CATEQUESE QUARESMAL, 13 DE ABRIL DE 2014
«A pior descriminação de que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual» (Evangelii Gaudium, 200)
Concluindo as catequeses quaresmais, que este ano sublinharam algumas passagens do quarto capítulo da exortação apostólica Evangelii Guadium, do Papa Francisco, sobre “a dimensão social da evangelização”, detenho-me hoje no seu número 200, onde afirma que «a pior discriminação de que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual».
Pode parecer estranha a injunção… Na verdade, o Papa não diz apenas que estamos mal quando descuidamos os pobres. Creio que qualquer um de nós o dirá, crentes ou não crentes, na primeiríssima base duma humanidade comum, que exige que olhemos uns pelos outros, especialmente por quem mais precisa de ser apoiado. Com maior ou menor coerência prática, poucos nos atreveríamos a dizer o contrário, ou menos do que isso.
Mas o Papa diz mais e quase outra coisa. Diz e declara que entre tantas descriminações que os pobres podem sofrer – e tantas vezes sofrem, de facto - a pior é a falta de cuidado espiritual.
- Que ordem de razões leva o Papa a falar assim? Então, a primeiríssima urgência e a necessidade irrecusável que a pobreza de tantos hoje apresenta não têm a ver com as condições materiais de vida e a própria subsistência até?
Na ordem da ação imediata, certamente que é assim. Na encíclica Deus caritas est, notável documento do Papa Bento XVI, define-se a caridade cristã com essa insofismável prioridade. Vem no seu número 31 – um daqueles trechos que deveríamos saber de cor e aprender na primeira catequese -, referindo «os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial».
Aí escreve o Papa Ratzinger: «Segundo o modelo oferecido pela parábola do Bom Samaritano, a caridade cristã é simplesmente, em primeiro lugar, a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc». De seguida, juntam-se outros dois elementos, ou seja, que «a atividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias», pois não sendo ideologia nem estratégia, é pura e simplesmente «atualização, aqui e agora, daquele amor de que o ser humano sempre tem necessidade»; e também não deve ser exercida «em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo, pois o amor é gratuito; não e realizado para alcançar outros fins».
Imediata, independente e gratuita: assim se há de caraterizar a atitude cristã autêntica e a ação sociocaritativa. Mas é no conjunto que tais caraterísticas valem, da primeira à última, porque todas se dirigem ao outro como pessoa, irredutível sempre a qualquer quantificação ou instrumentalização – mesmo com aquelas “boas intenções” que não enchem propriamente o céu…
O outro – e o outro necessitado, em primeiro lugar e como opção preferencial – é sempre e em qualquer circunstância que o atinja uma pessoa, isto é, realidade espiritual, enquanto ser que, materializado embora, ultrapassa a quantidade que tenha pela qualidade que é. Como ser humano, com direitos universalmente reconhecidos, ainda que frequentemente descurados; e, para nós os crentes, como criatura divina, que vale em cada um o preço infinito com que Cristo o redimiu.
É essa condição espiritual de cada ser humano que exige um tratamento equivalente e que começa exatamente por reconhecê-lo assim. Daí que a atenção aos pobres tenha de começar por reconhecê-los como pessoas, e se entenda a frase do Papa Francisco, quando lamenta: «a pior descriminação de que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual».
Mas, tomando o número 200 da Evangelii Gaudium no seu conjunto, detalhemo-lo em três possíveis “alíneas”. A primeira, que já indiquei, é essa mesma, de constatar negativamente a falta de atenção à densidade espiritual dos pobres. O Papa chama-lhe “descriminação” e dirige-se diretamente aos católicos, como que em exame de consciência, que nenhum de nós deixará de fazer…
Seguidamente, o Papa sublinha que «a imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé» e «necessidade de Deus», requerendo da nossa parte a transmissão da bênção, da amizade e da palavra divinas, bem como a celebração sacramental e a possibilitação de crescimento na fé. Tudo isso que nos fez tão bem a nós – a fé e o crescimento na fé – é o que devemos aos outros, especialmente aos que mais precisam, no corpo ou no espírito, sendo que, enquanto pessoas, as necessidades podem começar num ou noutro, mas são sempre incindíveis. O clássico ideal de “alma sã em corpo são” teve na atuação de Cristo, Verbo incarnado, a mais alta das concretizações, alimentando a fome do pão quotidiano e despertando o apetite do “Pão da vida”, ou fazendo da água do poço da samaritana o sinal sugestivo da água “da vida eterna”.
Daqui que o Papa conclua este número afirmando assim: «A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária».
Para quem tivesse uma compreensão mais chã da opção preferencial pelos pobres, que os últimos Papas têm repetidamente sublinhado, esta afirmação poderia parecer espiritualista ou quase alienante. Mas para quem tenha, como o Papa Francisco, uma visão evangélica das coisas, alienante seria, bem pelo contrário, alhear-se ou esquecer que em cada ser humano persiste, mais ou menos conscientemente, a personalidade irredutível que, em cada resposta que se lhe dê, espera respeito e consideração por aquilo que verdadeiramente é, como realidade consciente e livre, “espiritual” em suma. E, se não tivermos isto mesmo como ponto de partida e motivação profunda, nunca corresponderemos à necessidade do próximo à medida da sua dignidade e grandeza.
