Quarta meditação de Quaresma
Fr. Raniero Cantalamessa, OFM
Cap
Pregador da Casa Pontifícia
MATRIMÓNIO E FAMÍLIA na
"Gaudium et Spes" e na atualidade
Dedico esta meditação a uma reflexão
espiritual sobre a Gaudium et Spes, constituição pastoral sobre a Igreja
no mundo. Dos vários problemas da sociedade abordados neste texto
conciliar – cultura, economia, justiça social, paz –, o mais atual e
problemático é o do matrimónio e família. A ele a Igreja dedicou os dois
últimos sínodos dos bispos. A maioria de nós aqui presentes não vive
diretamente esse estado de vida, mas todos temos de conhecer os seus
problemas para compreender e ajudar a grande maioria do povo de Deus que
vive no matrimónio, especialmente agora que ele está no centro de
ataques e ameaças de todas as partes.
A Gaudium et Spes trata a fundo da
família no início da segunda parte (núm. 46-53). Não há necessidade de
citar as suas declarações, que refletem a doutrina católica tradicional
que todos nós conhecemos, além do novo destaque dado ao amor mútuo entre
os cônjuges, abertamente reconhecido como um bem do matrimónio, também
este primário, junto com a procriação.
Sobre o matrimónio e a família, a
Gaudium et Spes, de acordo com o seu bem conhecido procedimento, destaca
antes de tudo as conquistas positivas do mundo moderno (“as alegrias e
as esperanças”), e, em segundo lugar, os problemas e os perigos (“as
tristeza e as angústias”). Eu proponho seguir o mesmo método, tendo em
conta, no entanto, as mudanças dramáticas que ocorreram neste campo ao
longo do meio século transcorrido desde então. Evocarei rapidamente o
desígnio de Deus sobre matrimónio e família, porque é sempre dele que
nós, crentes, devemos partir, para em seguida ver o que a revelação
bíblica pode trazer para a solução dos problemas atuais. Deliberadamente
me abstenho de tocar alguns problemas particulares discutidos no sínodo
dos bispos, sobre os quais só o Papa tem agora o direito de ainda dizer
alguma palavra.
1. Matrimônio e família no projeto divino e no Evangelho de Cristo
O livro do Gênesis tem dois relatos
diferentes da criação do primeiro casal humano, que remontam a duas
tradições diferentes: a javista (século X a.C.) e a mais recente (século
VI a.C.), chamada de “sacerdotal”. Na tradição sacerdotal (Gênesis 1,
26-28), o homem e a mulher são criados simultaneamente, não um do outro;
há uma relação entre ser homem e mulher e ser à imagem de Deus: “Deus
criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os
criou”. O fim primário da união entre o homem e a mulher é visto no
serem fecundos e encherem a terra.
Na tradição javista, que é a mais
antigo (Gn 2, 18-25), a mulher vem do homem; a criação dos dois sexos é
vista como um remédio para a solidão (“Não é bom que o homem esteja só;
vou lhe dar uma ajuda que lhe seja semelhante”); mais que o fator da
procriação, acentua-se o fator unitivo (“o homem se unirá à sua mulher e
serão os dois uma só carne”); cada um é livre diante da própria
sexualidade e da sexualidade do outro: “ambos estavam nus, o homem e sua
mulher, mas não se envergonhavam”.
A explicação mais convincente do
porquê desta “invenção” divina da distinção dos sexos eu encontrei não
num exegeta, mas em um poeta, Paul Claudel:
“O homem é um ser orgulhoso; não
havia outra maneira de fazê-lo compreender o próximo senão fazê-lo vir
da sua carne; não havia outra maneira de fazê-lo entender a dependência e
a necessidade se não mediante a lei sobre ele deste ser diferente [a
mulher], devida ao simples fato de que esse ser existe”[1].
Abrir-se ao outro sexo é o primeiro
passo para se abrir ao outro que é o próximo, até o Outro com letra
maiúscula que é Deus. O matrimônio nasce sob o signo da humildade; é
reconhecimento de dependência e, portanto, da própria condição de
criatura. Enamorar-se de uma mulher ou de um homem é fazer o ato mais
radical de humildade. É tornar-se mendicante e dizer ao outro: “Eu não
basto para mim mesmo; eu preciso do teu ser”. Se, como pensava
Schleiermacher, a essência da religião consiste no “sentimento de
dependência” (Abhaengigheitsgefühl) perante Deus, então podemos dizer
que a sexualidade humana é a primeira escola da religião.
