(RV) Na manhã desta sexta-feira dia 18 de março, teve lugar na Capela Redemptoris Mater no Vaticano, para o Papa e Cúria Romana a quinta e última Pregação da Quaresma proposta pelo Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
Tema genérico das pregações: O Concílio Vaticano II, 50 anos depois.
Uma revisitação de um ponto de vista espiritual”. Nesta última pregação
da Quaresma o pregador debruçou-se sobre a temática da unidade dos
cristãos comentando o decreto sobre o ecumenismo do Concílio Vaticano
II, Unitatis Redintegratio.
“Cinquenta anos de caminho e progresso no ecumenismo estão a
demonstrar as potencialidades contidas naquele texto” – disse o frade
capuchinho que apontou dois frutos que podem ser reconhecidos do caminho
já percorrido: a constituição do Conselho Pontifício para a Promoção da
Unidade dos Cristãos e o lançamento de diálogos bilaterais com quase
todas as confissões cristãs.
O padre Cantalamessa falou de um ecumenismo do encontro e da
reconciliação dos corações e destacou alguns encontros célebres que
marcaram o caminho ecuménico nestes 50 anos: o de Paulo VI com o
patriarca Atenágoras, os inúmeros encontros de João Paulo II e de Bento
XVI com os líderes de diferentes igrejas cristãs, do Papa Francisco com o
patriarca Bartolomeu em 2014 e, mais recentemente, com o Patriarca de
Moscovo, Kirill, em Cuba, que abriu um novo horizonte para o caminho
ecumênico.
“O facto extraordinário sobre este caminho para a unidade baseado no
amor é que ele já está escancarado diante de nós” – afirmou o padre
Cantalamessa que sublinhou que “não podemos ‘queimar etapas’ no tocante à
doutrina, porque as diferenças existem e devem ser resolvidas com
paciência nas instâncias apropriadas. Podemos, porém, ‘queimar etapas’
na caridade e ser totalmente unidos desde já. O sinal verdadeiro e certo
da vinda do Espírito não é, como escreve Santo Agostinho, o falar em
línguas, mas o amor pela unidade” – disse o Pregador da Casa Pontifícia
na quinta e última pregação desta Quaresma de 2016. (RS/BF)
Texto integral do Quinto Sermão da Quaresma
O CAMINHO RUMO À UNIDADE DOS CRISTÃOS
Reflexão sobre a "Unitatis Redintegratio"
1. O caminho ecumênico após o Vaticano II
A moderna ciência hermenêutica tornou
familiar o princípio de Gadamer da "história dos efeitos"
(Wirkungsgeschichte). De acordo com este método, compreender um texto
exige levar em conta os efeitos que ele produziu na história,
inserindo-se nessa história e dialogando com ela[1]. O princípio se
mostra muito útil quando aplicado à interpretação da Escritura. Ele nos
diz que não podemos compreender plenamente o Antigo Testamento a não ser
à luz do seu cumprimento no Novo - e que não se pode entender o Novo
Testamento se não à luz dos frutos que ele produz na vida da Igreja. Não
é suficiente, portanto, o habitual estudo histórico-filológico das
"fontes", ou seja, das influências sofriadas por um texto; é necessário
levar em conta também as influências exercidas por ele. É a regra que
Jesus tinha formulado muito tempo antes, dizendo que toda árvore se
conhece pelos frutos (cf. Lc 6, 44).
Guardadas as proporções, este
princípio – como vimos nas meditações anteriores – também se aplica aos
textos do Vaticano II. Hoje eu quero mostrar a sua aplicação,
especialmente, ao decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio,
que é o tema desta meditação. Cinquenta anos de caminho e progresso no
ecumenismo estão demonstrando as potencialidades contidas naquele texto.
Depois de recordar as razões profundas que levam os cristãos a procurar
a unidade entre si, e depois de observar entre os crentes das diversas
Igrejas a difusão de uma nova atitude a este respeito, os Padres
conciliares expressaram assim a intenção do documento:
"Portanto, considerando com alegria
todos esses fatos, depois de ter exposto a doutrina sobre a Igreja e
movido pelo desejo de restaurar a unidade entre todos os discípulos de
Cristo, este sagrado Concílio pretende agora propor a todos os católicos
as ajudas, diretrizes e modos para que possam responder a esta vocação e
a esta graça divina"[2].