De tentativas de resolução social meramente quantitativas, está a história cheia e tragicamente cheia. Ao egoísmo de indivíduos alienados da sua natureza relacional, sucederam-se estratégias “sociais”, algumas com generosidade inquestionável, mas alienadas também da densidade pessoal de cada ser humano. A uma e outras, a Doutrina Social da Igreja adianta-se com a perspetiva evangélica da humanidade integral: que só é de todos quando começa por ser de cada um; e de cada um com os outros e para os outros.
Se recuarmos ao número anterior da exortação, encontramos afirmações ainda mais explícitas do Papa Francisco, sobre esta consideração espiritual dos pobres. Escreve que o nosso compromisso com eles não se circunscreve às ações e aos programas de promoção e assistência, que necessariamente inclua, mas consiste “prioritariamente” na atenção que lhes prestamos, preocupando-nos verdadeiramente com eles e procurando efetivamente o seu bem.
Para concluir, glosando uma consideração de João Paulo II: «Quando amado, o pobre é estimado como de alto valor, e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação» (Evangelii Gaudium, 199).
Concluo esta catequese com um ponto ainda, que me parece inevitável. Refiro-me à necessidade evangelicamente básica de considerarmos a pobreza, não como algo que atinge alguns, mas como condição em que nos incluamos todos.
Parto de outra frase do Papa Francisco, tão curta como as coisas essenciais. Quando exclama: «Desejo uma Igreja pobre para os pobres» (Evangelii Gaudium, 198). Entende, com isso, que não há outro modo de coincidirmos com Cristo, que «se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9), vendo aqui o próprio «estilo de Deus», como aliás escreve na sua mensagem quaresmal. E, revelando-se Deus na pobreza de Cristo, é na pobreza dos outros que Cristo nos espera, para nos evangelizar também.
São tão belas como programáticas estas afirmações do Papa Francisco: «[Os pobres] nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles» (Evangelii Gaudium, 198).
Um ciclo inteiro de contribuição recíproca, em que a riqueza divina se ganha quando se dá, para a ganharmos de quem a recebe. No mútuo esvaziamento de si circula a riqueza divina, na terra como no céu, e seremos cada um para todos e todos para cada um. Nem outra coisa aprenderemos nesta Semana Maior, à volta da cruz em que Deus se entregou para ser a nossa vida. Nesse mesmo sentimento, ressuscitaremos nós também.
+ Manuel Clemente
Concluindo as catequeses quaresmais, que este ano sublinharam algumas passagens do quarto capítulo da exortação apostólica Evangelii Guadium, do Papa Francisco, sobre “a dimensão social da evangelização”, detenho-me hoje no seu número 200, onde afirma que «a pior discriminação de que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual».
Pode parecer estranha a injunção… Na verdade, o Papa não diz apenas que estamos mal quando descuidamos os pobres. Creio que qualquer um de nós o dirá, crentes ou não crentes, na primeiríssima base duma humanidade comum, que exige que olhemos uns pelos outros, especialmente por quem mais precisa de ser apoiado. Com maior ou menor coerência prática, poucos nos atreveríamos a dizer o contrário, ou menos do que isso.
Mas o Papa diz mais e quase outra coisa. Diz e declara que entre tantas descriminações que os pobres podem sofrer – e tantas vezes sofrem, de facto - a pior é a falta de cuidado espiritual.
- Que ordem de razões leva o Papa a falar assim? Então, a primeiríssima urgência e a necessidade irrecusável que a pobreza de tantos hoje apresenta não têm a ver com as condições materiais de vida e a própria subsistência até?
Na ordem da ação imediata, certamente que é assim. Na encíclica Deus caritas est, notável documento do Papa Bento XVI, define-se a caridade cristã com essa insofismável prioridade. Vem no seu número 31 – um daqueles trechos que deveríamos saber de cor e aprender na primeira catequese -, referindo «os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial».
Aí escreve o Papa Ratzinger: «Segundo o modelo oferecido pela parábola do Bom Samaritano, a caridade cristã é simplesmente, em primeiro lugar, a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc». De seguida, juntam-se outros dois elementos, ou seja, que «a atividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias», pois não sendo ideologia nem estratégia, é pura e simplesmente «atualização, aqui e agora, daquele amor de que o ser humano sempre tem necessidade»; e também não deve ser exercida «em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo, pois o amor é gratuito; não e realizado para alcançar outros fins».
Imediata, independente e gratuita: assim se há de caraterizar a atitude cristã autêntica e a ação sociocaritativa. Mas é no conjunto que tais caraterísticas valem, da primeira à última, porque todas se dirigem ao outro como pessoa, irredutível sempre a qualquer quantificação ou instrumentalização – mesmo com aquelas “boas intenções” que não enchem propriamente o céu…
O outro – e o outro necessitado, em primeiro lugar e como opção preferencial – é sempre e em qualquer circunstância que o atinja uma pessoa, isto é, realidade espiritual, enquanto ser que, materializado embora, ultrapassa a quantidade que tenha pela qualidade que é. Como ser humano, com direitos universalmente reconhecidos, ainda que frequentemente descurados; e, para nós os crentes, como criatura divina, que vale em cada um o preço infinito com que Cristo o redimiu.
