de todas as idades que choram, sofrem, morrem – recordou o Papa.
A comunidade internacional está, portanto, chamada a fazer uso de
todos os mecanismos do direito internacional e o que estiver ao seu
alcance para “impedir e prevenir ulteriores violências sistemáticas
contra as minorias étnicas e religiosas e para proteger as populações
inocentes”.
Outro fenómeno grave referido pelo Papa é o narcotráfico com o seu
cortejo de trafico humano, de armas, lavagem de dinheiro, exploração
infantil e outras formas de corrupção que penetra todos os sectores da
sociedade. Uma verdadeira estrutura paralela que afecta a credibilidade
das instituições.
Francisco citou o discurso de Paulo VI, há 50 anos, mas sempre
actual, para dizer que chegou a hora de se fazer uma pausa, um momento
de recolhimento e reflexão, quase uma oração, e pensar de novo na nossa
origem, história e destino comum, porque “o perigo não vem da ciência
nem do progresso, mas sim do homem que dispõe de instrumentos cada vez
mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas
conquistas”.
Pondo mais uma vez no centro a recta compreensão da fraternidade
universal, a sacralidade da vida humana e da natureza, o Papa afirmou:
“Tal compreensão e respeito exigem um grau de sabedoria, que aceite a
transcendia, renuncie à construção duma elite omnipotente e entenda que
o sentido pleno da vida individual e colectiva está no serviço
desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação e do
bem comum”.
Os únicos princípios capazes de sustentar, iluminar e animar o
edifício da civilização moderna são os princípios espirituais – rematou o
Papa, usando palavras de Paulo VI, e dizendo que o tempo presente
convida a privilegiar acções que possam gerar novos dinamismos positivos
na sociedade.
“Não podemos permitir-nos o adiamento de “algumas agendas” para o
futuro. O futuro exige de nós decisões criticas e globais face aos
conflitos mundiais que aumentam o número dos e excluídos”.
A ONU, instituição necessária, mas melhorável, como qualquer outro
organismo humano, pode ser o penhor dum futuro seguro e feliz para as
gerações vindouras. Mas a esta condição:
“Sê-lo-á se os representantes dos Estados souberem pôr de lado
interesses sectoriais e ideológicos e procuram sinceramente o serviço do
bem comum”.
E o Papa assegurou a sua oração e a de toda a Igreja católica à ONU,
para que, com todos os Estados-Membros e cada um dos seus funcionários,
preste um serviço eficaz e respeitoso à humanidade.
(DA)
Sem comentários:
Enviar um comentário