Até aqui, o projeto de Deus. Não é
explicável o resto da própria Bíblia, no entanto, se, junto com o relato
da criação, não se leva em conta ainda o da queda, em especial o que é
dito à mulher: “Multiplicarei as tuas dores; na dor darás à luz os
filhos. Ao teu marido se voltará o teu instinto, mas ele te dominará”
(Gn 3,16). O predomínio do homem sobre a mulher faz parte do pecado do
homem, não do projeto de Deus; com aquelas palavras, Deus o prenuncia,
não o aprova.
A Bíblia é um livro divino-humano não
só porque tem como autores Deus e o homem, mas também porque descreve,
misturadas entre si, a fidelidade de Deus e a infidelidade do homem.
Isto é particularmente evidente quando se compara o projeto de Deus
sobre o matrimônio e a família com a sua aplicação prática na história
do povo escolhido. Para ficar no livro do Gênesis, o filho de Caim,
Lameque, já viola a lei da monogamia tomando duas esposas. Noé, com a
sua família, se mostra uma exceção em meio à corrupção geral do seu
tempo. Os mesmos patriarcas Abraão e Jacó têm filhos com mais de uma
mulher. Moisés autoriza a prática do divórcio; Davi e Salomão mantêm um
verdadeiro harém de mulheres.
Mais do que nas transgressões
práticas específicas, o afastamento do ideal inicial é visível na
concepção de fundo que se tem do matrimónio em Israel. O principal
obscurecimento se refere a dois pilares. O primeiro é que o matrimónio,
de fim, se torna meio. O Antigo Testamento, como um todo, considera o
matrimónio como uma estrutura de autoridade patriarcal, destinada
principalmente à perpetuação do clã. Neste sentido, devem ser entendidas
as instituições do levirato (Dt 25, 5-10), do concubinato (Gn 16) e da
poligamia provisória. O ideal de uma comunhão de vida entre o homem e a
mulher, fundada em uma relação pessoal e recíproca, não é esquecido, mas
passa a segundo plano em relação ao bem da prole. O segundo grande
obscurecimento se refere à condição da mulher: de companheira do homem,
dotada de igual dignidade, ela aparece cada vez mais subordinada ao
homem e em função do homem.
Um papel importante em manter vivo o
projeto inicial de Deus sobre o matrimónio é desempenhado pelos
profetas, em especial Oseias, Isaías, Jeremias e o Cântico dos Cânticos.
Assumindo a união do homem e da mulher como símbolo da aliança entre
Deus e seu povo, eles recolocavam em primeiro plano os valores do amor
mútuo, da fidelidade e da indissolubilidade que caracterizam a atitude
de Deus para com Israel.
Jesus, que veio “recapitular” a história humana, recapitula também o matrimónio.
“Alguns fariseus se aproximaram então
para testá-lo e lhe perguntaram: É lícito a um homem repudiar a sua
mulher por qualquer motivo? E ele respondeu: Não lestes que o Criador
desde o princípio os fez homem e mulher (Gn 1, 27) e disse: Por esta
razão, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher e os
dois serão uma só carne? (Gn 2, 24). Eles não são mais dois, e sim uma
só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19,3-6).
Os adversários se situam no âmbito
estreito da casuística de escola (se é lícito repudiar a mulher por
qualquer motivo ou se é preciso um motivo específico e sério). Jesus
responde desde o início a partir da raiz do problema. Em sua citação,
Jesus se refere aos dois relatos da instituição do matrimónio, toma
elementos de um e do outro, mas destaca especialmente o aspecto da
comunhão das pessoas.
O que se segue no texto, sobre o
problema do divórcio, também vai nessa direção; reafirma a fidelidade e a
indissolubilidade do vínculo matrimonial acima do próprio bem da prole,
que, no passado, fora usado para justificar poligamia, levirato e
divórcio:
“Eles objetaram: Por que então Moisés
ordenou dar-lhe carta de repúdio e mandá-la embora? Jesus lhes
respondeu: Por causa da dureza do vosso coração Moisés vos permitiu
repudiar vossas mulheres; mas no princípio não foi assim. Por isso vos
digo que qualquer um que repudia a sua mulher, exceto em caso de
concubinato, e se casa com outra comete adultério” (Mt 19, 7-9).
