Texto integral da Homilia de D. Manuel Clemente, na MISSA CRISMAL 2014:
«Uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão»
Caríssimos irmãos, tão plenamente reunidos nesta Missa Crismal:
Na oração coleta de há pouco, pedimos a Deus que, participando na
consagração de Cristo, sejamos testemunhas do seu Evangelho. Petição que
nos revela, a todos os batizados, uma condição essencial, que é também a
nossa destinação irrecusável. Participamos da consagração de Cristo,
oferecidos com Ele inteiramente ao Pai. Somos sagrados e consagrados
pelo batismo recebido e, sendo o caso de tantos aqui, pelas ordens
sacras também. Não são atos exteriores ou meramente formais, são
momentos de graça para a vida toda, dando-lhe devoção e obrigação. E a
obrigação é sobretudo uma, não forçada mas forçosa, a de alargarmos no
mundo o Reino de Deus, levando a toda a parte o Evangelho de Cristo.
A consagração cristã é a de Cristo em nós, assim destinados à
glorificação de Deus. Glória de Deus que é o homem vivo, manifestando o
seu poder criador; glorificação de Deus, respeitando a sua obra pela
salvaguarda de quanto criou e cria, e muito especialmente de cada ser
humano. Para que tudo aconteça de Deus para Deus, na vida da humanidade e
do mundo, sem se perder num caminho irrecusavelmente entregue à nossa
responsabilidade. Nisto mesmo nos insere a todos a consagração batismal,
na dimensão mais ampla do sacerdócio comum dos fiéis; a tudo isto nos
destinamos também, os que recebemos a consagração sacerdotal de Cristo,
no sentido ministerial do termo e em benefício geral do Povo de Deus.
Seja dum modo, seja doutro, é a Deus que pertencemos, é na sua obra que
estamos e queremos estar, porque o Pai trabalha sempre e Cristo
igualmente o faz (cf. Jo 5, 17) - e assim nós com Ele, por Ele e n’Ele.
Ganha aqui todo o sentido a Missa Crismal que celebramos. Na Palavra
que ouvimos, nos óleos que benzemos, no Pão que comungamos, no envio
final em que saímos, tudo é consagração a Deus para a evangelização do
mundo. Somos de Deus quando Lhe recuperamos a semelhança, coincidindo
com os sentimentos do Pai, que todos se resumem na salvação do mundo.
Continua em nós a revelação disto mesmo: «Tanto amou Deus o mundo, que
lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não
se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).
Comprová-lo hoje e nas difíceis circunstâncias atuais, é obrigação e
há de ser devoção de cada um de nós: dos que no batismo recebemos o
Espírito filial de Cristo; e dos que o Espírito constituiu, pela
ordenação, sinais vivos e operantes de Cristo Sacerdote e Pastor.
Na Diocese de Lisboa, tais disposições e propósitos têm um
significado concreto e programático até ao final de 2016. Refiro-me ao
caminho conjunto de oração, reflexão e ensaio que nos levará ao Sínodo
do final desse ano, quando se comemorarem os três séculos da nossa
qualificação “patriarcal”. Qualificação que o Papa Clemente XI
justificava pelo empenho na propagação da fé. Empenho régio, como fora
então; empenho de todos, como há de ser agora.
Corresponderemos deste modo à determinação insistente do Papa
Francisco, que a exortação apostólica Evangelii Gaudium expressa com
tanta clareza e encargo, em frases como as seguintes: «Sublinho que,
aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado
programático e tem consequências importantes. Espero que todas as
comunidades se esforcem por atuar os meios necessários para avançar no
caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as
coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma “simples
administração”. Constituamo-nos em “estado permanente de missão”, em
todas as regiões da terra» (EG, 25). E ainda: «Na sua missão de promover
uma comunhão dinâmica, aberta e missionária, [o bispo] deverá estimular
e procurar o amadurecimento dos órgãos de participação propostos pelo
Código de Direito Canónico e de outras formas de diálogo pastoral […].
Mas o objetivo destes processos participativos não há de ser
principalmente a organização eclesial, mas o sonho missionário de chegar
a todos» (EG, 31). Ora, o primeiro “órgão de participação” que o Papa
refere em nota é precisamente o Sínodo diocesano, como nós nos dispomos a
cumprir, depois da aprovação unânime e até entusiástica do Conselho
Presbiteral, em janeiro passado.