As realizações ou frutos deste
documento foram de dois tipos. No âmbito doutrinal e institucional, foi
constituído o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos
Cristãos; foram também lançados diálogos bilaterais com quase todas as
confissões cristãs, a fim de promover um melhor conhecimento mútuo, um
debate de posições e a superação dos preconceitos.
Junto com este ecumenismo oficial e
doutrinal, desenvolveu-se desde o início um ecumenismo do encontro e da
reconciliação dos corações. Neste âmbito, destacam-se alguns encontros
célebres que marcaram o caminho ecumênico nestes 50 anos: o de Paulo VI
com o patriarca Atenágoras, os inúmeros encontros de João Paulo II e de
Bento XVI com os líderes de diferentes igrejas cristãs, do papa
Francisco com o patriarca Bartolomeu em 2014 e, mais recentemente, com o
patriarca de Moscou, Cirilo, em Cuba, que abriu um novo horizonte para o
caminho ecuménico.
A este mesmo ecumenismo espiritual
pertencem ainda as muitas iniciativas em que os crentes de diferentes
Igrejas se encontram para orar e proclamar juntos o Evangelho, sem
tentativas de proselitismo e na plena fidelidade de cada um à própria
Igreja. Eu tive a graça de participar de muitos desses encontros. Um
deles permanece particularmente vivo na minha lembrança porque foi como
uma profecia visiva daquilo a que o movimento ecuménico deveria nos
levar.
Em 2009, foi realizada em Estocolmo
uma grande manifestação de fé chamada "Jesus manifestation",
"Manifestação por Jesus". No último dia, os crentes das várias Igrejas,
cada um por uma via diferente, caminhavam em procissão para o centro da
cidade. O pequeno grupo local de católicos, liderados pelo bispo local,
também andava pelo seu caminho, rezando. Chegados ao centro, as filas se
rompiam e era uma única multidão que proclamava o senhorio de Cristo
perante 18.000 jovens e transeuntes atónitos. Aquela que pretendia ser
uma manifestação "por" Jesus se tornou uma poderosa manifestação "de"
Jesus. Sua presença podia quase ser tocada com a mão num país não
habituado a manifestações religiosas desse tipo.
Esses desenvolvimentos do documento
sobre o ecumenismo também são fruto do Espírito Santo e sinal do
invocado novo Pentecostes. Como é que o Ressuscitado convenceu os
apóstolos a se abrirem para os gentios e a acolhê-los na comunidade
cristã? Levou Pedro até a casa do centurião Cornélio e o fez assistir à
vinda do Espírito sobre os presentes com as mesmas manifestações que os
apóstolos tinham experimentado no dia de Pentecostes: o falar em
línguas, o glorificar a Deus em alta voz. Não restou a Pedro senão tirar
a conclusão: “Se Deus deu a eles o mesmo dom que deu a nós... quem era
eu para pôr impedimentos a Deus?” (Atos 11, 17).
O Senhor ressuscitado está fazendo a
mesma coisa hoje. Ele envia o seu Espírito e os seus carismas para os
fiéis das mais diversas Igrejas, mesmo às que acreditávamos mais
distantes de nós, muitas vezes com idênticas manifestações externas.
Como não ver nisto um sinal de que Ele nos exorta a aceitar-nos e
reconhecer-nos como irmãos, embora ainda a caminho de uma unidade
visível mais plena? Em todo caso, foi isso o que me converteu ao amor
pela unidade dos cristãos, habituado como estava pelos meus estudos
pré-conciliares a ver ortodoxos e protestantes apenas como "adversários"
a refutar em nossas teses de teologia.
2. A um ano do V Centenário da Reforma Protestante (1517)
Na Quaresma do ano passado, tentei
mostrar os resultados obtidos pelo diálogo ecumênico, no campo da
teologia, com o Oriente ortodoxo. O título que dei ao livreto dessas
meditações foi "Dois pulmões, uma única respiração", que resume o nosso
rumo e o que, em grande parte, já foi realizado[3]. Nesta ocasião, eu
gostaria de voltar a atenção para as relações com o outro grande
interlocutor do diálogo ecuménico, o mundo protestante, sem entrar em
questões históricas e doutrinais, mas para mostrar que tudo que nos
impulsiona a avançar no esforço de restaurar a unidade do Ocidente
cristão.
