(RV) Aura
Miguel, jornalista da Rádio Renascença e vaticanista há 29 anos,
entrevistou o Papa Francisco no Vaticano durante a semana em que
decorreu a visita “ad Limina Apostolorum” dos bispos portugueses neste
mês de setembro. Uma entrevista exclusiva que constitui um marco
importante e significativo para a Emissora Católica Portuguesa e para a
Igreja em Portugal.
Na entrevista o Papa Francisco afirma que as pessoas estão
desiludidas com a “corrupção a todos os níveis”. Acredita que o “grande
desafio da Europa é voltar a ser a mãe Europa” e apela ao acolhimento
dos refugiados que estão a chegar ao Velho Continente. Em particular em
relação a este problema o Papa Francisco afirma que a causa destes
refugiados é um sistema socioeconómico mau e injusto.
O Santo Padre nesta entrevista à Rádio Renascença pede que a
catequese “não seja teórica” e que a Igreja saia de si mesma. Acredita
que Fátima faz de Portugal um país “privilegiado” e faz uma revelação
interessante: “Nunca conheci um português mau.”
Publicamos aqui o texto integral desta entrevista:
Setembro de 2015
Entrevista de Aura Miguel, jornalista da Rádio Renascença, ao Papa Francisco
:
Para um Papa que vem do “fim do mundo”, como olha para Portugal e para os portugueses?
Em Portugal, só estive uma vez no aeroporto, há anos, quando vinha
para Roma, num avião da Varig que fazia escala em Lisboa, por isso, só
conheço o aeroporto. Mas conheço muitos portugueses. E, no Seminário de
Buenos Aires, havia muitos empregados, emigrantes portugueses, gente
boa, que tinha muita familiaridade com os seminaristas. E o meu pai
tinha um colega de trabalho português. Lembro-me do seu nome, Adelino,
bom homem. E uma vez conheci uma senhora portuguesa, com mais de 80
anos, que me deixou boa impressão. Quer dizer, nunca conheci um
português mau.
No seu discurso aos bispos portugueses, além de elogiar o povo
português e olhar para a Igreja com serenidade, o Santo Padre manifesta
duas preocupações: uma em relação aos jovens e outra em relação à
catequese. O Santo Padre usa uma imagem, dizendo que “os vestidos da
primeira comunhão já não servem aos jovens”, mas que há “certas
comunidades que insistem em vestir-lhos”. Qual é o problema?
É uma maneira de dizer. Os jovens são mais informais e têm o seu
próprio ritmo. Temos de deixar que o jovem cresça, temos de o
acompanhar, não o deixar sozinho, mas acompanhá-lo. E saber acompanhá-lo
com prudência, saber falar no momento oportuno, saber escutar muito. Um
jovem é inquieto. Não quer que o incomodem e, nesse sentido, pode-se
dizer que “o vestido da primeira comunhão não lhes serve”. As crianças,
pelo contrário, quando vão comungar, gostam do vestido da primeira
comunhão. É uma ilusão. Os jovens têm outras ilusões que, muitas vezes,
são muito boas, mas há que respeitar, porque eles mesmos não se
entendem, porque estão a mudar, estão a crescer, estão à procura, não é?
Por isso, é preciso deixar o jovem crescer, há que o acompanhar,
respeitar e falar-lhe muito paternalmente.
Porque, ao mesmo tempo, há uma exigência a propor, mas essa exigência, muitas vezes, não é atractiva!
Por isso, há que procurar aquilo que atrai um jovem e exigir-lho. Por
exemplo, um caso concreto: se você propõe a um jovem – e vemos isto por
todo o lado – fazer uma caminhada, um acampamento ou fazer missão para
outro sítio, ou por vezes ir a um “cotolengo” [obra fundada por
sacerdote italiano de acolhimento de doentes com grave deficiência
múltiplas, abandonadas pelas famílias e em situação de risco] para
cuidar dos doentes, durante uma semana ou quinze dias, entusiasma-se
porque quer fazer algo pelos outros. Está envolvido.
“Involucrado”?
Sim, fica por dentro, compromete-se. Não olha a partir de fora. Envolve-se, ou seja, compromete-se.
Então, porque é que não fica?
Porque está a caminhar.