O Sínodo reunir-se-á, querendo Deus, no final de 2016. Terá a
composição prevista no Código e dele sairão indicações para reforçar o
empenho missionário de toda a vida diocesana, no sentido que a “missão”
ganhou nos últimos tempos, mais sociocultural do que geográfico. E, como
cada assembleia do Sínodo dos Bispos é preparada por Lineamenta, que
são antes estudados pelos seus membros e dioceses, e depois por um
Instrumentum laboris que, concentrando a reflexão feita, é a base
próxima dos trabalhos sinodais propriamente ditos, também o nosso sínodo
será precedido pela reflexão das comunidades cristãs da diocese,
durante os dois próximos anos pastorais, tendo por base e como que
lineamenta o próprio texto da exortação apostólica do Papa Francisco.
Trimestre a trimestre e capítulo a capítulo, assim se fará do Outono
deste ano até à Páscoa de 2016.
A reflexão será acompanhada pela oração intensa e o reforço ou
ensaio de modos e meios de projeção missionária de cada comunidade –
paróquias, institutos, famílias e todas as formas agregativas da vida
cristã -, local a local, ambiente a ambiente, processo a processo.
Certamente apoiados pela comissão preparatória e outras instâncias
diocesanas, todos procuraremos a melhor maneira de concretizar o sonho
do Papa Francisco, que assim corresponde à leitura dos “sinais dos
tempos”; leitura que o Concílio indicou como necessária e as atuais
mutações tanto requerem. Com tudo o que formos acrescentando nesse
sentido, a comissão preparatória poderá depois elaborar como que um
instrumentum laboris, sobre o qual trabalharão os membros do sínodo
diocesano.
É disto que fundamentalmente se trata e assim basicamente faremos nos
próximos anos pastorais, a partir de cada meio e local. Não tanto da
diocese para as comunidades, mas sobretudo destas para o todo, que se há
de apurar depois. E não encontraremos melhor inspiração para a
caminhada sinodal que começamos do que estas palavras do já saudoso
Cardeal Policarpo, que continua bem presente na nossa memória
agradecida. Escreveu ele, o constante perscrutador de “sinais”: «Por
mais exigente que seja esta pastoral de encarnação, temos de continuar a
incentivá-la. A formação dos cristãos, sobretudo dos jovens, tem de
criar neles esta atenção amorosa à realidade dos homens, onde são
chamados a ser testemunhas. Sem esta atenção e esta paixão pela
realidade concreta da vida dos homens, a leitura dos “sinais dos tempos”
não passará de um exercício cultural. Só a fé e o amor geram a intuição
profética» (D. José da Cruz Policarpo, Obras Escolhidas, vol. 1, p.
434).
Ouvimos no Evangelho que, naquele dia, «estavam fixos em Jesus os
olhos de toda a sinagoga». Fácil é de verificar, na presente “crise”,
como algo de semelhante acontece agora, em relação à Igreja e aos
cristãos, cada cristão, ordenado, consagrado ou leigo, desde que
conhecido como tal. Crentes e não crentes, olham-nos com expectativa e
exigem-nos redobrada coerência de ideias e comportamentos. Não podemos
defraudá-los, especialmente aos pobres de todas as pobrezas, as que
sobram de ontem e as que aparecem agora.
Ouvimos Jesus, a apresentar-se como o “ungido” – que no grego dos
Evangelhos é “Cristo” – para «anunciar a boa nova aos pobres». Em Missa
Crismal, reforcemos a convicção de que, por unção batismal e sacerdotal,
não nos apresentamos para outra coisa se não esta mesma e tão urgente.
Lembra-o o Papa Francisco, em palavras fortes: «Embora se possa dizer,
em geral, que a vocação e a missão próprias dos féis leigos é a
transformação das diversas realidades terrenas, para que toda a
atividade humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém pode
sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social»
(EG, 201).
Verifico, várias vezes por conhecimento direto, que há leigos bem
presentes nas várias realidades sociais afetadas pela crise e que, por
palavras e atitudes práticas, procuram realmente a transformação
evangélica das coisas, impregnando-as de solidariedade e justiça. No
legítimo pluralismo de opções e métodos que inteiramente lhes cabe, não
esquecem o objetivo essencial que o Papa recorda. Igualmente verifico
que, quer pela exortação dos seus pastores, quer pela ação de
instituições sociocaritativas de incidência vária, as comunidades
cristãs se têm redobrado nas respostas que dão às necessidades sociais
acrescidas.
