Começaremos a ressuscitar – e connosco o mundo!
Caríssimos irmãos, o Evangelho há pouco escutado terminava assim: «Simão Pedro entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou. Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos».
Ainda não tinham entendido, eles… Decerto já entendemos nós, ao ponto de aqui estarmos, dois milénios depois como sendo agora. Como estão milhões de cristãos em tudo o mundo, celebrando a vida de Cristo, vencedor da morte. Como estão, em países em paz e em países em guerra, em famílias contentes e em famílias em luto, em vidas realizadas e outras muitas por realizar e à procura de condições para isso...
Com eles estamos e queremos estar, solidários com «as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens do nosso tempo, [que] são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo», como lembrou o último Concílio (Gaudium et Spes, 1). Compartilhando umas e outras, alegrias e tristezas, não esquecendo nunca que o Ressuscitado apareceu com as marcas da crucifixão que sofrera – e em tanto homem e mulher, de criança a idoso, continua a sofrer. Crer na ressurreição de Cristo não é alhear-se do mundo, é recomeçá-lo sempre, a partir de um amor maior e absolutamente comprovado.
São marcas de ressurreição, nesta manhã de Páscoa, as que o Espírito de Cristo reproduz por esse mundo fora – e mesmo além das fronteiras confessionais estritas – nos que não deixam de empenhar-se concretamente em todas as causas da vida e da paz. Os que cuidam dos outros, os que previnem tragédias ou reparam os danos, os que não esquecem os pobres e os doentes. Os que cumprem as “obras de misericórdia” para responder a necessidades do corpo ou do espírito seja de quem for e onde for. Em todos eles, confessamos nós, a vida de Cristo vence a morte do mundo.
Assim entenderemos decerto, pois sobram-nos razões, com dois milénios de ressurreição comprovada. A de Cristo na vida de tantos, a de tantos para a vida de muitos.
Retomemos o trecho evangélico. Reparemos no que reparou o discípulo: o túmulo vazio e os panos esvaziados: «Viu e acreditou». Caríssimos irmãos, sigamos este caminho dos olhos, para atingirmos a mesma certeza. E adiantemos: se a morte é sinal dum “eu” solitário, a vida triunfa no “eu” solidário. E solidariedade vivida ao ponto em que Jesus a viveu e nós chamamos “caridade” autêntica, esvaziando-se de si para que os outros caibam.
Isto mesmo se verifica na alegre serenidade com que tantos discípulos de Cristo compartilham dores e tristezas de toda a ordem por esse mundo além ou aquém. E exatamente porque as compartilham, esvaziando-se do próprio interesse para cuidar dos outros, vivem já sem medo e irradiam paz. Paz imortal, como anunciou o Ressuscitado, ao anoitecer desse primeiro dia: «Veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse-lhes: “A paz seja convosco”» (Jo 20, 19). A paz que Ele trouxe, pois a conquistou para nós, ao preço da sua vida entregue.
Quando, a partir daqui, Pedro, o discípulo que «viu e acreditou», aquelas mulheres e todos os outros de então para cá anunciarem a Páscoa do Senhor Jesus, anunciarão também, por palavras e obras o caminho novo que ela nos abriu. Pois também dissera: «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há de salvá-la» (Mc 8, 34-35). E, noutro passo, de aproximável ensino: «Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo [como quem se esvazia], assegura para si a vida eterna» (Jo 12, 25).
Entendeu-o perfeitamente o Apóstolo das Gentes, quando na sua Carta aos Filipenses incluiu o chamado hino quenótico, ou do “esvaziamento” de Cristo. Já seria cantado nas primeiras comunidades, ainda tão próximas do primeiro acontecer evangélico.
Para a vida comunitária, Paulo não lhes requeria menos do que os próprios «sentimentos de Cristo» e ilustrava-os assim: «Ele, que é de condição divina, […] esvaziou-se a si mesmo tomando a condição de servo […] tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome» (Fl 2, 6 ss).
Quisera o homem velho ser igual a Deus, como que subindo a uma importância absurda. Assim se diz de Adão, e também de Eva, que, para serem «como Deus», lhe tiraram a única coisa que Ele se reservara (cf. Gn 3, 5). E assim morreram… Em Cristo, foi o contrário, recriando a humanidade pelo esvaziamento de si próprio. Porque o homem, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), só as mantém e realiza sendo como Deus realmente é. Não como pensaríamos, à imagem dos nossos fumos de grandeza, mas como se revela em Cristo, esvaziado de si para ser em todos, outro nome da vida. E assim ressuscitamos.
Voltemos com o discípulo ao túmulo e reparemos de novo como está vazio, bem como os panos que tinham coberto a Jesus morto. Esse vazio estava cheio de vida, transbordante e forte. E acreditemos também que não há outro modo de ressuscitar, senão assim mesmo, pelo dom de si.
Porque a celebração pascal não termina hoje nem se encerra agora. Na nossa casa e família, ou onde não haja uma e outra; com quem gostamos de estar e com quem não gostemos logo; no que apetece fazer e no que custa mais… Escolhamos em cada uma dessas ocasiões o que Jesus escolheu, esvaziando-nos de nós para que os outros caibam. Certos de que, sempre que assim for, começaremos a ressuscitar – e connosco o mundo!