Uma circunstância torna esse esforço
particularmente atual. O mundo cristão se prepara para os quinhentos
anos da Reforma em 2017. É vital, para o futuro da Igreja, não
desperdiçarmos esta oportunidade mantendo-nos prisioneiros do passado,
ou simplesmente usando tons mais irênicos ao apontar erros e razões de
ambos os lados. É o momento, penso eu, de um salto qualitativo, como
quando um barco chega à eclusa de um canal que lhe permitem continuar a
navegação num nível superior.
A situação mudou profundamente nestes
quinhentos anos, mas, como sempre, é difícil notá-lo. As questões que
causaram a separação entre a Igreja de Roma e a Reforma no século XVI
foram, sobretudo, as indulgências e o modo como ocorre a justificação do
ímpio. Mas, de novo, podemos dizer que estes são os problemas
determinantes da fé do homem de hoje? Numa conferência realizada no
"Centro Pró-União" de Roma, o cardeal Walter Kasper salientava
justamente que, enquanto o problema existencial número um para Lutero
era como superar o sentimento de culpa e obter um Deus benévolo, o
problema hoje é o contrário: como devolver ao homem de hoje o verdadeiro
senso do pecado que ele perdeu completamente.
Acredito que todas as discussões
seculares entre católicos e protestantes sobre a fé e as obras acabaram
nos fazendo perder de vista o ponto principal da mensagem paulina. O que
o apóstolo quer afirmar acima de tudo em Romanos 3 não é que somos
justificados pela fé, mas que somos justificados pela fé em Cristo; não é
tanto que somos justificados pela graça quanto que somos justificados
pela graça de Cristo. Cristo é o coração da mensagem, antes ainda que a
graça e a fé.
Depois de apresentar nos dois
capítulos precedentes da carta a humanidade em seu estado universal de
pecado e perdição, o Apóstolo tem a incrível coragem de proclamar que
esta situação mudou radicalmente "em virtude da redenção realizada por
Cristo", "pela obediência de um só homem" (Rm 3, 24; 5, 19).
A afirmação de que esta salvação é
recebida pela fé, e não pelas obras, está presente no texto e era a
coisa mais urgente sobre a qual lançar luz no tempo de Lutero, quando
era pacífico, ao menos na Europa, que se tratava da fé em Cristo e da
graça de Cristo. Mas esta vem em segundo plano, não no primeiro.
Cometemos o erro de reduzir a um problema de escolas, dentro do
cristianismo, aquela que, para o Apóstolo, era uma afirmação bem mais
ampla e universal. Hoje somos chamados a redescobrir e proclamar juntos o
fundo da mensagem paulina.
Na descrição das batalhas medievais
há sempre um momento em que, superados os arqueiros, a cavalaria e todo o
resto, concentravam-se todos em torno do rei. Ali se decidia o fim da
batalha. Para nós também a batalha é hoje em torno do Rei... A pessoa de
Jesus Cristo é o que realmente está em jogo. Precisamos voltar, do
ponto de vista da evangelização, à época dos apóstolos. Há uma analogia
entre o nosso tempo e o deles. Eles tinham diante de si de um mundo
pré-cristão; no Ocidente, temos diante de nós um mundo largamente
pós-cristão.
Quando o apóstolo Paulo quer resumir
em uma frase a essência da mensagem cristã, ele não diz "Anunciamos esta
ou aquela doutrina". Ele diz: "Nós anunciamos Cristo crucificado" (1
Cor 1,23). E ainda: "Nós anunciamos Cristo Jesus, o Senhor" (2 Cor 4,5).
Este é o verdadeiro "articulus stantis et cadentis Ecclesiae", o artigo
com que a Igreja fica em pé ou cai.
Isto não significa ignorar tudo o que
a Reforma protestante produziu de novo e de válido, seja na teologia,
seja na espiritualidade, especialmente com a reafirmação do primado da
Palavra de Deus. Significa, antes, permitir que toda a Igreja se
beneficie das suas conquistas positivas, livrando-se de certos excessos e
enrijecimentos devidos ao calor do momento, a ingerência da política e
às polêmicas sucessivas.
