Saciemos a sede de Deus na sede dos outros
De tudo o que ouvimos e o nosso coração guardou, ressalta-nos um pedido, o último pedido de Jesus. Desta maneira: «Sabendo que tudo estava consumado e para que se cumprisse a Escritura, Jesus disse: “Tenho sede”». E também o seguimento: «Estava ali um vaso cheio de vinagre. Prenderam a uma vara uma esponja embebida em vinagre e levaram-lha à boca. Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: “Tudo está consumado.” E inclinando a cabeça, expirou».
Voltamos a este texto em cada Sexta-Feira Santa, e muito especialmente nestepasso. Sem nos cansarmos dele, antes com atração mais forte e profunda. Realiza-se afinal o que Jesus dissera antes. «Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» (Jo 12, 32). E aqui estamos nós agora, como multidões na terra inteira. Ele, erguido da terra, como está na cruz. E nós aos seus pés, bebendo da sua sede.
Consta que aos crucificados se dava uma bebida entorpecente, quase lenitiva. Mas, naquele vinagre que deram a Jesus, cumpria-se sobretudo um passo da Escritura, do antigo salmo: «O insulto despedaçou-me o coração, até desfalecer; esperei compaixão, mas foi em vão; alguém que me consolasse, mas não encontrei. Deram-me fel, em vez de comida, e vinagre, quando tive sede» (Sl 69, 21-22).
Isto quanto ao vinagre. Mas quanto à própria sede, qual seria de facto? Sede de Deus, certamente, cabendo-lhe outra passagem: «A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo! Quando irei contemplar a face de Deus?» (Sl 42, 3). Jesus, Deus de Deus, é aqui também homem de Deus, ensinando-nos a pedir o que devemos, com sentimentos e palavras acertados.
Mas, se Jesus tem sede de Deus Pai, tem-na igualmente de nós. Como um de nós, procura a fonte; mas, um com o Pai, Ele é também a fonte que vem ao nosso encontro.
Assim fora no diálogo com a samaritana. Cansado da caminhada, sentara-se à beira do poço de Jacob. Veio aquela mulher tirar água e Jesus pediu-lhe: «Dá-me de beber» (Jo 4, 7). - Qual era a caminhada, qual o cansaço, qual a mulher e qual o pedido de Jesus, traduzidos de então, para aqui e agora?
O caminho é a maneira como veio e continua vir ao encontro de cada um de nós, de tanta maneira em que o podemos reconhecer na nossa vida. Espera-nos onde costumamos buscar água, como quem busca o imediato, que depois se esgota, para aí voltarmos, outra e outra vez. Mas essa mesma água nos pede, do nosso velho poço, para dar em troca a que só ele traz.
Assim foi com a samaritana, que estranhou o pedido, pois os judeus não se davam com os samaritanos. Como resistimos a dar-nos com Ele, que não desiste de nos procurar a nós. Respondeu Jesus: «Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: “dá-me de beber”, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva”» (Jo 4, 10).
É-nos difícil entender esta sede de Jesus pela nossa água, isto é, por nós, como insaciavelmente a tem. Mas só disso se trata, de a entendermos a sério, para percebermos a Paixão que celebramos.
Deus não quer desistir de nós, pois nos criou para si, vidas do nada para a vida do tudo, que só n’Ele se encontra. É essa mesma sede, do próprio Deus por nós, por cada um de nós, que brota da boca de Jesus, no instante anterior a ir buscar-nos ao mais fundo do poço em que estávamos. Como se dissesse: «Tenho sede! É de ti mesmo que tenho sede! Dá-me da água que és tu, para receberes a “água” que eu sou».
Sim, irmãos, da água que é Deus. Quando a seguir “expirou”, foi o seu Espírito que nos deu. Como prometera, acontece agora: «Jesus bradou: “Se alguém tem sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede! Como diz a Escritura: hão de correr do seu coração rios de água viva”. Ora Ele disse isto, referindo-se ao Espírito, que iam receber os que cressem nele» (Jo 7, 37-39).
Nesta celebração entrará a Cruz e havemos de “adorá-la” – verbo que significa dela receber a Deus que se entrega, como quem aspira o ar que se oferece. Aqui levantada, assim nos atrairá, a todos e um por um. Seja este o momento da plena verdade, de nós para Ele, como d’Ele é certíssima.
À sede que tem da nossa sede respondamos que sim, de uma vez por todas. E Ele, expirando, nos dará a vida. Repitamos ainda uma vez o que disse à samaritana: «Se conhecesses o dom que Deus tem para te dar e quem é que te diz: “dá-me de beber”, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!» (Jo 4, 10).
Comentando este passo evangélico, Santo Agostinho esclarece-nos: «Aquele que pedia de beber à mulher, tinha sede da sua fé. […] Pede de beber e promete dar de beber. Apresenta-se como necessitado que espera receber, mas é rico para dar em abundância. […] O dom de Deus é o Espírito Santo. […] O Senhor prometia o alimento e a abundância do Espírito Santo» (Ofício de Leitura do Domingo III da Quaresma).
Agradeçamos a sua sede de nós e reconheçamos a nossa sede d’Ele. Reconheçamos a sede do mundo e em todas as aceções que ela tem ou pode ter. Sede de água de beber, sede de água de viver, de crescer, de aprender, de conviver… De ser como Deus está sedento de que sejamos todos.
Saciemos a sede Deus na sede dos outros, para a coincidência ser perfeita e salvadora. Como na bem-aventurança: «Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5, 6). Como no último prémio: «O Rei dirá então, aos da sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque […] tive sede e destes-me de beber […]. Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes”» (Mt 25, 34-35.40)
Aos pés da Cruz, dessedentemo-nos hoje. A partir daqui, dessedentemos o mundo.
Sexta-Feira Santa, 25 de março de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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