24 março, 2016

Homilia de D. Manuel Clemente, na Missa Crismal


A família como critério e a misericórdia como alma

Caríssimos irmãos e muito especialmente vós os sacerdotes seculares e regulares aqui presentes, em Missa Crismal: É sobre nós que a unção do Espírito recai, em benefício de todos – os que são pobres de bens imediatos e os que hão de sê-lo do bem definitivo. Por isso nos escolheu, os que recebemos ordens sacerdotais; por isso nos esperam muitos, para serem povo sacerdotal também.
Neste dia tão nosso, como para todos, será bom interiorizarmos profundamente aquelas palavras proféticas que Jesus fez suas: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres…» Repitamo-las mesmo, até tocarem profundamente o nosso coração. Agradeçamos que assim seja, para condizermos sempre mais com o dom de Deus, com tudo o significou e significa no percurso existencial de cada um de nós. Para sermos também uma palavra encarnada, e precisamente esta.
Não há nada mais realista do que um sacramento, que é o amor de Deus comprometido com a nossa vida. No caso, é o sacramento da Ordem e todos os “pobres” esperam por nós assim. Como foi Jesus na sinagoga de Nazaré e a partir dela, como é cada padre na sua comunidade e para o mundo em redor - e preferindo aqueles que Jesus preferia, sem esquecer o todo a que Jesus se deu.
Sabemos como foi: Palavra viva, que era dita e feita; acolhendo uns e procurando outros; soerguendo dos catres, consolando lutos, perdoando faltas, integrando sempre. Por fim, repartiu o pão repartindo a vida, para vivermos d’Ele e nos repartirmos também. Disto vivemos nós, os cristãos, isto mesmo oferecemos, os padres, como sacramentos de Cristo sacerdote e pastor no meio de todos os seus e dos que hão de sê-lo.
Levaremos uma vida inteira a compreender a realidade de Cristo em nós, nesta aceção sacerdotal específica. Demos graças a Deus, e que Ele nos compreenda em Si, pois é disso mesmo que se trata, como princípio e fim de todas as coisas.
Connosco dá graças todo o Povo Santo, que reza por nós e pede a Deus que nos fortaleça em graça e alargue em número.

Naquela frase que meditamos, Jesus proclamava o seu programa inteiro, como depois o cumpriu e o Espírito nos dispõe a continuar. Nunca o esqueçamos, no que tem de essencial e permanente, ainda que ganhe esta ou aquela acentuação, conforme o tempo e a circunstância.
Os programas deste mundo, necessariamente, incluem análises, projeções e métodos como cabe ao espaço-tempo. Mas ter um coração pobre para chegar aos pobres, encontrar palavras para converter os outros, acertar os gestos que hão de resultar – tudo isto requer algo de maior, que só Deus garante.  
Anunciar o Evangelho, como seguir a Cristo, exige decisão ponderada, como Ele próprio adverte: «Quem dentre vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro para calcular a despesa e ver se tem com que a concluir?» (Lc 14, 28). Porém, feito tudo da nossa parte, só o Senhor é indispensável e bastante. Como concluiu outra parábola, sempre do mesmo evangelista: «Assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: “Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer”» (Lc 17, 10).
Gratuidade do serviço que não nos dispensa de nada, mas nos situa na sua origem – unicamente Deus e o seu Cristo, unicamente Cristo e o seu Espírito em nós, para que o Evangelho aconteça e a missão se expanda. Por isso mesmo, antes, durante e depois de toda a nossa ação, de padres e discípulos em geral, a oração é prioritária e só a disponibilidade interior garante o que vier depois. É este o realismo evangélico e concretiza pastoralmente a pobreza espiritual da primeira bem-aventurança.
Na nossa caminhada rumo ao Sínodo Diocesano do tricentenário patriarcal de Lisboa, assim mesmo prosseguimos, com a oração, a reflexão e o ensaio de quantos se têm debruçado sobre e exortação apostólica Evangelii Gaudium do nosso Papa Francisco, movidos pelo seu “sonho missionário de chegar a todos”. De seguida, a comissão preparatória elaborará um “instrumento de trabalho”, sistematizando os contributos dessas reflexões e ensaios. Sobre ele refletirá o Sínodo (30 de novembro – 4 de dezembro), até à sua versão final, para continuarmos localmente a missão da Igreja toda – ainda e sempre a que Jesus definiu e proclamou na sinagoga de Nazaré: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres…»    

Nas atuais circunstâncias do mundo, com a desagregação sociocultural que deixa tantas vidas sem base humana bastante para as apoiar do nascimento à morte – da conceção à morte natural, convém repetir -; nas urgências humanitárias que não podemos adiar nem iludir, em relação às multidões que batem à porta da Europa, com tanto sofrimento das crianças e seus pais e mães… Em tudo isso se destaca como grande pobreza a colmatar a das famílias que não conseguem ser o que devem ser - e precisamos que sejam.
Conjugou-se com esta prioridade o Sínodo dos Bispos sobre a família, com a exortação papal que em breve sairá e havemos de receber e cumprir. E posso adiantar, pelo conhecimento que tenho de várias contribuições entretanto chegadas dos nossos grupos sinodais de Lisboa, que tudo conflui – e criativamente conflui – para o mesmo ponto. Encontraremos nas famílias, cristãmente definidas, potenciadas e acompanhadas, quer o primeiro objetivo da nossa pastoral, quer os agentes indispensáveis da nossa missão.
Da família “Igreja doméstica” à Igreja como “família de Deus”, operação e profecia do que todo o mundo há de ser, familiar também. Nós próprios, padres celibatários, seguiremos o caminho de Jesus, que não constituiu família natural, para alargar a todos os laços familiares que experimentou nos primeiros trinta anos da sua vida, com sua Mãe, seu pai adotivo e seus parentes.
Precisamente até àquela altura em que na sinagoga de Nazaré lançou o seu programa e começou a vida pública, como há pouco ouvimos. Seremos assim em cada comunidade a companhia certa dos que têm família e dos que a não têm, integrando a todos na familiaridade nova dos filhos de Deus. Reconstituindo o primitivo apostolado, como se verificou na mútua colaboração de Paulo, apóstolo celibatário, com as primeiras famílias cristãs, como a de Áquila e Priscila, de Corinto a Éfeso.
Este reencontrado vetor familiar da pastoral e da missão, delineia-se cada vez mais como o próximo futuro da Igreja universal e local. E em Jubileu da Misericórdia, como estamos, quase que posso adiantar que, se o último programa-calendário do Patriarcado indicava “a missão como propósito e a sinodalidade como método”, o nosso Sínodo diocesano poderá acrescentar “a família como critério e a misericórdia como alma”.
Pois a misericórdia traduz um sentimento divino que biblicamente refere o entranhado amor materno e parental. E disso mesmo precisamos, para, no atual contexto da Igreja e do mundo, «anunciar a boa nova aos pobres».


Quinta-Feira Santa, 24 de março de 2016

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Patriarcado de Lisboa

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