(RV) Perante uma multidão
de féis congregados na Praça de Cristo Redemtor de Santa Cruz, na
Bolívaia, para assistir à Santa missa e à abertura do V Congresso
Eucarístico nacional, o Papa Francisco recordou aos presentes que
todos vieram de diversas partes do país e do continente latinoamericano
para "celebrar a presença viva de Deus entre nós". Eis na íntegra a
homilia pronunciada por Francisco:
«Viemos de lugares, regiões, povoados distintos, para celebrar
a presença viva de Deus entre nós. Há horas que saímos de nossas casas e
comunidades, para podermos estar juntos como Povo Santo de Deus. A cruz
e a imagem da missão trazem-nos à memória todas as comunidades que
nasceram sob o nome de Jesus nestas terras e das quais somos herdeiros.
No Evangelho que acabámos de ouvir, descrevia-se uma situação muito
semelhante à que estamos a viver agora. Como aquelas quatro mil pessoas,
também nós estamos desejosos de ouvir a Palavra de Jesus e receber a
sua vida. Eles ontem e nós hoje, ao pé do Mestre, Pão de vida.
Nestes dias, pude ver muitas mães que carregavam seus filhos às
costas, como aliás muitas de vós o fazem aqui. Carregando sobre si a
vida, o futuro do seu povo. Carregando os motivos da sua alegria, as
suas esperanças. Carregando a bênção da terra nos frutos. Carregando o
trabalho feito com as suas mãos. Mãos, que moldaram o presente e tecerão
os sonhos do amanhã. Mas carregando também sobre os seus ombros
decepções, tristezas e amarguras, a injustiça que parece não ter fim e
as cicatrizes duma justiça não realizada. Carregando sobre si mesmas a
alegria e a dor duma terra. Carregais sobre vós a memória do vosso povo.
Porque os povos têm memória, uma memória que passa de geração em
geração, uma memória em caminho.
E não são poucas as vezes que experimentamos o cansaço deste caminho.
Não são poucas as vezes que nos faltam as forças para manter viva a
esperança. Quantas vezes vivemos situações que pretendem anestesiar-nos a
memória e, deste modo, debilita-se a esperança e, pouco a pouco,
perdem-se os motivos de alegria. E começa a apoderar-se de nós uma
tristeza que nos torna individualistas, que nos faz perder a memória de
povo amado, de povo escolhido. E esta perda desagrega-nos, faz com que
nos fechemos aos outros, especialmente aos mais pobres.
Pode suceder a nós o mesmo que aos discípulos de ontem, quando viram a
quantidade de pessoas que estava lá. Pedem a Jesus que a mande embora,
já que é impossível alimentar tanta gente. Perante muitas situações de
fome no mundo, podemos dizer: «Os números não batem certo; não podemos
resolver a conta». É impossível enfrentar estas situações; então o
desespero acaba por apoderar-se do coração.
Num coração desesperado, é muito fácil ganhar espaço a lógica que
pretende impor-se no mundo de hoje. Uma lógica que procura transformar
tudo em objecto de troca, de consumo: vê tudo negociável. Uma lógica que
pretende deixar espaço para muito poucos, descartando todos aqueles que
não «produzem», que não são considerados aptos ou dignos porque,
aparentemente, «os números não batem certo». Jesus retoma a palava para
nos dizer: Não é necessário irem embora; dai-lhes vós mesmos de comer.
É um convite que hoje ressoa fortemente para nós: «Não é necessário
mandar ninguém embora, basta de descartes; dai-lhes vós mesmos de
comer». Jesus continua a dizer-nos nesta praça: Sim, basta de descartes;
dai-lhes vós mesmos de comer. O olhar de Jesus não aceita uma lógica,
uma perspectiva que sempre «corta o fio» pelo ponto mais frágil, mais
necessitado. Tomando «o pedaço», Ele mesmo nos dá o exemplo, nos mostra o
caminho. Uma atitude em três palavras: toma um pouco de pão e alguns
peixes, bendiz a Deus por eles, divide-os e entrega para que os
discípulos os partilhem com os outros. Este é o caminho do milagre. Por
certo, não é magia nem idolatria. Por meio destas três acções, Jesus
consegue transformar a lógica do descarte numa lógica de comunhão, de
comunidade. Gostaria de destacar brevemente cada uma destas acções.