Um passo significativo nesta direção
foi a "Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação", assinada
em 31 de outubro de 1999 entre a Igreja católica e a Federação Mundial
das Igrejas Luteranas[4]. Em sua conclusão, ela diz:
"A compreensão da doutrina da
justificação exposta nesta Declaração mostra a existência de um consenso
entre luteranos e católicos sobre verdades fundamentais da doutrina da
justificação. À luz desse consenso, são aceitáveis as diferenças que
subsistem no que diz respeito à linguagem, à elaboração teológica e às
ênfases tomadas pela compreensão da justificação [...] Por este motivo, a
elaboração luterana e a católica da fé na justificação estão abertas
uma à outra, em suas diferenças, e não invalidam o consenso atingido
sobre verdades fundamentais"[5].
Eu estava presente quando o acordo
foi proclamado em São Pedro durante vésperas solenes presididas pelo
papa João Paulo II e pelo arcebispo de Uppsala, Bertil Werkström. Uma
observação que o papa fez na homilia me impactou. Expressava, se bem me
lembro, este pensamento: chegou a hora de parar de fazer desta doutrina
da justificação pela fé um tema de lutas e disputas entre teólogos, e de
ajudar todos os batizados, em vez disso, a fazerem desta verdade uma
experiência pessoal e libertadora. Desde aquele dia, eu nunca deixei,
toda vez que tive a oportunidade na minha pregação, de exortar os irmãos
a fazerem essa experiência.
A justificação mediante a fé em
Cristo deveria ser pregada por toda a Igreja e com maior vigor do que
nunca. Mas não mais em oposição às "boas obras", que é uma questão
superada e resolvida, mas em oposição, se a algo, à pretensão do mundo
secularizado de salvar-se sozinho, com a sua ciência, com a tecnologia
ou com técnicas espirituais de invenção própria. Estou convencido de
que, se estivessem vivo hoje, esta seria a maneira de Lutero, Calvino e
dos outros reformadores de pregar a justificação gratuita mediante a fé!
"As sociedades modernas – lemos num
livro que fez história – são construídas sobre a ciência. Devem a ela a
sua riqueza, o seu poder e a certeza de que riquezas e poderes ainda
maiores estarão amanhã disponíveis ao homem, se ele quiser [...].
Equipadas de todo poder, dotadas de todas as riquezas que a ciência lhes
oferece, as nossas sociedades ainda tentam viver e ensinar sistemas de
valores já minados na própria base por esta mesma ciência"[6].
Os "sistemas de valores
ultrapassados", para o autor, são, naturalmente, os sistemas religiosos.
Jean-Paul Sartre chega à mesma conclusão a partir de um ponto de vista
filosófico. Ele põe nos lábios de um seu personagem: "Eu mesmo me acuso e
só eu posso absolver-me, eu, o homem. Se Deus existe, o homem não é
nada"[7]. E a esse tipo de desafios do cientificismo ateu e do
secularismo devem responder os cristãos de hoje com a doutrina de que “o
homem não é justificado diante de Deus pelas próprias obras, mas pela
graça e pela fé” (cf. Gal 2, 16).
3. Além das fórmulas
Estou convencido de que sobre o
diálogo ecuménico com as igrejas protestantes pesa com força o freio das
fórmulas. Explico. As formulações doutrinais e dogmáticas, que, em seu
início, eram fruto de processos vitais e refletiam a vida coral da
comunidade e a verdade laboriosamente alcançada, tendem com o passar do
tempo a se enrijecer e se tornar “palavras de ordem”, etiquetas que
indicam alguma “pertença”. A fé não termina mais na realidade da coisa,
mas na sua formulação. Estamos no oposto do que deveria ser, de acordo
com a famosa declaração de Tomás de Aquino: "Fides non terminatur ad
enuntiabile, ad sed rem": a fé não termina em sua formulação, mas na
coisa em si[8].
É o fenômeno do formalismo, já vivo
na antiguidade uma vez terminada a fase de entendimento dos grandes
dogmas[9]. Só recentemente se entendeu, por exemplo, que as divisões no
Oriente cristão entre calcedonianos e as chamadas Igrejas monofisitas ou
nestorianas se baseavam, em muitos casos, em fórmulas e no sentido
diferente aplicado, nelas, aos termos ousia e hipóstase, que não tocavam
a substância da doutrina. Foi possível restaurar, assim, a comunhão
entre e com várias Igrejas orientais.