E qual é o desafio que a Igreja, então, deve enfrentar? O Santo Padre
também falou de uma catequese, que muitas vezes permanece teórica e
onde falta esta capacidade de propor o encontro…
Pois é importante que a catequese não seja puramente teórica. Isso
não serve. A catequese é dar-lhes doutrina para a vida e, portanto, tem
de incluir três linguagens, três idiomas: o idioma da cabeça, o idioma
do coração e o idioma das mãos. E a catequese deve entrar nesses três
idiomas: que o jovem pense e saiba qual é a fé, mas que, por sua vez,
sinta com o seu coração o que é a fé e, por sua vez, faça coisas. Se
falta à catequese uma destas três línguas, destes três idiomas, não
avança. Três linguagens: pensar o que se sente e o que se faz, sentir o
que se pensa e o que se faz, fazer o que se sente e o que se pensa.
Escutando vossa Santidade, isto parece óbvio, mas, olhando à volta –
sobretudo na velha Europa, na velha cristandade – não é assim. O que é
que falta? Mudar a mentalidade? Como se faz?
Mudar a mentalidade, não sei, porque não conheço tudo, não é? Mas é
verdade que, a metodologia catequética, às vezes, não é completa. Há que
procurar uma metodologia da catequese que junte as três coisas: as
verdades que se devem crer, o que se deve sentir e o que se faz, o que
se deve fazer, tudo junto.
Santidade, para o centenário das aparições de Nossa Senhora de
Fátima, nós esperamos por si em Portugal. Três Papas já nos visitaram
(João Paulo II por três vezes). O Senhor, que ama muito a Virgem, o que
espera da sua visita em 2017?
Bom, vamos lá esclarecer as coisas. Eu tenho vontade de ir a Portugal
para o centenário. Em 2017 também se cumprem 300 anos do encontro da
Imagem da Virgem de Aparecida.
…. uma data estereofónica, em dois lados! (risos)
... por isso, também estou com vontade de lá ir e já prometi lá ir.
Quanto a Portugal, disse que tenho vontade de ir e gostaria de ir. É
mais fácil ir a Portugal, porque podemos ir e voltar num só dia, um dia
inteiro, ou, quanto muito, ir um dia e meio ou dois dias. Ir ter com a
Virgem. A Virgem é mãe, é muito mãe, e a sua presença acompanha o povo
de Deus. Por isso, gostaria de ir a Portugal, que é privilegiado.
E o que espera de nós, portugueses? Como podemos preparar-nos para o receber e também para seguir os pedidos de Nossa Senhora?
O que a Virgem pede sempre é que rezemos, que cuidemos da família e
dos mandamentos. Não pede coisas estranhas. Pede que rezemos pelos que
andam desorientados, pelos que se dizem pecadores – todos o somos, eu
sou o primeiro. Mas a Virgem pede e há que se preparar através desses
pedidos da Virgem, através dessas mensagens tão maternais, tão
maternais... e manifestando-se às crianças. É curioso, Ela procura
sempre almas muito simples, não é? Muito simples.
Esta entrevista acontece em plena crise dos refugiados. Santo Padre, como está a viver esta situação?
É a ponta de um icebergue. Vemos estes refugiados, esta pobre gente
que escapa da guerra, que escapa da fome, mas essa é a ponta do
icebergue. Porque debaixo dele, está a causa; e a causa é um sistema
socioeconómico mau e injusto, porque dentro de um sistema económico,
dentro de tudo, dentro do mundo – falando do problema ecológico –,
dentro da sociedade socioeconómica, dentro da política, o centro tem de
ser sempre a pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia,
descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo
da moda. Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exacto
e posso equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das
riquezas.
E esta exploração das riquezas dos países mais pobres, a médio prazo
traz esta consequência: a de estes todos que agora querem vir para a
Europa…
E o mesmo acontece nas grandes cidades. Por que surgem as favelas nas grandes cidades?
O critério é o mesmo…
É o mesmo; é gente que vem do campo, porque o desflorestaram, porque
fizeram monocultivo, não têm trabalho e vão para as grandes cidades.
Em África, também é igual…
Em África... ou seja, é o mesmo fenómeno. Então, esta gente emigrada
que vem para a Europa – é a mesma coisa – à procura de um sítio. E,
claro, para a Europa neste momento, é uma surpresa, porque até custa a
crer que isto esteja a acontecer, não é? Mas acontece.