O texto paralelo de Marcos mostra
que, mesmo em caso de divórcio, o homem e a mulher se colocam, de acordo
com Jesus, em rigoroso pé de igualdade: “Quem repudia a sua mulher e se
casa com outra comete adultério contra ela; e se ela repudia o marido e
se casa com outro, comete adultério” (Mc 10, 11-12).
Com as palavras “O que Deus uniu, o
homem não separe”, Jesus afirma que há uma intervenção direta de Deus em
toda união matrimonial. A elevação do matrimónio a “sacramento”, isto
é, a sinal de uma ação de Deus, não se alicerça, portanto, unicamente no
frágil argumento da presença de Jesus nas bodas de Caná e no texto da
carta aos Efésios que fala do matrimônio como de um reflexo da união
entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 32); começa, implicitamente, com o
Jesus terreno e faz parte da sua religação das coisas com o início. João
Paulo II define o matrimônio como o “sacramento mais antigo”[2].
2. O que o ensinamento bíblico nos diz hoje
Esta é, em resumo, a doutrina da
Bíblia, mas não podemos deter-nos nela. “A Escritura – dizia São
Gregório Magno – cresce com quem a lê” (cum legentibus crescit) [3];
revela novas implicações à medida que novas perguntas são feitas. E,
hoje, as novas perguntas, ou provocações, sobre matrimónio e família são
muitas.
Estamos diante de uma contestação
aparentemente global do projeto bíblico sobre sexualidade, matrimônio e
família. Como comportar-se em face deste fenômeno inquietante? O
concílio abriu um método novo que é de diálogo, não de confronto com o
mundo; um método que não exclui a autocrítica. Devemos, penso eu,
aplicar este método também à discussão dos problemas do matrimônio e da
família. Aplicar este método de diálogo significa tentar ver se, mesmo
no fundo das contestações mais radicais, não há uma instância positiva a
ser acolhida.
A crítica ao modelo tradicional de
matrimónio e família que levou às hodiernas e inaceitáveis propostas de
desconstrucionismo começou com o iluminismo e o romantismo. Com
intenções diversas, esses dois movimentos se expressaram contra o
matrimônio tradicional visto exclusivamente nos seus “fins” objetivos: a
prole, a sociedade, a Igreja, e não o suficiente em si mesmo, no seu
valor subjetivo e interpessoal. Tudo se exigia dos futuros cônjuges
exceto que se amassem e se escolhessem livremente entre si. Ainda hoje,
em muitas partes do mundo, há casais que se conhecem e se vêm pela
primeira vez no dia das núpcias. A tal modelo, o iluminismo opôs o
matrimónio como pacto entre os cônjuges e o romantismo como comunhão de
amor entre os esposos.
Mas esta crítica não vai contra a
Bíblia, e sim a favor do seu sentido original! O concílio Vaticano II
recebeu esta instância quando reconheceu como bem igualmente primário do
matrimónio o amor e ajuda mútuos entre os cônjuges. São João Paulo II,
na linha da Gaudium et Spes, em uma das suas catequeses das
quartas-feiras, disse:
“O corpo humano, com o seu sexo, e a
sua masculinidade e feminilidade (...) é não apenas fonte de fecundidade
e de procriação, como em toda a ordem natural, mas inclui, desde o
início, o atributo esponsal, isto é, de expressar o amor: aquele amor em
que o homem-pessoa se torna dom e, através desse dom, cumpre o próprio
sentido do seu ser e existir”[4].
Em sua encíclica "Deus Caritas Est", o
papa Bento XVI foi além, escrevendo coisas profundas e novas sobre o
eros no matrióônio e até nas relações entre Deus e o homem. “Esta
estreita ligação entre eros e matrimónio na Bíblia quase não tem
paralelos na literatura”, escreveu ele[5]. Um dos maiores erros que
cometemos para com Deus é transformar tudo o que diz respeito ao amor e à
sexualidade em uma área saturada de malícia, onde Deus não deve entrar.
Como se satanás, e não Deus, fosse o criador dos sexos e o especialista
no amor.
