Mãos de Deus em Cristo, mãos de Cristo em nós
Bem sabemos, irmãos caríssimos, como nos gestos de alguém vai quase a sua alma, no que faz ou deixa de fazer, mais expressivo ou contido. Quando o prólogo do Evangelho de João nos diz que «o Verbo encarnou e habitou entre nós», isso mesmo indica, de essencial também. E, quando no Credo como que suspendemos a recitação, ao dizermos «e incarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem», aí mesmo nos mantemos, cada vez mais atentos e sempre mais rendidos ao ponto firmíssimo da revelação cristã.
Deus teve e tem gesto e figura, realidade e história na humanidade que somos, para a divindade que oferece. Como escreveu um autor do Novo Testamento: «O divino poder, ao dar-nos a conhecer aquele que nos chamou pela sua glória e pelo seu poder, concedeu-nos todas as coisas que contribuem para a vida e a piedade. Com elas, teve a bondade de nos dar também os mais preciosos e sublimes bens prometidos, a fim de que – por meio deles – vos torneis participantes da natureza divina, depois de vos livrardes da corrupção que a concupiscência gerou no mundo» (2 Pe 1, 3-4).Dois gestos de Jesus contemplámos agora, na Missa Vespertina da Ceia do Senhor, abençoado início do Tríduo Pascal.
Primeiro na Epístola de Paulo: «O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim”». Depois no Evangelho de João: «Jesus […] levantou-se da mesa, tirou o manto e tomou a toalha, que pôs à cintura. Depois, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cintura».Fixemo-nos então nos gestos de Jesus, indicados pelos sucessivos verbos – em que o próprio Verbo encarna, tão divina como concretamente encarna. Nas suas mãos, que “tomam” o pão e o tornam seu corpo, “tomam” o cálice e o fazem nova aliança no seu sangue. Nas suas mãos, que “tomam” a toalha e a “põem” à cintura, que “deitam” água na bacia, para “lavar” os pés dos discípulos e os “enxugar” depois...
Na verdade, não precisamos de imaginar o que Deus seja. Nem devemos, pois em Jesus verificamos como “habitou entre nós”. Os seus gestos indicam-nos com a maior precisão o modo e a circunstância de acertarmos com Deus o que Ele acertou connosco. Para os praticarmos também como “corpo eclesial de Cristo”; da Igreja para o mundo, tornando-nos pão e cálice, cingindo-nos para lavar e enxugar os pés cansados de tantos, as vidas exaustas de muitos. Por isso o Evangelho continuava, com o mandato de Jesus: «Se eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que que, assim como eu vos fiz, vós façais também». Por isso mesmo, cada Missa se conclui com um “ide!”, pleno de revelação e encargo.
Em várias passagens, o Evangelho de João nos mostra como as mãos de Jesus realizaram na altura o que Ele quis para sempre. Podemos vê-las, logo no segundo capítulo, a purificar o templo, para que fosse só de Deus e para Deus, única maneira de ser de todos sem diferença. Enérgicas mãos, que acompanhamos assim: «Fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo [os que ali faziam negócio] com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: “Tirai isto daqui. Não façais da casa de meu Pai uma feira”» (Jo 2, 15-16).
Mas estas mesmas mãos que expulsaram, espalharam e derrubaram o que estava realmente a mais, foram as mesmas que daí a tempos distribuíram o que de facto estava a menos, como era o pão para todos. Como aconteceu quando foi preciso alimentar a multidão, da fome material à fome total, com gesto quase eucarístico. Vejamo-las: «Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os pelos que estavam sentados, tal como os peixes, e eles comeram quanto quiseram» (Jo 6, 11).
Mãos que purificam e alimentam, mãos que ungem e curam. Sigamo-las de novo, a iluminar o cego de nascença: «[Jesus] fez lama com a saliva, ungiu-lhe os olhos com a lama e disse-lhe: “Vai, lava-te na piscina de Siloé – que quer dizer Enviado”. Ele foi, lavou-se e regressou a ver» (Jo 9, 6-7).
Mãos de Jesus, que ele mesmo apresentou como as de um pastor certo e seguro – antes, durante e depois de todas as incertezas e inseguranças da vida e do mundo: «Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-me. Dou-lhes a vida eterna e nem elas hão de perecer jamais, nem ninguém as arrancará da minha mão» (Jo 10, 27-28). Agradeçamos hoje estas mãos que definitivamente nos seguram, porque tomaram em si toda a realidade da vida e da morte e a começaram a ressuscitar, nele mesmo e para nós.
Mãos de Jesus, nosso Bom Pastor. Mãos de Jesus para apascentar o mundo, e hoje pelas nossas. Sempre no quarto Evangelho, esta verdade é-nos ensinada na alegoria da videira. A videira é Jesus, que o Pai plantou no mundo, com a seiva do Espírito. Nós somos os ramos, mais propriamente os “seus” ramos. E só assim agimos, suas “mãos à obra”. Oiçamo-lo: «Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5).
Permanecendo assim, ramos na videira, as mãos e a obra permanecerão as suas, por nós alargadas. Deste modo se entende o que poderia parecer excessivo, se não fosse anunciado de modo tão solene: «Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome Eu o farei» (Jo 14, 12-13).
Amados irmãos, em Missa de Mandato e Ceia; Sacerdotes ministeriais, que com as mãos repetimos os gestos sacramentais de Cristo, no meio do seu povo; Povo sacerdotal, que se oferece ao Pai e do Pai ao mundo, como mãos de Cristo: Seja este o fruto de quanto celebramos - que nos reencontremos na grandeza do gesto e da missão do Senhor Jesus, agora tão nossos e para tantos que esperam.
Vimos o gesto do Senhor humilde. Que muitos o continuem a ver também em nós, quando vamos ao seu encontro, lavando e enxugando poeiras e lágrimas. Vimos o pão e o cálice, vimos o Senhor, que se reparte e comunga. Nada se fique pelo rito apenas. Tudo daqui parta como Cristo em nós, e assim chegue a todos. No mesmo sentimento, que encontre o mesmo gesto.
Pedimos a Deus, na primeira oração desta Missa, que reunidos para celebrar a santíssima Ceia, «recebamos, neste sagrado banquete do seu amor, a plenitude da caridade e da vida». Assim será decerto, da parte de Deus. Seja igualmente certo, consequentemente certo, de nós para os outros.
Quinta-Feira Santa, 24 de março de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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