Mas o Santo Padre, quando foi a Estrasburgo, disse que era
“necessário actuar sobre as causas e não apenas sobre os efeitos”. Mas
parece que ninguém ouviu e, agora, os efeitos estão à vista…
Temos de ir às causas.
E ninguém o ouviu, muito provavelmente…
Onde as causas são a fome, há que criar fontes de trabalho,
investimentos. Onde a causa é a guerra, procurar a paz, trabalhar pela
paz. Hoje em dia, o mundo está em guerra contra si mesmo, ou seja, o
mundo está em guerra, como digo, uma guerra em folhetins, aos pedaços,
mas também está em guerra contra a Terra, porque está a destruir a
Terra, ou seja, a nossa casa comum, o ambiente. Os glaciares estão a
derreter-se, no Árctico, o urso branco vai cada vez mais para o norte
para poder sobreviver.
E a preocupação pelo homem e pelo seu destino, parece ignorada. Como
vê a reacção da Europa à vaga de refugiados? Uns constroem muros, outros
escolhem os refugiados consoante a sua religião, outros aproveitam esta
situação para fazer discursos populistas.
Cada um faz uma interpretação da sua cultura. E, por vezes, a
interpretação ideológica, ou das ideias, é mais fácil do que fazer as
coisas, que é a realidade. Mais longe da Europa, há um outro fenómeno
que também me doeu muito: os “rohingya” [grupo étnico muçulmano,
provavelmente, com origem na antiga Birmânia. Marginalizados por razões
étnicas e religiosas, foram apontados pela ONU como uma das minorias
mais perseguidas do mundo], que foram expulsos do seu país e que entram
num barco e partem. Chegam a um porto ou a uma praia, dão-lhes água,
dão-lhes de comer e depois, mandam-nos outra vez para o mar e não os
acolhem. Ou seja, falta a capacidade de acolhimento da humanidade.
Porque não é tolerar; é mais do que tolerância: é acolhimento.
Acolher, acolher as pessoas, e acolher tal como vêm. Eu sou filho de
emigrantes e pertenço à onda migrante do ano 29. Mas na Argentina, desde
o ano 84 (1884), começaram a chegar italianos, espanhóis...
portugueses, não sei quando chegou a primeira onda portuguesa; vinham
sobretudo destes três países. E quando chegavam lá, alguns tinham
dinheiro, outros iam para o hotel de emigrantes e daí eram enviados para
as cidades. Iam trabalhar ou procurar trabalho. É verdade que, naquela
época, havia trabalho, mas, os da minha família – que tinham trabalho
quando chegaram, em 29 –, no ano 32, com a crise económica de 30,
ficaram na rua, sem nada. O meu avô comprou um armazém com dois mil
pesos que lhe emprestaram e o meu pai, que era contabilista, andava a
fazer distribuição com a canasta; ou seja, tinham vontade de lutar, de
vencer... Eu sei o que é a migração! E depois, vieram as migrações da
Segunda Guerra, sobretudo do centro da Europa, muitos polacos,
eslovacos, croatas, eslovenos e também da Síria e do Líbano. E sempre
nos demos bem por lá. Na Argentina, não houve xenofobia. E agora, há
migração interna na América, vêm de outros países da América para a
Argentina, apesar de ter diminuído nos últimos anos, por falta de
trabalho na Argentina.
E também do México para os Estados Unidos. Há todo um fenómeno…
O fenómeno migratório é uma realidade. Mas eu queria abordar o tema,
sem censurar ninguém. Quando há um espaço vazio, a gente procura
preenchê-lo. Se um país não tem filhos, vêm os emigrantes ocupar o
lugar. Penso no nível dos nascimentos de Itália, Portugal e Espanha.
Creio que é quase 0%. Então, se não há filhos, há espaços vazios. Ou
seja, o não querer ter filhos, em parte, – e isto é uma interpretação
minha, não sei se está correcta – é um pouco o resultado da cultura do
bem-estar, não é? Eu ouvi, dentro da minha própria família, cá, há uns
anos, por parte dos meus primos italianos dizer: “Não, crianças, não;
preferimos viajar nas férias, ou comprar uma ‘villa’, ou isto ou
aquilo”... e os idosos vão ficando sozinhos. Creio que o grande desafio
da Europa é voltar a ser a mãe Europa...