Nós, crentes – e muitos não crentes –
estamos longe de aceitar as consequências que alguns tiram hoje destas
premissas: por exemplo, que bastaria qualquer tipo de eros para
constituir um matrimónio, inclusive o de pessoas do mesmo sexo; mas essa
nossa discordância assume outra força e credibilidade quando unida ao
reconhecimento da bondade de fundo da instância, e também a uma sadia
autocrítica.
Não podemos silenciar a contribuição
que os cristãos deram à formação dessa visão puramente objetivista do
matrimónio contra a qual a cultura ocidental moderna se lançou com
veemência. A autoridade de Agostinho, reforçada neste ponto por Tomás de
Aquino, tinha acabado jogando uma luz negativa na união carnal dos
cônjuges, considerada o meio de transmissão do pecado original e não
isenta, em si mesma, de pecado “ao menos venial”. De acordo com o doutor
de Hipona, cônjuges deveriam realizar o ato conjugal “com pesar” (cum
dolore) e só porque não havia outra maneira de dar cidadãos ao Estado e
membros à Igreja[6].
Outra instância moderna que podemos
tornar nossa própria é a da igual dignidade da mulher no matrimónio.
Essa igualdade, como vimos, está no cerne do projeto originário de Deus e
do pensamento de Cristo, mas foi muitas vezes desatendida ao longo dos
séculos. A palavra de Deus a Eva, “Ao homem se voltará o teu desejo e
ele te dominará”, teve cumprimento trágico na história.
Nos representantes da chamada
“revolução dos gêneros”, esta instância levou a propostas insanas, como a
de abolir a distinção dos sexos e substituí-la pela mais elástica e
subjetiva distinção de “gêneros” (masculino, feminino, variável), ou a
de libertar as mulheres da “escravidão da maternidade”, prevendo outros
meios, inventados pelo homem, para o nascimento dos filhos. Nos últimos
tempos há uma sucessão de notícias de que homens em breve poderão ficar
grávidos e dará à luz um filho. “Adão dá Eva à luz”, escreve-se
sorrindo, quando seria de se chorar. Os antigos teriam definido tudo
isso com um termo: hybris, a arrogância do homem diante de Deus.
É justamente a escolha do diálogo e
da autocrítica o que nos dá o direito de denunciar estes projetos como
“desumanos”, ou seja, contrários não só à vontade de Deus, mas também ao
bem da humanidade. Traduzidos na prática em larga escala, eles poderiam
levar a quedas humanas e sociais imprevisíveis. Nossa única esperança é
que o bom senso das pessoas, junto com o “desejo” natural do sexo
oposto e com o instinto de maternidade e paternidade que Deus inscreveu
na natureza humana, resista a essas tentativas de substituir Deus,
ditadas mais por tardios sentimentos de culpa do homem do que por
genuíno respeito e amor à mulher.
3. Um ideal a ser redescoberto
Não menos importante que a tarefa de
defender o ideal bíblico do matrimônio e da família é a tarefa de
redescobri-lo e vivê-lo plenamente como cristãos, a fim de repropô-lo ao
mundo mais com fatos do que com palavras. Os primeiros cristãos, com
seus costumes, mudaram as leis do Estado sobre a família; nós não
podemos pensar em fazer o oposto, ou seja, em mudar os costumes das
pessoas com as leis do Estado, ainda que, como cidadãos, tenhamos o
dever de ajudar o Estado a fazer leis justas.
Depois de Cristo, nós lemos
corretamente o relato da criação do homem e da mulher à luz da revelação
da Trindade. A esta luz, a frase “Deus criou o homem à sua imagem; à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” revela finalmente o seu
significado, enigmático e incerto antes de Cristo. Que relação pode
haver entre ser “à imagem de Deus” e ser “homem e mulher”? O Deus da
Bíblia não tem conotações sexuais, não é nem homem nem mulher.
A semelhança consiste nisto. Deus é
amor e o amor exige comunhão, intercâmbio interpessoal; exige um “eu” e
um “tu”. Não há amor que não seja amor de alguém; onde só há um sujeito,
não pode haver amor, mas egoísmo ou narcisismo. Onde Deus é concebido
como Lei ou Poder Absoluto não há necessidade de uma pluralidade de
pessoas (o poder pode ser exercido sozinho). O Deus revelado por Jesus
Cristo, sendo amor, é único, mas não solitário; é uno e trino. Coexistem
nele unidade e distinção: unidade de natureza, de querer, da intenção, e
distinção de características e de pessoas.