Sé de Lisboa, Domingo de Páscoa, 27 de março de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Caríssimos irmãos, o Evangelho há pouco escutado terminava assim: «Simão Pedro entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou. Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos».
Ainda não tinham entendido, eles… Decerto já entendemos nós, ao ponto de aqui estarmos, dois milénios depois como sendo agora. Como estão milhões de cristãos em tudo o mundo, celebrando a vida de Cristo, vencedor da morte. Como estão, em países em paz e em países em guerra, em famílias contentes e em famílias em luto, em vidas realizadas e outras muitas por realizar e à procura de condições para isso...
Com eles estamos e queremos estar, solidários com «as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens do nosso tempo, [que] são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo», como lembrou o último Concílio (Gaudium et Spes, 1). Compartilhando umas e outras, alegrias e tristezas, não esquecendo nunca que o Ressuscitado apareceu com as marcas da crucifixão que sofrera – e em tanto homem e mulher, de criança a idoso, continua a sofrer. Crer na ressurreição de Cristo não é alhear-se do mundo, é recomeçá-lo sempre, a partir de um amor maior e absolutamente comprovado.
São marcas de ressurreição, nesta manhã de Páscoa, as que o Espírito de Cristo reproduz por esse mundo fora – e mesmo além das fronteiras confessionais estritas – nos que não deixam de empenhar-se concretamente em todas as causas da vida e da paz. Os que cuidam dos outros, os que previnem tragédias ou reparam os danos, os que não esquecem os pobres e os doentes. Os que cumprem as “obras de misericórdia” para responder a necessidades do corpo ou do espírito seja de quem for e onde for. Em todos eles, confessamos nós, a vida de Cristo vence a morte do mundo.
Assim entenderemos decerto, pois sobram-nos razões, com dois milénios de ressurreição comprovada. A de Cristo na vida de tantos, a de tantos para a vida de muitos.
Retomemos o trecho evangélico. Reparemos no que reparou o discípulo: o túmulo vazio e os panos esvaziados: «Viu e acreditou». Caríssimos irmãos, sigamos este caminho dos olhos, para atingirmos a mesma certeza. E adiantemos: se a morte é sinal dum “eu” solitário, a vida triunfa no “eu” solidário. E solidariedade vivida ao ponto em que Jesus a viveu e nós chamamos “caridade” autêntica, esvaziando-se de si para que os outros caibam.
Isto mesmo se verifica na alegre serenidade com que tantos discípulos de Cristo compartilham dores e tristezas de toda a ordem por esse mundo além ou aquém. E exatamente porque as compartilham, esvaziando-se do próprio interesse para cuidar dos outros, vivem já sem medo e irradiam paz. Paz imortal, como anunciou o Ressuscitado, ao anoitecer desse primeiro dia: «Veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse-lhes: “A paz seja convosco”» (Jo 20, 19). A paz que Ele trouxe, pois a conquistou para nós, ao preço da sua vida entregue.
Quando, a partir daqui, Pedro, o discípulo que «viu e acreditou», aquelas mulheres e todos os outros de então para cá anunciarem a Páscoa do Senhor Jesus, anunciarão também, por palavras e obras o caminho novo que ela nos abriu. Pois também dissera: «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há de salvá-la» (Mc 8, 34-35). E, noutro passo, de aproximável ensino: «Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo [como quem se esvazia], assegura para si a vida eterna» (Jo 12, 25).
Entendeu-o perfeitamente o Apóstolo das Gentes, quando na sua Carta aos Filipenses incluiu o chamado hino quenótico, ou do “esvaziamento” de Cristo. Já seria cantado nas primeiras comunidades, ainda tão próximas do primeiro acontecer evangélico.
Para a vida comunitária, Paulo não lhes requeria menos do que os próprios «sentimentos de Cristo» e ilustrava-os assim: «Ele, que é de condição divina, […] esvaziou-se a si mesmo tomando a condição de servo […] tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome» (Fl 2, 6 ss).
Quisera o homem velho ser igual a Deus, como que subindo a uma importância absurda. Assim se diz de Adão, e também de Eva, que, para serem «como Deus», lhe tiraram a única coisa que Ele se reservara (cf. Gn 3, 5). E assim morreram… Em Cristo, foi o contrário, recriando a humanidade pelo esvaziamento de si próprio. Porque o homem, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), só as mantém e realiza sendo como Deus realmente é. Não como pensaríamos, à imagem dos nossos fumos de grandeza, mas como se revela em Cristo, esvaziado de si para ser em todos, outro nome da vida. E assim ressuscitamos.
Voltemos com o discípulo ao túmulo e reparemos de novo como está vazio, bem como os panos que tinham coberto a Jesus morto. Esse vazio estava cheio de vida, transbordante e forte. E acreditemos também que não há outro modo de ressuscitar, senão assim mesmo, pelo dom de si.
Porque a celebração pascal não termina hoje nem se encerra agora. Na nossa casa e família, ou onde não haja uma e outra; com quem gostamos de estar e com quem não gostemos logo; no que apetece fazer e no que custa mais… Escolhamos em cada uma dessas ocasiões o que Jesus escolheu, esvaziando-nos de nós para que os outros caibam. Certos de que, sempre que assim for, começaremos a ressuscitar – e connosco o mundo!
Sé de Lisboa, Domingo de Páscoa, 27 de março de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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