E não a…
... a avó Europa. Perdão, há países da Europa que são jovens, por
exemplo, a Albânia. A Albânia impressionou-me, gente com 40 anos, 45
anos... e a Bósnia-Herzegovina, ou seja, países que se refizeram depois
de uma guerra, não é?
Por isso, o Santo Padre os visitou…
Ah sim, claro. É um sinal para a Europa.
Mas este desafio do acolhimento a estes refugiados que estão a
entrar, na sua perspectiva, pode ser muito positivo para a Europa? É um
benefício, uma provocação? Finalmente, de algum modo, a Europa pode
despertar, mudar de rumo?
Pode ser. É verdade e reconheço que, hoje em dia, as condições de
segurança territorial não são as mesmas de outra época porque, na
verdade, temos, a 400 quilómetros da Sicília, uma guerrilha terrorista
sumamente cruel, não é? Então, existe o perigo da infiltração, isso é
verdade.
E que pode chegar até Roma.
Ah sim, ninguém assegurou que Roma seja imune a isto, não é? Mas
podem-se tomar precauções e pôr toda a gente que vem a trabalhar. Mas
também há outro problema, é que a Europa atravessa uma crise laboral
muito grande. Há um país, melhor, vou falar de três países, mas que não
vou nomear, dos mais importantes da Europa, em que o desemprego juvenil
dos jovens com menos de 25 anos, num país é de 40%, noutro país é de 47%
e noutro é de 50%. Há uma crise laboral, o jovem não encontra trabalho.
Ou seja, misturam-se muitas coisas. Nisto, não podemos ser simplistas.
Evidentemente, se chega um refugiado, com as medidas de segurança de
todo o tipo, há que recebê-lo, porque é um mandamento da Bíblia. Moisés
disse ao seu povo: “Recebei o forasteiro porque não esqueçais que vós
fostes forasteiros no Egipto”.
Mas o ideal era que eles não tivessem fugido, que ficassem nas suas terras, não?
Isso, sim.
No Angelus de 6 de Setembro, lançou o desafio às paróquias para que
acolham refugiados. Já houve reacções? O que espera em concreto?
O que eu pedi foi isto: que cada paróquia, cada instituto religioso,
cada mosteiro, acolha uma família. Uma família, não uma pessoa. Uma
família dá mais segurança de contenção, um pouco para evitar que haja
infiltrações de outro tipo. Quando digo que uma paróquia deve acolher
uma família, não digo que tenham de ir viver para a casa do padre, para a
casa paroquial, mas que toda a comunidade paroquial veja se há um
lugar, um canto num colégio para aí se fazer um pequeno apartamento ou,
na pior das hipóteses, que arrendem um modesto apartamento para essa
família; mas que tenham um tecto, que sejam acolhidos e que se integrem
na comunidade. Já tive muitas reacções, muitas, muitas. Há conventos que
estão quase vazios.
Há dois anos, o Santo Padre já fez esse apelo e que resultados é que houve?
Só quatro. Um deles, dos jesuítas (risos); muito bem, os jesuítas!
Mas o assunto é sério, porque aí também há a tentação do deus dinheiro.
Algumas congregações dizem “Não, agora que o convento está vazio, vamos
fazer um hotel e podemos receber pessoas e, com isso, sustentamo-nos ou
ganhamos dinheiro”. Pois bem, se quereis fazer isso, pagai os impostos!
Um colégio religioso, por ser religioso está isento de impostos, mas se
funciona como hotel, então, que pague os impostos como qualquer vizinho
do lado. Senão, o negócio não é limpo.
E o Santo Padre já disse que, aqui no Vaticano, acolhe duas famílias.
Sim, duas famílias. Já me disseram ontem que as famílias já estavam
localizadas e as duas paróquias do Vaticano encarregaram-se de as
procurar.
Já estão identificadas?
Sim, sim, sim, já estão. Quem o fez foi o cardeal Comastri, que é o
meu vigário-geral para o Vaticano, juntamente com o encarregado da
Esmolaria Apostólica, monsenhor Konrad Krajewski, que trabalha com os
sem-abrigo e foi quem fez os duches debaixo da colunata, o serviço de
barbearia – realmente, uma maravilha – é o que leva os que vivem na rua a
ver os museus e a Capela Sistina.
E estas famílias ficam até quando?
Até quando o Senhor quiser. Não se sabe como isto vai acabar, não é?