Duas pessoas que se amam – e o caso
do homem e da mulher no matrimónio é o mais forte – reproduzem algo do
que acontece na Trindade. Lá, duas pessoas – o Pai e o Filho – se amam e
“sopram” o Espírito que é o amor que os funde. Houve quem chamasse o
Espírito Santo de “Nós divino”, ou seja, não a “terceira pessoa da
Trindade”, mas a primeira pessoa plural[7]. Precisamente nisto é que o
casal humano é imagem de Deus. Marido e mulher são, de fato, uma só
carne, um só coração, uma só alma, ainda que na diversidade de sexo e de
personalidade. No casal se reconciliam entre si a unidade e a
diversidade.
A esta luz, descobre-se o profundo
significado da mensagem dos profetas sobre o matrimónio humano: que ele é
um símbolo e reflexo de outro amor, o de Deus pelo seu povo. Isto não
significava sobrecarregar de significado místico uma realidade puramente
mundana. Não é apenas fazer simbolismo; é, antes, revelar a verdadeira
face e o escopo último da criação do ser humano como homem e mulher.
Qual é a causa da incompletude
deixada pela união sexual, dentro e fora do matrimônio? Por que esta
dinâmica recai sempre sobre si própria e por que esta promessa de
infinito e eterno é sempre frustrada? Para esta desilusão se tenta um
remédio que, no entanto, só faz aumentá-la. Em vez de mudar a qualidade
do ato, se aumenta a sua quantidade, passando-se de um parceiro a outro.
Chega-se assim à destruição do dom de Deus que é a sexualidade,
destruição em andamento na cultura e na sociedade de hoje.
Queremos de vez, como cristãos,
procurar uma explicação para esta devastadora disfunção? A explicação é
que a união sexual não é vivida do jeito e com a intenção querida por
Deus. Este escopo era que, através do êxtase e da fusão de amor, o homem
e a mulher se elevassem acima do desejo e tivessem certa pregustação do
infinito; que se lembrassem de onde vieram e para onde eram
direcionados.
O pecado, a começar pelo de Adão e
Eva bíblicos, atravessou este projeto; “profanou” aquele gesto, ou seja,
o destituiu do seu significado religioso. Fez dele um gesto que é fim
de si mesmo, conclusão em si mesmo e, portanto, “insatisfatório”. O
símbolo foi separado da realidade simbolizada, privado de seu dinamismo
intrínseco e, portanto, mutilado. Nunca como neste caso se experimenta a
verdade do dito de Agostinho: "Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso
coração está inquieto enquanto não repousa em ti". Não fomos criados, de
fato, para viver num eterno relacionamento de casal, mas para viver num
eterno relacionamento com Deus, com o Absoluto. Mesmo o Fausto de
Goethe o descobre ao fim do seu longo vagar; repensando em seu amor por
Margarida, ele exclama no final do poema: "Tudo o que passa é só uma
parábola. Só aqui [no céu] o inatingível se torna realidade".
No testemunho de alguns casais que
fizeram a experiência renovadora do Espírito Santo e vivem a vida cristã
carismaticamente, encontra-se algo do significado original do ato
conjugal. Não é de admirar que seja assim. O matrimónio é o sacramento
do dom recíproco que os esposos fazem de si mesmos um ao outro, e o
Espírito Santo é, na Trindade, o “dom”, ou melhor, o “doar-se” recíproco
do Pai e do Filho, não um ato passageiro, mas um estado permanente.
Onde chega o Espírito Santo, nasce, ou renasce, a capacidade de fazer-se
dom. É assim que opera a “graça de estado” no matrimónio.
4. Casados e consagrados na Igreja
Embora nós, consagrados, não vivamos a
realidade do matrimônio, como eu disse anteriormente, nós temos de
conhecê-la para ajudar os que a vivem. Adiciono outra razão: precisamos
conhecê-la para ser, nós também, ajudados por eles! Falando de
matrimõnio e virgindade, o Apóstolo diz: “Cada um tem o próprio dom
(chárisma) de Deus, uns de uma forma, outros de outra” (1 Cor 7, 7); ou
seja: o casado tem seu carisma e o que não se casa “por causa do
Senhor” tem o dele.
