09 abril, 2020

Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor



Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor

Compreendeis o que vos fiz?

Caríssimos, celebramos a Missa da Ceia do Senhor. Celebramo-la nas atuais circunstâncias, difíceis decerto, mas por isso mesmo mais necessitadas de Cristo, Sacerdote e Oferta, por nós e para nós. Sempre à luz da fé pascal, que ilumina a nossa existência, garantindo-lhe a vitória da vida – sendo a de Cristo em nós, para a vida do mundo. 

Se nos perguntarem o que evocamos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, responderemos, logo e bem, que se trata da Eucaristia e do Sacerdócio ministerial que a perpetua. Assim nos referimos ao trecho da Carta aos Coríntios, há pouco escutado, primeiro relato escrito da respetiva instituição, que importa muito reter, no que significa e exige. 

Hoje retemos especialmente o “Lava-Pés”, que o Evangelho segundo São João acabou de narrar. Ressalta-nos a pergunta do próprio Cristo, a propósito do que realizara: «- Compreendeis o que vos fiz?» Quase dois milénios depois, não reduzimos a premência da pergunta, nem lhe esgotamos a resposta. É a comprovação, também esta, da impossibilidade de ultrapassar as palavras de Cristo, que, humanamente proferidas, mantêm a densidade divina que as prolonga (cf. Mc 13, 31). É por isso que, à pergunta de Cristo, temos de responder sinceramente que sim. Que queremos entender e cumprir mais e melhor o que ali fez - e através de nós quer continuar a fazer, para bem de todos.

Sobre o gesto, fixemos bem aquele tirar e retomar do manto, sinal de dignidade, que, parecendo interrompida, ainda mais se identificou com um serviço que não cessa: Jesus repôs o manto, mas não tirou a toalha que cingira. 

Já aqui a lição é grande e o contraste imenso com qualquer domínio que não se traduza em serviço dos outros. Não faltam, felizmente, bons exemplos de reinar servindo, como os que verificamos no combate à atual pandemia. São os que mais admiramos, reconhecendo o bem que fizeram e fazem. Reinam assim na nossa gratidão, que é o terreno mais sólido para um reino perdurar, como acontece ao de Cristo.

Compreender o gesto de Cristo é alcançar-lhe o significado inteiro, naquele tempo e circunstância. Não admira a estranheza de Pedro, pois era próprio de escravos cingir-se e lavar os pés de quem quer que fosse.

Era na verdade um grande contraste com as atitudes habituais de uns e de outros, senhores ou servos. Noutro Evangelho, o de São Lucas, este “paradoxo evangélico” é especialmente acentuado. Por exemplo, quando Jesus interroga os discípulos sobre o que era espetável num senhor, quando o seu servo chegasse do trabalho: «Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo: “Vem cá depressa e senta-te à mesa”? Não lhe dirá antes: “Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e beberás tu”?» (Lc 17, 7-9). A pergunta fica em suspenso, para nos interrogar a nós.

Porém, noutro passo, já é o senhor a cingir-se para servir quem o espera: «Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há de servi-los.» (Lc 12, 37).

Esta inversão total de posições pede a nossa conversão, total também, ao modo divino de ser e atuar, como em Jesus se apresenta. Não esperou a nossa entrega, para se entregar por nós. Suscita-nos e pede a adequação perfeita à sua maneira de ser e fazer. Como quando inverte toda a ordem de grandeza: «- Quem é o maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, eu estou no meio de vós como aquele que serve.» (Lc 22, 27).

Estas passagens, onde os Evangelhos são concordes, reforçam-nos o que aprendemos hoje com o Lava-pés segundo São João. Mas é da coincidência das nossas vidas com a do próprio Cristo que mais havemos de tratar, para podermos responder afirmativamente à pergunta que ressoa, insistente: «- Compreendeis o que vos fiz?»     
        
Assim foi, naquela Ceia onde estamos. Para nos encontrar na pequenez que somos, fez-se mais pequeno ainda. Para o vermos rente ao chão da vida, donde devemos começar a crescer. Sempre com Ele e no seu meio vital, que é a “humildade” de Deus. Em Deus, assim revelado no Lava-pés de Cristo, a humildade não é condescendência ocasional, é sentimento essencial. 

Humildade com que mantém a sua criação agora, como no primeiro momento que ninguém viu nem ouviu. Humildade com que nos recriou em Cristo, do recôndito presépio de Belém à modesta Nazaré da Galileia, ou ao rochedo do Gólgota, apenas um crucificado entre outros – mas já no meio deles, como agora no meio de nós… É o modo divino de ser, humanamente traduzido e oferecido. – Compreendemos já, inteiramente já?

  Assim também na humildade dos seus sacramentos, como pão repartido e cálice elevado. E na humildade sacerdotal, quer do ministro que O representa, quer da comunidade que com Ele se oferece, em comunhão verdadeira. 

- Compreendemos já como o Lava-Pés de Cristo resume uma atitude total, de Deus para nós e de nós para Deus? Respondamos hoje que assim mesmo será, para que todos descubram que o serviço aos outros é o sacrifício que Deus pede. Bem o souberam as primeiras gerações cristãs, face aos mais desamparados do seu tempo. Como na Epístola de São Tiago, sempre tão concreta: «A religião pura e sem mácula diante daquele que é Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo» (Tg 1, 27).

Traduzamo-lo nas necessidades de agora, tão inesperadas e acrescidas, para a humanidade próxima e global. Reconheçamos agradecidos a solidariedade de tantas pessoas, dos profissionais de saúde e outros setores fundamentais às autoridades e famílias. O Espírito divino prolonga neles o Lava-Pés de Cristo, reavivando-lhe a imagem e recuperando-lhe a semelhança. Assim acontece igualmente nas comunidades cristãs e nos seus ministros, que, mesmo sem a possibilidade de celebrar presencialmente, o fazem sempre por todos. Agradeçamos a Cristo Sacerdote a sua manifestação em tantos sacerdotes que nestes dias lhe reproduzem o cuidado pastoral, com grande generosidade criativa.  

Assim continua o Lava-Pés de Cristo, no sentido absoluto do termo, para compreendermos como Deus é e como atua. Assim a Santa Missa se faz Santa Missão.
   
Sé de Lisboa, 9 de abril de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Patriarcado de lisboa

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