De todas as maneiras, quero dizer que a Europa tomou consciência, e eu
agradeço-lhe. Agradeço aos países da Europa que tomaram consciência
disto.
A Renascença aderiu em Portugal a uma iniciativa, que reúne
instituições cristãs e também de outras religiões, para acolher e
movimentar-se a favor dos refugiados. Pode dizer algumas palavras a quem
participa nesta plataforma?
Felicito-vos e agradeço-vos pelo que estão a fazer e dou-vos um
conselho: no dia do Juízo Final, já sabemos sobre o que vamos ser
julgados, está escrito no capítulo 25 de São Mateus. Quando Jesus vos
disser “Estive com fome, deste-me de comer?”, vocês vão dizer “Sim. “E
quando estive sem refúgio, como refugiado, ajudaste-me?”, “Sim”. Pois,
felicito-vos: vão passar no exame! E também queria dizer uma coisa sobre
o trabalho com jovens desocupados. Creio que aqui é urgente, sobretudo
para as congregações religiosas que têm como carisma a educação, mas
também os leigos, os educadores leigos, que inventem cursos, pequenas
escolas de emergência. Então, para um jovem que está desocupado, se
estudar, durante seis meses, para ser cozinheiro ou canalizador, para
fazer pequenas reparações – há sempre um tecto para arranjar - ou para
pintor, com esse ofício, terá mais possibilidade de encontrar um
trabalho, ainda que parcial ou temporário. Fazer o que nós chamamos de
“biscate”, um trabalho ocasional e com isso não está totalmente
desocupado. Mas hoje é o tempo da educação de emergência. Foi o que fez
Dom Bosco. Dom Bosco, quando viu a quantidade de crianças que havia na
rua, disse “tem de haver educação”, mas não mandou as crianças para a
escola média ou secundária, sim aprender ofícios. Então, preparou
carpinteiros, canalizadores, que os ensinavam a trabalhar e, assim, já
tinham com que ganhar o pão. Dom Bosco fez isso. E agora gostava de
contar um episódio sobre Dom Bosco. Aqui em Roma, perto do Trastevere,
onde...
Era uma zona pobre
.
Sim, era uma zona muito pobre, mas que agora é zona da moda para os
jovens, para a “movida”, não é? Pois Dom Bosco passou por ali, ia de
carruagem – ou de carro, não sei – e atiraram-lhe uma pedrada que partiu
o vidro. Ele mandou parar e disse: “Este é o lugar que onde vamos
ficar!”. Ou seja, perante uma agressão, não a viveu como agressão,
viveu-a como um desafio para ajudar aquela gente, as crianças, os jovens
que só sabiam agredir. E hoje, existe ali uma paróquia salesiana que
forma jovens e crianças, com as suas escolas e as suas coisas. Assim,
volto ao tema dos jovens: o importante é que hoje se dê, aos jovens que
não têm trabalho, uma educação de emergência sobre algum ofício que lhes
permita ganhar a vida.
É muito crítico também sobre o estilo de vida ocidental e da Europa, o
chamado primeiro mundo, muito centrado no bem-estar. O que é que o
incomoda mais?
Bem, quer dizer, também nas grandes cidades americanas, quer da
América do Norte, quer da América do Sul, existe este mesmo problema,
não é só na Europa...
...é o chamado primeiro mundo.
Sim, nas grandes cidades... Em Buenos Aires há um grande sector da
cultura do bem-estar e, por isso, também há esses cordões à volta das
cidades, as favelas e todas essas coisas, não é? Eu, em relação à
Europa, hoje, não lhe atiraria à cara este tipo de coisas. Há que
reconhecer que a Europa tem uma cultura excepcional. Realmente, são
séculos de cultura e isso também dá um bem-estar intelectual. Em todo o
caso, o que eu diria da Europa, é a sua capacidade de retomar uma
liderança no concerto das nações. Ou seja, que volte a ser a Europa que
define rumos, pois tem cultura para o fazer.
Mas mantém a identidade, hoje em dia, a Europa? Está em condições de afirmar a sua identidade?
O que eu disse em Estrasburgo, pensei muito antes de o dizer. Ou
seja, volto a repetir um pouco isso: a Europa ainda não morreu. Está
meia-avozinha [risos], mas pode voltar a ser mãe. E eu tenho confiança
nos políticos jovens. Os políticos jovens tocam outra música. Há um
problema mundial, que afecta não só a Europa, mas o mundo inteiro, que é
o problema da corrupção. A corrupção a todos os níveis... e isso também
revela um baixo nível moral, não é?