O carisma – diz o mesmo Apóstolo – é
“uma manifestação particular do Espírito para o bem comum” (1 Cor 12,
7). Aplicado à relação entre casados e consagrados na Igreja, isto
significa que o celibato e a virgindade também são para os casados e
que o matrimonio também é para os consagrados, ou seja, para o seu bem.
Esta é a natureza intrínseca do carisma, aparentemente contraditória:
algo de "particular" ("uma manifestação particular do Espírito"), mas
que serve a todos ("para o bem comum").
Na comunidade cristã, consagrados e
casados podem "edificar" uns aos outros. As pessoas casadas são
chamadas, pelos consagrados, ao primado de Deus e daquilo que não passa;
são introduzidos no amor à Palavra de Deus que eles podem melhor
aprofundar e "compartilhar" com os leigos. Mas as pessoas consagradas
também aprendem algo das casadas. Aprendem a generosidade, a abnegação, o
serviço à vida e, muitas vezes, certa "humanidade" que vem do duro
contato com as realidades da existência.
Falo por experiência própria. Eu
pertenço a uma ordem religiosa em que, até alguns anos atrás, nos
levantávamos à noite para recitar o ofício "matutino", que durava cerca
de uma hora. Houve então o grande ponto de viragem na vida religiosa,
resultante do concílio. Parecia que o ritmo da vida moderna – o estudo
para os jovens e o ministério apostólico para os sacerdotes – não
permitia mais aquele levantar-se noturno que interrompia o sono, e,
pouco a pouco, ele foi abandonado, a não ser em alguns lugares de
formação.
Quando, mais tarde, o Senhor me deu a
conhecer de perto, em meu ministério, várias famílias jovens, descobri
algo que salutarmente me sacudiu. Aqueles jovens papas e mamãs tinham
de se levantar não uma, e sim duas, três ou mais vezes por noite para
dar de comer, dar remédios, embalar o bebe se ele chorasse, cuidar dele
se estivesse com febre. E, de manhã, um dos dois, ou ambos, na hora de
sempre, tinham de correr para o trabalho depois de levar a criança para a
casa dos avós ou para a creche. Havia um relógio-ponto para ser batido,
fizesse bom ou mau tempo, com saúde ou sem ela.
Então eu me disse: se não corrermos
para nos consertar, corremos grave perigo! O nosso modo de vida, se não
for regido pela observância autêntica da Regra e por certo rigor de
horários e hábitos, periga se tornar uma vida mansa e nos levar à dureza
do coração. O que os bons pais são capazes de fazer pelos filhos
carnais, o grau de esquecimento de si mesmos a que são capazes de chegar
para cuidar da saúde deles, dos seus estudos e da sua felicidade, deve
ser a medida do que nós devemos fazer pelos nossos filhos e irmãos
espirituais. Temos o exemplo do apóstolo Paulo, que dizia querer
"consumir-se" pelos seus filhos de Corinto (cf. 2 Cor 12, 15).
Que o Espírito Santo, doador dos
carismas, ajudar a todos nós, casados ou consagrados, a colocar em
prática a exortação do apóstolo Pedro:
"Viva cada um segundo o dom recebido,
colocando-o a serviço dos outros, como bons administradores da
multiforme graça de Deus (...), para que em tudo seja Deus glorificado
por meio de Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder pelos
séculos dos séculos. Amém!" (1 Pd 4, 10-11).
[1] P. Claudel, Le soulier de satin, a.III. sc.8 (ed. La Pléiade, II, Paris 1956, pág. 804).
[2] João Paulo II, Homem e mulher os criou. Catequeses sobre o amor humano, Roma 1985, pág. 365.
[3] Gregorio Magno, Moralia in Job, 20, 1, 1.
[4] João Paulo II, audiência de 16 de
janeiro de 1980 (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, Libreria Editrice
Vaticana 1980, pág. 148).
[5] Bento XVI, Deus caritas est, 11.
[6] Cf. Santo Agostinho, Discursos, 51, 25 (PL 38, 348).
[7] Cf. H. Mühlen , Der Heilige Geist als Person. Ich - Du - Wir, Münster in W., 1963.
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