Toma. O ponto de partida é tomar muito a sério a vida dos seus.
Fixa-os nos olhos e, nestes, conhece a sua vida, os seus sentimentos.
Vê, naquele olhar, o que pulsa e o que deixou de pulsar na memória e no
coração do seu povo. Considera-o e valoriza-o. Valoriza todo o bem que
possam oferecer, todo o bem a partir do qual se possa construir. Mas não
fala dos objectos, dos bens culturais ou das ideias; fala das pessoas. A
riqueza maior duma sociedade mede-se na vida do seu povo, mede-se nos
idosos que conseguem transmitir aos mais novos a sua sabedoria e a
memória do seu povo. Jesus nunca ignora a dignidade de pessoa alguma,
por maior que seja a aparência de não ter nada para oferecer ou
partilhar.
Bendiz. Jesus toma em suas mãos o dom, e bendiz o Pai que está nos
céus. Sabe que estes dons são um presente de Deus. Por isso, não os
trata como «uma coisa qualquer», dado que toda esta vida é fruto do amor
misericordioso. Ele reconhece-o. Vai além da simples aparência e, neste
gesto de bendizer, de louvar, pede a seu Pai o dom do Espírito Santo.
Aquele acto de bendizer tem esta dupla perspectiva: por um lado,
agradecer e, por outro, transformar. É reconhecer que a vida é sempre um
dom, um presente que, colocado nas mãos de Deus, adquire uma força de
multiplicação. O nosso Pai não nos tira nada, multiplica tudo.
Entrega. Em Jesus, não existe um tomar que não seja bênção, nem uma
bênção que não seja entrega. A bênção é sempre missão, tem um destino:
repartir, partilhar o que se recebeu, uma vez que só na entrega, no
com-partilhar é que as pessoas encontram a fonte da alegria e a
experiência da salvação. Uma entrega que quer reconstruir a memória de
povo santo, de povo convidado, chamado a ser portador da alegria da
salvação. As mãos, que Jesus ergue para bendizer o Deus do céu, são as
mesmas que distribuem o pão à multidão que tem fome. Podemos imaginar
como os pães e os peixes iam passando de mão em mão até chegar aos mais
afastados. Jesus consegue gerar uma corrente entre os seus: todos
estavam compartilhando o seu, transformando-o em dom para os outros, e
foi assim que comeram até ficarem saciados. E, incrivelmente, sobrou:
recolheram sete cestos de sobras. Uma memória tomada, abençoada e
entregue sempre sacia um povo.
A Eucaristia é «Pão repartido para a vida do mundo», como diz o lema
do V Congresso Eucarístico que hoje inauguramos e vai realizar-se em
Tarija. É sacramento de comunhão, que nos faz sair do individualismo
para vivermos juntos o seguimento de Jesus e nos dá a certeza de que
aquilo que temos e somos, se tomado, abençoado e entregue, pelo poder de
Deus, pelo poder do seu amor, transforma-se em pão de vida para os
outros.
A Igreja é uma comunidade memoriosa. Por isso, fiel ao mandato do
Senhor, repete incansavelmente: «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22,
19). Geração após geração actualiza, nos distintos cantos da nossa
terra, o mistério do Pão da Vida. No-lo faz presente e entrega. Jesus
quer que participemos desta sua vida e, por nosso intermédio, se vá
multiplicando na nossa sociedade. Não somos pessoas isoladas, separadas,
mas o Povo da memória actualizada e sempre entregue.
Uma vida memoriosa precisa dos outros, do intercâmbio, do encontro,
duma solidariedade real que seja capaz de entrar na lógica do tomar,
bendizer e entregar; na lógica do amor.
Maria, que, de forma igual a muitas de vós, carregou sobre si a
memória do seu povo, a vida do seu Filho, e experimentou em Si própria a
grandeza de Deus, proclamando com alegria que Ele «encheu de bens os
famintos» (Lc 1, 53), seja hoje o nosso exemplo para confiarmos na
bondade do Senhor, que faz obras grandes com a humildade dos seus
servos».
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