O Santo Padre fala disso na sua última encíclica e pede para as
populações estarem mais conscientes. No entanto, verifica-se muita
abstenção. Se vemos os resultados das eleições, a abstenção é quase
maior do que um partido…
Porque a gente está desiludida. Em parte, por causa da corrupção, em
parte pela ineficácia, em parte pelos compromissos assumidos
anteriormente. E, no entanto, a Europa – volto a dizer o que disse em
Estrasburgo – tem que desempenhar o seu papel, ou seja, recuperar a sua
identidade. É verdade que a Europa se enganou – não estou a criticar,
mas só a recordar –, quando quis falar da sua identidade sem querer
reconhecer o mais profundo da sua identidade, que é a sua raiz cristã,
não foi? Aí enganou-se. Bom, mas todos nos enganamos na vida... está a
tempo de recuperar a sua fé.
O que é que pode tocar a liberdade de alguém que “faz o que quer” e
que foi educado desde pequeno com um conceito de felicidade para quem “a
felicidade é não ter problemas”? Em geral, educam-se as crianças com
este desejo de que a felicidade é “não ter problemas e fazer o que se
quer”.
Uma vida sem problemas é aborrecida. É um tédio. O homem tem, dentro
de si, a necessidade de enfrentar e de resolver conflitos e problemas.
Evidentemente, uma educação para não ter problemas, é uma educação
asséptica. Faça você mesma a experiência: pegue num copo de água
mineral, de água comum, da torneira, e depois pegue num copo com água
destilada. Mete nojo, mas a água destilada não tem problemas... (risos) é
como educar as crianças no laboratório, não é? Por favor!
Arriscar é importante?
Correr o risco, propor sempre metas! Para educar, faz falta usar os
pés. Para educar bem, há que ter um pé bem apoiado no chão e o outro pé
levantado mais à frente e ver onde o posso apoiar. E quando tenho
apoiado o outro, levanto este [faz o gesto com os pés] e... isso é
educar: apoiar-se sobre algo seguro, mas tentar dar um passo em frente
até que o tenha firme e, depois, dar outro passo.
Dá mais trabalho educar assim…
É arriscar! Porquê? Porque talvez piso mal e caio... pois bem, levantas-te e segues em frente!
Na onda individualista em que vivemos – falou nisso em Estrasburgo –
parece um capricho exigir direitos, sempre mais direitos separados da
busca da verdade. Crê que isto é também um problema na maneira de viver a
fé?
Pode ser... sempre com mais exigências, sem a generosidade de dar. Ou
seja, é exigir só os meus direitos e não os meus deveres perante a
sociedade, não é? Eu creio que direitos e deveres caminham juntos.
Senão, isso, cria a educação do espelho; porque a educação do espelho é o
narcisismo e hoje estamos numa civilização narcisista.
E como é que se a vence, como se combate?
Com a educação, por exemplo, com direitos e deveres, com a educação
dos riscos razoáveis, procurando metas, avançando e não ficando quieto
ou a olhar ao espelho... não vá acontecer-nos como aconteceu ao Narciso
que, de tanto se olhar espelhado na água e se achar tão lindo, tão
lindo, “blup”, afogou-se. [risos]
Diz que prefere uma igreja acidentada a uma igreja estagnada. O que entende por “igreja acidentada”?
Sim, eu explico: é uma imagem de vida. Se uma pessoa tem em sua casa
uma divisão, um quarto, fechado durante muito tempo, surge a humidade, o
mofo e o mau cheiro. Se uma igreja, uma paróquia, uma diocese, um
instituto, vive fechada em si mesmo, adoece (acontece o mesmo com o
quarto fechado) e ficamos com uma Igreja raquítica, com normas rígidas,
sem criatividade, segura, mais que segura, assegurada por uma companhia
de seguros, mas não segura! Pelo contrário, se sai – se uma igreja, uma
paróquia saem – lá para fora, a evangelizar, pode acontecer-lhe o mesmo
que acontece a qualquer pessoa que sai para a rua: ter um acidente.
Então, entre uma igreja doente e uma Igreja acidentada, prefiro uma
acidentada porque, pelo menos, saiu para a rua.
