Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor
Compreendeis o que vos fiz?
Caríssimos, celebramos a Missa da Ceia do Senhor. Celebramo-la nas atuais circunstâncias,
difíceis decerto, mas por isso mesmo mais necessitadas de Cristo,
Sacerdote e Oferta, por nós e para nós. Sempre à luz da fé pascal, que
ilumina a nossa existência, garantindo-lhe a vitória da vida – sendo a
de Cristo em nós, para a vida do mundo.
Se nos perguntarem
o que evocamos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, responderemos,
logo e bem, que se trata da Eucaristia e do Sacerdócio ministerial que a
perpetua. Assim nos referimos ao trecho da Carta aos Coríntios, há
pouco escutado, primeiro relato escrito da respetiva instituição, que
importa muito reter, no que significa e exige.
Hoje retemos
especialmente o “Lava-Pés”, que o Evangelho segundo São João acabou de
narrar. Ressalta-nos a pergunta do próprio Cristo, a propósito do que
realizara: «- Compreendeis o que vos fiz?» Quase dois milénios depois,
não reduzimos a premência da pergunta, nem lhe esgotamos a resposta. É a
comprovação, também esta, da impossibilidade de ultrapassar as palavras
de Cristo, que, humanamente proferidas, mantêm a densidade divina que
as prolonga (cf. Mc 13, 31). É por isso que, à pergunta de
Cristo, temos de responder sinceramente que sim. Que queremos entender e
cumprir mais e melhor o que ali fez - e através de nós quer continuar a
fazer, para bem de todos.
Sobre o gesto, fixemos bem aquele tirar e retomar do manto, sinal de dignidade,
que, parecendo interrompida, ainda mais se identificou com um serviço
que não cessa: Jesus repôs o manto, mas não tirou a toalha que cingira.
Já
aqui a lição é grande e o contraste imenso com qualquer domínio que não
se traduza em serviço dos outros. Não faltam, felizmente, bons exemplos
de reinar servindo, como os que verificamos no combate à atual
pandemia. São os que mais admiramos, reconhecendo o bem que fizeram e
fazem. Reinam assim na nossa gratidão, que é o terreno mais sólido para
um reino perdurar, como acontece ao de Cristo.
Compreender o gesto
de Cristo é alcançar-lhe o significado inteiro, naquele tempo e
circunstância. Não admira a estranheza de Pedro, pois era próprio de
escravos cingir-se e lavar os pés de quem quer que fosse.
Era na
verdade um grande contraste com as atitudes habituais de uns e de
outros, senhores ou servos. Noutro Evangelho, o de São Lucas, este
“paradoxo evangélico” é especialmente acentuado. Por exemplo, quando
Jesus interroga os discípulos sobre o que era espetável num senhor,
quando o seu servo chegasse do trabalho: «Qual de vós, tendo um servo a
lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo:
“Vem cá depressa e senta-te à mesa”? Não lhe dirá antes: “Prepara-me o
jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois,
comerás e beberás tu”?» (Lc 17, 7-9). A pergunta fica em suspenso, para nos interrogar a nós.
Porém,
noutro passo, já é o senhor a cingir-se para servir quem o espera:
«Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar
vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à
mesa e há de servi-los.» (Lc 12, 37).
Esta inversão total
de posições pede a nossa conversão, total também, ao modo divino de ser
e atuar, como em Jesus se apresenta. Não esperou a nossa entrega, para
se entregar por nós. Suscita-nos e pede a adequação perfeita à sua
maneira de ser e fazer. Como quando inverte toda a ordem de grandeza: «-
Quem é o maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que
está sentado à mesa? Ora, eu estou no meio de vós como aquele que
serve.» (Lc 22, 27).
Estas passagens, onde os Evangelhos
são concordes, reforçam-nos o que aprendemos hoje com o Lava-pés segundo
São João. Mas é da coincidência das nossas vidas com a do próprio
Cristo que mais havemos de tratar, para podermos responder
afirmativamente à pergunta que ressoa, insistente: «- Compreendeis o que
vos fiz?»
Assim foi, naquela Ceia onde estamos. Para nos encontrar na pequenez que somos, fez-se mais pequeno ainda.
Para o vermos rente ao chão da vida, donde devemos começar a crescer.
Sempre com Ele e no seu meio vital, que é a “humildade” de Deus. Em
Deus, assim revelado no Lava-pés de Cristo, a humildade não é
condescendência ocasional, é sentimento essencial.
Humildade com
que mantém a sua criação agora, como no primeiro momento que ninguém viu
nem ouviu. Humildade com que nos recriou em Cristo, do recôndito
presépio de Belém à modesta Nazaré da Galileia, ou ao rochedo do
Gólgota, apenas um crucificado entre outros – mas já no meio deles, como
agora no meio de nós… É o modo divino de ser, humanamente traduzido e
oferecido. – Compreendemos já, inteiramente já?
Assim também na
humildade dos seus sacramentos, como pão repartido e cálice elevado. E
na humildade sacerdotal, quer do ministro que O representa, quer da
comunidade que com Ele se oferece, em comunhão verdadeira.
-
Compreendemos já como o Lava-Pés de Cristo resume uma atitude total, de
Deus para nós e de nós para Deus? Respondamos hoje que assim mesmo será,
para que todos descubram que o serviço aos outros é o sacrifício que
Deus pede. Bem o souberam as primeiras gerações cristãs, face aos mais
desamparados do seu tempo. Como na Epístola de São Tiago, sempre tão
concreta: «A religião pura e sem mácula diante daquele que é Deus e Pai é
esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se
deixar contaminar pelo mundo» (Tg 1, 27).
Traduzamo-lo
nas necessidades de agora, tão inesperadas e acrescidas, para a
humanidade próxima e global. Reconheçamos agradecidos a solidariedade de
tantas pessoas, dos profissionais de saúde e outros setores
fundamentais às autoridades e famílias. O Espírito divino prolonga neles
o Lava-Pés de Cristo, reavivando-lhe a imagem e recuperando-lhe a
semelhança. Assim acontece igualmente nas comunidades cristãs e nos seus
ministros, que, mesmo sem a possibilidade de celebrar presencialmente, o
fazem sempre por todos. Agradeçamos a Cristo Sacerdote a sua
manifestação em tantos sacerdotes que nestes dias lhe reproduzem o
cuidado pastoral, com grande generosidade criativa.
Assim
continua o Lava-Pés de Cristo, no sentido absoluto do termo, para
compreendermos como Deus é e como atua. Assim a Santa Missa se faz Santa
Missão.
Sé de Lisboa, 9 de abril de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de lisboa
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