Este obstáculo é especialmente
visível nas relações com as Igrejas da Reforma. Fé e obras, Escritura e
tradição: são contraposições compreensíveis e, em parte, justificadas no
seu nascimento, mas que se tornam enganosas se forem repetidas e
mantidas como se nada tivesse mudado em quinhentos anos de vida.
Consideremos a contraposição entre fé
e obras. Ela faz sentido se por boas obras se entendem de modo especial
(como infelizmente acontecia nos tempos de Lutero) indulgências,
peregrinações, jejuns, esmolas, velas votivas e assim por diante. Deixa
de fazer sentido se por boas obras entendemos as obras de caridade e de
misericórdia. Jesus, no Evangelho, nos adverte que sem elas não
entraremos no reino dos céus – e que Ele será forçado a dizer:
"Afasta-te de mim". Não somos justificados, portanto, pelas boas obras,
mas não somos salvos sem as boas obras. Nisto acreditamos todos,
católicos e protestantes, e já o dizia o Concílio de Trento.
O mesmo deve ser dito da
contraposição entre Escritura e tradição, o vem à tona tão logo se toca o
problema da revelação, como se os protestantes tivessem só as
Escrituras e os católicos Escritura e Tradição juntas. Mas, na
realidade, não há nenhuma Igreja sem a própria tradição. O que explica a
existência de tantas denominações diferentes dentro do protestantismo
se não a sua forma diferente de interpretar as Escrituras? E o que é a
Tradição, no seu conteúdo mais verdadeiro, se não, precisamente, a
Escritura lida na Igreja e pela Igreja?
Nem mesmo a fórmula luterana "simul
iustus et peccator", "justo e pecador ao mesmo tempo", é um obstáculo
intransponível para a comunhão. Faz parte da tradição católica, desde o
tempo dos Padres, a definição da Igreja como "casta meretriz" (casta
meretrix) e como "santa e sempre necessitada de reforma"[10]. O que é
dito da Igreja como um todo, como corpo de Cristo, não se deveria
aplicar também a cada um dos seus membros?
O que pode estar sujeito a explicação
diferente e complementar é a forma de se entender essa coexistência de
santidade e pecado no homem redimido. No anexo à declaração conjunta
sobre a justificação há uma explicação da fórmula "simul iustus et
peccator" que não está em desacordo com a doutrina católica. Afirma-se
que a justificação opera uma real renovação na vida do batizado, ainda
que nunca se torne uma posse adquirida, na qual o homem possa apoiar-se
diante de Deus, mas permaneça sempre dependente da ação do Espírito
Santo.
Em 1974, uma notícia surpreendeu e
divertiu o mundo inteiro. Um soldado japonês, enviado durante a última
guerra mundial a uma ilha das Filipinas para se infiltrar entre os
inimigos e recolher informações, tinha vivido trinta anos escondendo-se
aqui e ali pela selva e alimentando-se de raízes, frutas e alguma caça,
convencido de que guerra ainda estava acontecendo e de que ele ainda
estava em sua missão. Quando enfim o encontraram, não foi fácil
convencê-lo de que a guerra tinha acabado e de que ele podia voltar para
casa. Eu acho que acontece algo semelhante entre os cristãos. Há
cristãos que é preciso convencer, em ambos os lados, de que a guerra
acabou, de que as guerras de religião entre católicos e protestantes
acabaram. Temos muito mais o que fazer em vez de guerra uns contra os
outros! O mundo esqueceu, ou nunca conheceu, o seu Salvador, Aquele que é
a luz do mundo, o caminho, a verdade e a vida, e nós perdemos tempo
polemizando entre nós?