E aqui, quero repetir uma coisa que já disse noutra ocasião: na
Bíblia, no Apocalipse, há uma coisa linda de Jesus, creio que no segundo
capítulo (no final do primeiro ou no segundo), em que está a falar a
uma Igreja e diz: “Estou à porta e chamo” - Jesus está a bater – “Se me
abres a porta, entro e vou comer contigo”. Mas eu pergunto: quantas
vezes, na Igreja, Jesus bate à porta, mas do lado de dentro, para que O
deixemos sair a anunciar o reino? Por vezes, apropriamo-nos de Jesus só
para nós, e esquecemo-nos que uma Igreja que não está em saída, uma
Igreja que não sai, mantém Jesus preso, aprisionado.
Foi por causa disso que foi eleito Papa?
Isso pergunte ao Espírito Santo! [risos]
Desde que é Papa, considera que a Igreja está mais acidentada?
Não sei. Sei que, pelo que me dizem, Deus está a abençoar muito a sua
Igreja. É um momento que não depende da minha pessoa, mas da bênção que
Deus quis dar à sua Igreja, neste momento. E agora, com este Jubileu da
Misericórdia, espero que muita gente sinta a Igreja como mãe. Porque
pode acontecer à Igreja o mesmo que aconteceu à Europa, não é? Ficar
demasiadamente avó, em vez de mãe, incapaz de gerar vida.
É este é o motivo do Jubileu da Misericórdia?
Que venham todos! Que venham e sintam o amor e o perdão de Deus.
Conheci, em Buenos Aires, um frade capuchinho, um pouco mais novo do que
eu, que é um grande confessor. Tem sempre uma grande fila, com muita
gente, está todo o dia a confessar. Ele é um grande “perdoador”, perdoa
muito. E, às vezes, tem escrúpulos por ter perdoado muito. Então, uma
vez, em conversa, disse-me: “Às vezes, tenho escrúpulos”. E eu
perguntei-lhe: “E o que fazes, quando tens esses escrúpulos?”. “Vou
diante do sacrário, olho para o Senhor e digo-lhe: Senhor, perdoai-me,
hoje perdoei muito, mas que fique bem claro que a culpa é toda vossa,
porque fostes Vós a dar-me o mau exemplo!"
Por isso o Santo Padre, neste sentido, também decidiu, nesta carta [a
monsenhor Rino Fisichella sobre o Jubileu da Misericórdia] propor o
perdão às situações mais difíceis e agora mesmo publicou estas cartas
[de “motu proprio”, iniciativas do Papa que têm normalmente a forma de
decreto] que aceleram os processos de nulidade. Isto também tem a ver
com o Jubileu?
Sim, simplificar... Facilitar a fé às pessoas. E que a Igreja seja mãe...
A razão destas cartas “motu proprio” para a nulidade qual é, exactamente, é agilizar?
Agilizar, agilizar os processos nas mãos do bispo. Um juiz, um
defensor do vínculo, só uma sentença, porque até agora havia duas
sentenças. Não, agora, é só uma. Se não houver apelo, já está. Se houver
apelo, vai para o metropolita, mas agilizar. E também a gratuidade dos
processos.
O Santo Padre fez isto a pensar também no Sínodo e no Jubileu?
Está tudo relacionado.
Já sei que não quer falar do Sínodo, mas, no seu coração de pastor universal, o que pede?
Peço que rezem muito. Sobre o Sínodo, vocês os jornalistas, já
conhecem o “Instrumentum Laboris”. Vai-se falar disso, do que lá está.
São três semanas, um tema, um capítulo, para cada semana. E esperam-se
muitas coisas, porque, evidentemente, a família está em crise. Os jovens
não se casam. Não se casam. Ou então, com esta cultura do provisório,
dizem “ou vivo junto ou me caso, mas só enquanto dura o amor, depois,
tchau...”
E que diz a quem vive uma moral contrária à indicação da Igreja e que tem esta ansiedade de perdão?
Lá no Sínodo vai-se falar de todas as possibilidades de ajudar estas
famílias. Que uma coisa fique clara – e que o Papa Bento o deixou bem
esclarecido: as pessoas que vivem uma segunda união não estão
excomungadas e têm de ser integradas na vida da Igreja. Isso ficou
claríssimo. E eu, no outro dia na catequese, também o disse claramente:
aproximar-se da missa, da catequese, na educação dos filhos, nas obras
de caridade... há mil coisas, não é?