Por tudo dou graças e por eles peço a Deus, que os inspire e reforce.
Nenhum de nós deixará cair os braços ou fechará o coração ao clamor dos
pobres. Pelo contrário, levaremos muito a sério a centralidade dos
pobres na vida e na ação da Igreja, que para eles diretamente existe.
Como não sentir e assumir profundamente as palavras que brotaram do
grande coração do nosso Papa Francisco: «Desejo uma Igreja pobre e para
os pobres. […] A nova evangelização é um convite a reconhecer a força
salvífica das suas vidas e a colocá-los no centro do caminho da Igreja»
(EG, 198).
Quando se fala assim de pobreza, não só no sentido de carências a
colmatar com prontidão, mas também como verdade de cada um de nós, que
não subsiste sem Deus e sem os outros, transitamos para a verdadeira
chave da questão, que o Papa Francisco identifica como “antropológica”,
ou seja, respeitante ao que é o ser humano e como há de ser reconhecido,
salvaguardado e promovido. Por isso escreve na sua exortação que «a
crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem,
há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser
humano» (EG, 55).
Também o têm dito os Bispos de Portugal, em sucessivos
pronunciamentos, que importa receber e cumprir. Insistem no valor da
família, que há de ser defendida na grande potencialidade social que
realmente contém. Na verdade, os valores da solidariedade espontânea, da
transmissão da vida, do mútuo cuidado de mais novos e mais velhos,
encontram no ambiente familiar tanto a melhor base como a melhor escola,
bem como o comprovado reduto, em tantos casos: «A família é o modelo, o
dever ser de qualquer convivência humana», afirmam os Bispos,
requerendo para ela um apoio social e político logicamente prioritário
(cf. Conferência Episcopal Portuguesa, Nota Pastoral – A força da
família em tempos de crise, 11 de abril de 2013. Cf. Carta Pastoral – A
propósito da ideologia do género, 14 de novembro de 2014).
É também sobre essa solidariedade aprendida e alargada, da família à
sociedade, que, entendem os Bispos, pode e deve ser encarada a
gravíssima problemática do trabalho e da sua falta. Problemática que
todos somos chamados a resolver, com a inadiável responsabilidade de
cada um, do Estado às empresas e a todos os parceiros sociais, uma vez
que «estão em causa um direito humano e um aspeto fundamental do bem
comum, que requerem uma maior sensibilidade social e mais fortes laços
de solidariedade, que levam à corresponsabilização pelos que estão em
piores condições» (Conferência Episcopal Portuguesa, Mensagem – Desafios
éticos do trabalho humano, 14 de novembro de 2014).
Nisto estamos e havemos de estar, irmãos e irmãs, com a máxima
urgência e empenho. Espero mesmo que a caminhada sinodal que encetamos -
refletindo, rezando e ensaiando algo de inovador, para corresponder aos
desafios e perplexidades que a atualidade nos apresenta - contribua
também nesse sentido da família mais possibilitada e do trabalho mais
distribuído. Não será a primeira vez, se as comunidades cristãs se
tornarem verdadeiros “laboratórios” daquela humanidade nova que começou
em Cristo, para glória de Deus e felicidade de todos.
Finalmente, antecipo já o que vos pedirei de seguida, caríssimos
diocesanos, nesta Missa Crismal: «Rezai pelos vossos presbíteros, para
que o Senhor derrame abundantemente sobre eles as suas bênçãos, a fim de
que sejam ministros fiéis de Cristo Sumo Sacerdote e vos conduzam a
Ele, única fonte de salvação».
Sendo verdade que depende da oração o número bastante de servidores
da messe, não é menos verdade que também depende da vossa oração a
qualidade requerida, com que os atuais levaremos o nosso ministério.
Rezai, rezai muito pelos vossos sacerdotes, pois só na oração se
acrescenta aquela graça que transforma criaturas frágeis em sacramentos
vivos de Cristo Sacerdote e Pastor.
Sé de Lisboa, Missa Crismal, 17 de abril de 2014
+ Manuel Clemente
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