É essa condição espiritual de cada ser humano que exige um tratamento equivalente e que começa exatamente por reconhecê-lo assim. Daí que a atenção aos pobres tenha de começar por reconhecê-los como pessoas, e se entenda a frase do Papa Francisco, quando lamenta: «a pior descriminação de que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual».
Mas, tomando o número 200 da Evangelii Gaudium no seu conjunto, detalhemo-lo em três possíveis “alíneas”. A primeira, que já indiquei, é essa mesma, de constatar negativamente a falta de atenção à densidade espiritual dos pobres. O Papa chama-lhe “descriminação” e dirige-se diretamente aos católicos, como que em exame de consciência, que nenhum de nós deixará de fazer…
Seguidamente, o Papa sublinha que «a imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé» e «necessidade de Deus», requerendo da nossa parte a transmissão da bênção, da amizade e da palavra divinas, bem como a celebração sacramental e a possibilitação de crescimento na fé. Tudo isso que nos fez tão bem a nós – a fé e o crescimento na fé – é o que devemos aos outros, especialmente aos que mais precisam, no corpo ou no espírito, sendo que, enquanto pessoas, as necessidades podem começar num ou noutro, mas são sempre incindíveis. O clássico ideal de “alma sã em corpo são” teve na atuação de Cristo, Verbo incarnado, a mais alta das concretizações, alimentando a fome do pão quotidiano e despertando o apetite do “Pão da vida”, ou fazendo da água do poço da samaritana o sinal sugestivo da água “da vida eterna”.
Daqui que o Papa conclua este número afirmando assim: «A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária».
Para quem tivesse uma compreensão mais chã da opção preferencial pelos pobres, que os últimos Papas têm repetidamente sublinhado, esta afirmação poderia parecer espiritualista ou quase alienante. Mas para quem tenha, como o Papa Francisco, uma visão evangélica das coisas, alienante seria, bem pelo contrário, alhear-se ou esquecer que em cada ser humano persiste, mais ou menos conscientemente, a personalidade irredutível que, em cada resposta que se lhe dê, espera respeito e consideração por aquilo que verdadeiramente é, como realidade consciente e livre, “espiritual” em suma. E, se não tivermos isto mesmo como ponto de partida e motivação profunda, nunca corresponderemos à necessidade do próximo à medida da sua dignidade e grandeza.
De tentativas de resolução social meramente quantitativas, está a história cheia e tragicamente cheia. Ao egoísmo de indivíduos alienados da sua natureza relacional, sucederam-se estratégias “sociais”, algumas com generosidade inquestionável, mas alienadas também da densidade pessoal de cada ser humano. A uma e outras, a Doutrina Social da Igreja adianta-se com a perspetiva evangélica da humanidade integral: que só é de todos quando começa por ser de cada um; e de cada um com os outros e para os outros.
Se recuarmos ao número anterior da exortação, encontramos afirmações ainda mais explícitas do Papa Francisco, sobre esta consideração espiritual dos pobres. Escreve que o nosso compromisso com eles não se circunscreve às ações e aos programas de promoção e assistência, que necessariamente inclua, mas consiste “prioritariamente” na atenção que lhes prestamos, preocupando-nos verdadeiramente com eles e procurando efetivamente o seu bem.
Para concluir, glosando uma consideração de João Paulo II: «Quando amado, o pobre é estimado como de alto valor, e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação» (Evangelii Gaudium, 199).
Concluo esta catequese com um ponto ainda, que me parece inevitável. Refiro-me à necessidade evangelicamente básica de considerarmos a pobreza, não como algo que atinge alguns, mas como condição em que nos incluamos todos.
Parto de outra frase do Papa Francisco, tão curta como as coisas essenciais. Quando exclama: «Desejo uma Igreja pobre para os pobres» (Evangelii Gaudium, 198). Entende, com isso, que não há outro modo de coincidirmos com Cristo, que «se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9), vendo aqui o próprio «estilo de Deus», como aliás escreve na sua mensagem quaresmal. E, revelando-se Deus na pobreza de Cristo, é na pobreza dos outros que Cristo nos espera, para nos evangelizar também.
São tão belas como programáticas estas afirmações do Papa Francisco: «[Os pobres] nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles» (Evangelii Gaudium, 198).
Um ciclo inteiro de contribuição recíproca, em que a riqueza divina se ganha quando se dá, para a ganharmos de quem a recebe. No mútuo esvaziamento de si circula a riqueza divina, na terra como no céu, e seremos cada um para todos e todos para cada um. Nem outra coisa aprenderemos nesta Semana Maior, à volta da cruz em que Deus se entregou para ser a nossa vida. Nesse mesmo sentimento, ressuscitaremos nós também.
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