Sob o olhar de Cristo
O Senhor voltou-Se e fitou os olhos em Pedro… Amados irmãos, ao
iniciarmos esta Semana Maior, peçamos a Deus que ela seja
verdadeiramente “santa”, para todos e cada um de nós, que a queremos
observar e cumprir.
Não é pedir pouco, como quem folheasse um calendário, mesmo litúrgico
e só por folhear. Nem aludindo a coisas acessórias, como tantas vezes
acontece.
Sim, voltaremos a ouvir falar de coisas acessórias e até
dispensáveis, como amêndoas, folares e culinária da época. Voltaremos às
idas à terra, aos usos e costumes, mais ou menos pascais, mais ou menos
convertidos. Voltaremos até a ouvir falar de ritos pagãos e primaveris,
passados ou supostos. Com tudo isto se encherão páginas e notícias,
como se por si bastassem, ou justificassem os próximos dias… Podemos
contar com isso.
Mas realmente não bastam, nem se justificariam. Por antiqualhas que
fossem, não chegariam até nós com a frescura original que esta semana
contém e oferece, assim a aceitemos de verdade. A novidade desta semana,
sempre reencontrada, está em superar todo o tempo, mesmo que marcado
pelo primeiro plenilúnio de cada Primavera. A novidade que
experimentaremos é ser definitiva há dois milénios, incluindo-nos já
naquele dia sem ocaso da Páscoa do Senhor Jesus. Só por isso a semana é
“santa”. Só por isso a acolhemos inteira e autêntica - estando nós
contritos.
Ouvíamos há pouco, na Paixão segundo São Lucas, como Jesus
aprisionado e em casa do sumo-sacerdote se voltou para trás e fitou os
olhos em Pedro. Reparámos também como aquele olhar do Mestre penetrou
profundamente na alma do discípulo, que entretanto O negara por três
vezes.
Lembramos como fora pouco antes, com Pedro a prometer-lhe fidelidade,
viesse o que viesse. E como Jesus o desenganara de presunções
indevidas. Seguira-se a sua prisão e a tibieza dos discípulos. Seguiu-se
o olhar de Jesus e tudo o mais que nos deixou a pensar.
– Problema de Pedro, por presumir demais? Problema de Pedro e
problema dos outros, porventura, porque afinal Jesus não arrasara os
inimigos nem mostrara o seu poder, como julgavam que seria… De tudo um
pouco, ou demasiado, num misto de desilusão e cobardia deles. Até que
aquele olhar de Jesus fez do discípulo um outro homem – o São Pedro que
veneramos.
Antes disso era ele e eramos nós, ou somo-lo ainda, quando a relação
com Jesus é mais pelos nossos olhos do que pelos seus. Mais pelos nossos
apriorismos e expetativas, “religiosas” que sejam, do que pela verdade
que Ele é, com a novidade absoluta que transporta.
Foi o olhar de Jesus que mudou Pedro, como nos quer mudar agora.
Forte, como sol abrasador. Luminoso, como luz sem sombra. Se o
recebermos de frente, a esse olhar, se não nos escondermos dele nalguma
ruga da alma, começaremos a ser verdadeiramente discípulos. Ou melhor,
permitiremos de vez que o Senhor nos faça assim. Começaremos pelas
lágrimas, terminaremos diferentes. Uma semana de caminho não será
demais.
Sob o olhar de Jesus, como se fixou em Pedro. Também como depois
olharia Herodes, quando este lhe pedia milagres, quase fantasias. E
Jesus nada fez e nada disse, pois a tais despropósitos só os olhos
respondem.
Ou como olharia Jesus aquele tíbio Pilatos, que tanto o queria soltar
como temia os seus acusadores, acabando por condená-lo à morte...
Entretanto, olharia também e de relance aquela multidão, que gritava:
«Crucifica-o! Crucifica-o!» Num olhar de comiseração, decerto, como
quem não sofre apenas a maldade dos outros, mas também o dano que ela
causa a quem a faz.
E o olhar sobre as mulheres que o lamentavam, quando se voltou para
elas e lhe disse: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai
antes por vós mesmas e pelos vossos filhos».
Ou ainda o olhar sobre o malfeitor convertido, quando lhe respondeu
de cruz para cruz: «Hoje estarás comigo no Paraíso». – Qual de nós não
gostaria de ser olhado assim, e com tal promessa? E podemos sê-lo,
dizendo o que ele disse: «Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com a
tua realeza!» Pois a terra do seu reino são os corações convertidos.
Mantenhamo-nos nestes dias sob o olhar forte de Cristo. O que incidiu
sobre Pedro; o que levantou sobre as multidões, que tanto o aclamam
hoje como o detestarão sexta-feira; o que manterá imperturbável sobre um
Pilatos hesitante; o que lançará na cruz sobre o ladrão que lhe pedia o
reino; o último que lançaria para chegar a toda a terra – como a nós
que aqui estamos, sob o seu olhar também.
Vivamos esta semana sob o olhar de Jesus. Nada nos distraia dele, que
também não se distrai de nós. - Mas onde o identificaremos, a esse
olhar de Jesus, que nos alcance e converta?
Um verso português, disse-o assim: «Só o olhar daqueles que
escolheste nos dá o Teu sinal entre os fantasmas» (Sophia). É uma pista
segura, tanto mais que sabemos como Jesus nos olha pelos olhos dos
outros. Quando os faz tão excecionalmente claros que quase nos ofuscam.
Mas também quando nos pede de comer ou beber, quando nos pede
agasalho ou abrigo, quando nos pede cuidado ou visita… Ou quando nos
pede conselho, atenção e consolo. Porque os olhos pedem sempre e ainda
mais do que as palavras que encontrem. O som esvai-se, o olhar perdura.
– Naquela altura, que diria o olhar de Jesus sobre Pedro? Disse o
suficiente, mesmo sem palavras. Lembrou-lhe que O negara três vezes. À
criada que o incluíra entre os discípulos: «Não O conheço, mulher». A
outro, que insistira em que era um deles: «Homem, não sou». E ainda a um
terceiro: «Homem, não sei o que dizes». Sabia bem demais, como não pôde
negar diante do olhar de Jesus. Agora a resposta foi absolutamente
outra. Também sem palavras, mas chorando amargamente. Doravante, quando
Pedro falar, será doutra maneira, com a total diferença que um só olhar
criara.
Porque naquele olhar de Jesus, Pedro revira muitos mais. O primeiro
que lhe lançara, ao chamá-lo nas margens do lago. E depois tantos
outros, para o interrogar, corrigir e estimular, da Galileia donde
tinham partido a Jerusalém onde finalmente estavam. Tudo se simplificava
agora, a pedir conversão e reencontro. E assim foi.
Assim foi com Pedro e assim há de ser com cada um de nós, que nos
dispomos a permanecer com o Senhor nestes dias – e sob o seu olhar
constante, dos Ramos à Páscoa.
Revejamos o olhar com que Jesus nos tem chamado, interrogado,
corrigido e estimulado, desde que pela primeira vez o recebemos. Talvez
pelos olhos familiares de quem nos trouxe à vida e nos encheu de
esperança; pelos olhos de quem na Igreja nos instruiu na fé e nos
acompanhou também; pelos olhos límpidos de quem nos espelhou o céu, ou
pelos olhos bondosos que nos acalentaram na terra; pelos olhos tristes
ou cansados de quem pediu ou esperou.
Deixemos que um olhar nos refaça, o de Jesus apenas. Regressemos com
Pedro ao olhar de Jesus. Para que rebrilhe em nós e a vida recomece.
Sé de Lisboa, 20 de março de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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