4. Unidade na caridade
Mas não é suficiente este motivo
prático para fazer a unidade dos cristãos. Não basta estarmos unidos na
evangelização e na ação de caridade. Este é um caminho que o movimento
ecumênico experimentou em seu início com o movimento "Vida e Ação"
("Life and Work"), mas que logo se revelou insuficiente. Se a unidade
dos discípulos deve ser um reflexo da unidade entre o Pai e o Filho, ela
deve ser, acima de tudo, uma unidade de amor, porque esta é a unidade
que reina na Trindade. As três pessoas divinas não são unidas por
"operarem conjuntamente" a criação e todas as outras obras ad extra;
elas o são no seu próprio ser. A Escritura nos exorta a "fazer a verdade
na caridade – veritatem facientes in caritate" (Ef 4, 15). E Santo
Agostinho diz que "não se entra na verdade senão pela caridade – non
intratur in veritatem nisi per caritatem"[11].
O extraordinário sobre esse caminho
para a unidade baseado no amor é que ele já está escancarado diante de
nós. Não podemos “queimar etapas” no tocante à doutrina, porque as
diferenças existem e devem ser resolvidas com paciência nas instâncias
apropriadas. Podemos, porém, “queimar etapas” na caridade e ser
totalmente unidos desde já. O sinal verdadeiro e certo da vinda do
Espírito não é, como escreve ainda Santo Agostinho, o falar em línguas,
mas o amor pela unidade: “Sabeis que tendes o Espírito Santo quando
permitis que adira o vosso coração à unidade através da sincera
caridade"[12].
Pensemos no hino à caridade de São
Paulo. Cada frase adquire um significado atual e novo se aplicada ao
amor entre membros das diferentes Igrejas cristãs, nas relações
ecumênicas:
"A caridade é paciente...
A caridade não é invejosa...
Não procura só o seu interesse [ou só os interesses da sua própria Igreja].
Não leva em conta o mal recebido [quando muito, o mal causado ao outro!].
Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade [não se
alegra com as dificuldades das outras Igrejas, mas sim com os seus
sucessos espirituais].
Tudo crê, tudo espera, tudo suporta" (l Cor 13, 4s).
"Amar-se", foi dito, "não significa
olhar-se um ao outro, mas olhar juntos na mesma direção". Mesmo entre os
cristãos, amar-se quer dizer olhar na mesma direção que é Cristo. "Ele é
a nossa paz" (Ef 2, 14). Se nos convertermos a Cristo e formos juntos
para Ele, nós, cristãos, nos aproximamos entre nós até ser, como Ele
pediu, "um só com Ele e com o Pai" (cf. Jo 17, 21). Acontece como com os
raios de uma roda. Eles partem de pontos distantes da circunferência,
mas, à medida que se aproximam do centro, também se aproximam entre si,
até formar um só ponto. Acontece como naquele dia em Estocolmo...
Estamos nos aprestando a celebrar a
Páscoa. Na cruz, Jesus "derrubou o muro de separação que havia no meio, a
inimizade [...] Por meio dele, podemos todos apresentar-nos ao Pai em
um só Espírito" (Ef 2, 14-18). Nós deixemos de fazê-lo, para a alegria
do Coração de Cristo e para o bem do mundo inteiro.
Pe. Raniero Cantalamessa, OFM Cap.
[1] Cf H.G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen 1960.
[2] UR, 1.
[3] Due polmoni, un unico respiro. Oriente e Occidente di fronte ai grandi misteri della fede. Libreria Editrice Vaticana 2015.
[4] O texto da declaração conjunta pode ser encontrado na Enchiridion Vaticanum (EV) 17,744-817.
[5] Ib, núm. 40.
[6] J. Monod, Il caso e la necessità, Mondadori, Milão 1970, 136s.
[7] J.-P. Sartre, O diabo e o bom Deus, X, 4, Gallimard, Paris 1951, p. 267 s.
[8] S.Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-IIae , q. 1,a.2,ad 2.
[9] G. L. Prestige, God in Patristic Thought, Londres 1952, cap.
XIII; ed. italiana Dio nel pensiero dei Padri, Bolonha, Il Mulino,
1969, pp. 273 ss. (Il trionfo del formalismo).
[10] Cf. H.U. von Balthasar, “Casta meretrix, in Sponsa Chnristi, Morcelliana, Brescia, 1969.
[11] Agostinho, Contra Faustum, 32, 18 (CCL 321, p. 779).
[12] Agostinho, Discursos, 269, 3-4 (PL 38, 1236 s).
Sem comentários:
Enviar um comentário