Santidade, gostaria de terminar com perguntas sobre a sua vocação. No
início de Março de 2013, preparava-se para ir para a “reforma”. Já
tinha decidido onde ia ficar a viver, etc.. No entanto, tornou-se um dos
homens mais famosos a nível mundial. Como vive esta circunstância?
Não perdi a paz. É um dom... a paz é um dom de Deus. É um dom que
Deus me deu, algo que eu não imaginava, pela idade que tenho e por tudo
isso. E, mais ainda, eu até já tinha previsto o meu regresso, pensando
que nenhum Papa seria escolhido na Semana Santa. Então, se demorássemos a
elegê-lo, teríamos de nos despachar até sábado, antes do Domingo de
Ramos. E comprei um bilhete de regresso, para poder celebrar Missa no
Domingo de Ramos e até deixei preparada, na minha escrivaninha, a
homilia. Foi uma coisa que eu não esperava e, em Dezembro, deixaria o
cargo para o qual ia ser nomeado um sucessor. Assim...
…há toda uma aventura, agora, à sua frente.
Tudo... mas não perdi a paz. Não perdi a paz.
O Papa Francisco é amado em todo o mundo, a sua popularidade cresce,
como revelam as sondagens, e tantos querem vê-lo candidato ao prémio
Nobel. Mas Jesus avisou os seus: ”Sereis odiados por causa do meu nome”.
Como é que se sente, Santidade?
Muitas vezes me pergunto como será a minha cruz, como é a minha
cruz... As cruzes existem. Não se vêem, mas estão lá. E também Jesus,
num certo momento, foi muito popular e, depois, acabou como acabou. Ou
seja, ninguém tem garantida a felicidade mundana. A única coisa que eu
peço, é que me conserve a paz do coração e que me conserve na sua Graça,
porque, até ao último momento, somos pecadores e podemos renegar a sua
Graça. Consola-me uma coisa: que São Pedro cometeu um pecado muito grave
– renegar Jesus – e, depois, fizeram-no Papa... Se com este pecado o
fizeram Papa, com todos os que eu tenho, consolo-me, pois o Senhor
cuidará de mim como cuidou de Pedro. Mas Pedro morreu crucificado,
enquanto eu não sei como vou terminar. Que Ele decida, desde que me dê a
paz, que Ele faça o que quiser.
Como é que vive a sua liberdade sendo Papa? Apareceu de surpresa numa
missa em S. Pedro, de manhã cedo, foi ao oculista arranjar os óculos…
Precisa do contacto com as pessoas?
Sim, tenho necessidade de sair, mas ainda não chegou a altura
certa... mas, pouco a pouco, vou tendo contacto com as pessoas às
quartas-feiras e isso ajuda-me muito. Sim, a única coisa que estranho em
relação a Buenos Aires é sair a “callejear”, andar na rua.
E terminamos com umas perguntas rápidas: o que lhe tira o sono?
Posso dizer-lhe a verdade? Durmo como uma pedra! [risos]
E o que o faz correr?
Sempre que há muito trabalho.
O que nunca é urgente, que pode esperar?
O que não é urgente? As pequenas coisas que podem esperar até amanhã,
ou depois. Há coisas que são muito urgentes e outras que não são
urgentes... mas não saberei dizer-lhe, em concreto, que isto é mais
urgente do que aquilo.
Com que frequência se confessa?
Todos os 15 dias, 20 dias. Confesso-me a um padre franciscano, o
padre Blanco, que tem a bondade de vir cá confessar-me. E nunca tive de
chamar uma ambulância para o levar de regresso, assustado com os meus
pecados! [risos]
Como e onde gostaria de morrer?
Onde Deus quiser. A sério... onde Deus quiser...
A última: como imagina a eternidade?
Quando era mais novo, imaginava-a muito aborrecida [risos]. Agora,
penso que é um Mistério de encontro. É quase inimaginável, mas deve ser
algo muito bonito e maravilhoso encontrar-se com o Senhor.
Obrigada, Santo Padre.
Obrigado eu, e uma grande saudação a todos os ouvintes desta rádio.
E, por favor, peço-vos que rezem por mim. Que Deus vos abençoe e que a
Virgem de Fátima vos proteja.
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