Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Tudo está consumado!
Caríssimos:
Sempre acontece, depois de ouvir a Paixão do Senhor em Sexta-Feira
Santa, ser difícil acrescentar alguma coisa, além do silêncio
meditativo. Acaba por impor-se algum trecho, como o que vos destaco
agora. Tenho sobretudo presente quem mais sofre e quem mais cuida, neste
difícil tempo que decorre. Neles continua a Paixão de Cristo e com eles
querermos estar em comunhão perfeita.
Ressoa-me
sobremaneira este passo: «… sabendo que tudo estava consumado e para que
se cumprisse a Escritura, Jesus disse: “Tenho sede”. Estava ali um vaso
cheio de vinagre. Prenderam a uma vara uma esponja embebida em vinagre e
levaram-lha à boca. Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: “Tudo está
consumado.” E inclinando a cabeça, expirou.»
Tudo estava
consumado, naquele momento final e finalizado. Mas ouvimo-lo agora para
connosco acontecer também. Aquilo a que chamamos geralmente “vida
cristã” deve ser, mais propriamente, “vida de Cristo em nós”. Lembrá-lo
junto à Cruz do Senhor é o que mais importa nesta celebração. - Como não
aceitar o realismo de São Paulo, em frases como esta, que decerto
sabemos de cor: «Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo,
mas é Cristo que vive em mim» (Gl 3, 19-20)?!
Toda a
vida terrena de Cristo é orientada para este fim, que é entregar-se por
nós, para nos levar aonde nunca chegaríamos sozinhos, tal a distância
que entrepusemos com Deus. Falo de nós, como humanidade ferida e
insarável por si só, como a história geral e particular tragicamente
demonstra. As boas aspirações permanecem, mas as deceções também. É
preciso mais do que boas intenções para encher o Céu…
Jesus foi
realmente um de nós, para nos ensinar a ser inteiramente de Deus, como
ele próprio é inteiramente do Pai. Não foi preciso muito tempo e muito
estudo para que as primeiras gerações cristãs o soubessem. Como ouvimos
há pouco na Epístola aos Hebreus: «Ele mesmo foi provado em tudo, à
nossa semelhança, exceto no pecado […]. Apesar de ser Filho [de Deus],
aprendeu a obediência no sofrimento. E, tendo atingido a sua plenitude,
tornou-se, para os que lhe obedecem, causa de salvação eterna.»
Em
tudo igual a nós, menos no que nos separa de Deus. O que isto doí, a
separação, contou-o numa parábola em que se fala da prodigalidade dum
filho e da misericórdia do pai (cf. Lc 15, 11-32). Parábola que devemos guardar na memória convertida.
Doeu-se
aquele filho, quando esbanjou tudo o que o pai lhe dera e ficou em
miséria extrema. E condoeu-se sobretudo aquele pai, que sempre esperou o
regresso do filho e o recebeu com espantosa alegria. Bem ao contrário
do irmão mais velho da parábola, Jesus irmanou-se connosco e tornou-se
ele próprio o caminho do regresso. Bem sabia ser essa a maior alegria do
Céu, por um só pecador que se converta (cf. Lc 15, 7).
Jesus fez-se caminho e o caminho consumou-se na Cruz.
Não por gosto próprio ou do Pai, mas porque nela nos colocamos nós e aí
mesmo teve de nos recuperar a todos. Nas mil e uma cruzes deste mundo,
encontramo-lo nas mãos de Deus Pai, que nele nos recebem.
Tem
sede da nossa sede, para nos saciar com a água viva do seu Espírito,
como disse à Samaritana: «Quem beber da água que eu lhe der, nunca mais
terá sede». E é essa a obra que consuma, levando-nos ao Pai pelo
estreito caminho da Cruz, como a seguir disse aos discípulos: «O meu
alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 14.34).
Compreendamos,
irmãos, que a Cruz era inevitável, porque inevitáveis somos nós, tão
contraditórios e frágeis. Eleva-se do rochedo do Gólgota, maneira de
indicar o chão deste mundo que é o nosso agora. Jesus não nos encontra
nem aliena em qualquer zona etérea de imaginação ou desejo. Busca-nos no
chão concreto onde vivemos realmente – e por vezes duramente, como
tantos experimentam.
É neste chão, nesta rocha, que se levanta a
Cruz. Era um instrumento de tortura horrível, de que o olhar fugia. O
condenado tinha os pulsos amarrados – e no caso de Jesus pregados – numa
trave dura. Mas os seus braços alargaram-se até onde a vida humana se
distende. Em todo o espaço e tempo, como o nosso agora, onde a sua Cruz
se eleva. Tudo nela cabe: dores e esperanças, caminhos e descaminhos.
Também o sofrimento que a pandemia trouxe e a grande coragem de quem a
combate.
A Cruz eleva-se sempre, na transcendência divina.
Contemplamo-la hoje, seguindo o olhar de Jesus, que visa sempre o Pai,
passando por nós todos. Acontece agora, quando entre tantos trabalhos e
canseiras, entre tantos planos e percalços, a lembrança da Cruz nos
reanima e alenta. Acontece agora, acontece sempre.
Só isto
“explica” porque é que um sinal de morte – e morte tremenda – acabou por
se impor. Impôs-se por si só e contra toda a expetativa humana,
percorrendo os séculos e esperando-nos no futuro. A Cruz tornou-se o
coração do mundo e por ela entramos na Casa do Pai, no Coração de Deus.
Só Cristo o podia fazer, porque «de Deus saíra e para Deus voltava» (Jo 13, 3). Na Cruz leva-nos consigo e de onde estivermos.
«E
inclinando a cabeça expirou.» Exalou-nos o Espírito, para que o último
instante da sua vida terrena fosse o primeiro da nossa vida divina.
A
verdade do que ouvimos e contemplamos requer sempre, requer hoje, a
nossa presença junto da Cruz que se ergue neste mundo, assolado por tão
grave pandemia. Presença orante e solidária. Orante, pois com Cristo
olhamos o Pai; solidária, pois com Cristo olhamos a todos. Fixemo-nos no
Crucificado, que em cada um nos alcança.
Sé Lisboa, 10 de abril de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
(Fotografia: Filipe Amorim)
Patriarcado de Lisboa
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