10 abril, 2020

Homilia na Celebração da Paixão do Senhor



Homilia na Celebração da Paixão do Senhor

Tudo está consumado!

Caríssimos: Sempre acontece, depois de ouvir a Paixão do Senhor em Sexta-Feira Santa, ser difícil acrescentar alguma coisa, além do silêncio meditativo. Acaba por impor-se algum trecho, como o que vos destaco agora. Tenho sobretudo presente quem mais sofre e quem mais cuida, neste difícil tempo que decorre. Neles continua a Paixão de Cristo e com eles querermos estar em comunhão perfeita.

Ressoa-me sobremaneira este passo: «… sabendo que tudo estava consumado e para que se cumprisse a Escritura, Jesus disse: “Tenho sede”. Estava ali um vaso cheio de vinagre. Prenderam a uma vara uma esponja embebida em vinagre e levaram-lha à boca. Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: “Tudo está consumado.” E inclinando a cabeça, expirou.»

Tudo estava consumado, naquele momento final e finalizado. Mas ouvimo-lo agora para connosco acontecer também. Aquilo a que chamamos geralmente “vida cristã” deve ser, mais propriamente, “vida de Cristo em nós”. Lembrá-lo junto à Cruz do Senhor é o que mais importa nesta celebração. - Como não aceitar o realismo de São Paulo, em frases como esta, que decerto sabemos de cor: «Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 3, 19-20)?! 

Toda a vida terrena de Cristo é orientada para este fim, que é entregar-se por nós, para nos levar aonde nunca chegaríamos sozinhos, tal a distância que entrepusemos com Deus. Falo de nós, como humanidade ferida e insarável por si só, como a história geral e particular tragicamente demonstra. As boas aspirações permanecem, mas as deceções também. É preciso mais do que boas intenções para encher o Céu…

Jesus foi realmente um de nós, para nos ensinar a ser inteiramente de Deus, como ele próprio é inteiramente do Pai. Não foi preciso muito tempo e muito estudo para que as primeiras gerações cristãs o soubessem. Como ouvimos há pouco na Epístola aos Hebreus: «Ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado […]. Apesar de ser Filho [de Deus], aprendeu a obediência no sofrimento. E, tendo atingido a sua plenitude, tornou-se, para os que lhe obedecem, causa de salvação eterna.» 

Em tudo igual a nós, menos no que nos separa de Deus. O que isto doí, a separação, contou-o numa parábola em que se fala da prodigalidade dum filho e da misericórdia do pai (cf. Lc 15, 11-32). Parábola que devemos guardar na memória convertida. 

Doeu-se aquele filho, quando esbanjou tudo o que o pai lhe dera e ficou em miséria extrema. E condoeu-se sobretudo aquele pai, que sempre esperou o regresso do filho e o recebeu com espantosa alegria. Bem ao contrário do irmão mais velho da parábola, Jesus irmanou-se connosco e tornou-se ele próprio o caminho do regresso. Bem sabia ser essa a maior alegria do Céu, por um só pecador que se converta (cf. Lc 15, 7).

Jesus fez-se caminho e o caminho consumou-se na Cruz. Não por gosto próprio ou do Pai, mas porque nela nos colocamos nós e aí mesmo teve de nos recuperar a todos. Nas mil e uma cruzes deste mundo, encontramo-lo nas mãos de Deus Pai, que nele nos recebem. 

Tem sede da nossa sede, para nos saciar com a água viva do seu Espírito, como disse à Samaritana: «Quem beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede». E é essa a obra que consuma, levando-nos ao Pai pelo estreito caminho da Cruz, como a seguir disse aos discípulos: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 14.34).      

Compreendamos, irmãos, que a Cruz era inevitável, porque inevitáveis somos nós, tão contraditórios e frágeis. Eleva-se do rochedo do Gólgota, maneira de indicar o chão deste mundo que é o nosso agora. Jesus não nos encontra nem aliena em qualquer zona etérea de imaginação ou desejo. Busca-nos no chão concreto onde vivemos realmente – e por vezes duramente, como tantos experimentam. 

É neste chão, nesta rocha, que se levanta a Cruz. Era um instrumento de tortura horrível, de que o olhar fugia. O condenado tinha os pulsos amarrados – e no caso de Jesus pregados – numa trave dura. Mas os seus braços alargaram-se até onde a vida humana se distende. Em todo o espaço e tempo, como o nosso agora, onde a sua Cruz se eleva. Tudo nela cabe: dores e esperanças, caminhos e descaminhos. Também o sofrimento que a pandemia trouxe e a grande coragem de quem a combate. 

A Cruz eleva-se sempre, na transcendência divina. Contemplamo-la hoje, seguindo o olhar de Jesus, que visa sempre o Pai, passando por nós todos. Acontece agora, quando entre tantos trabalhos e canseiras, entre tantos planos e percalços, a lembrança da Cruz nos reanima e alenta. Acontece agora, acontece sempre. 

Só isto “explica” porque é que um sinal de morte – e morte tremenda – acabou por se impor. Impôs-se por si só e contra toda a expetativa humana, percorrendo os séculos e esperando-nos no futuro. A Cruz tornou-se o coração do mundo e por ela entramos na Casa do Pai, no Coração de Deus. Só Cristo o podia fazer, porque «de Deus saíra e para Deus voltava» (Jo 13, 3). Na Cruz leva-nos consigo e de onde estivermos.

«E inclinando a cabeça expirou.» Exalou-nos o Espírito, para que o último instante da sua vida terrena fosse o primeiro da nossa vida divina. 

A verdade do que ouvimos e contemplamos requer sempre, requer hoje, a nossa presença junto da Cruz que se ergue neste mundo, assolado por tão grave pandemia. Presença orante e solidária. Orante, pois com Cristo olhamos o Pai; solidária, pois com Cristo olhamos a todos. Fixemo-nos no Crucificado, que em cada um nos alcança.  

Sé Lisboa, 10 de abril de 2020

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

(Fotografia: Filipe Amorim)
Patriarcado de Lisboa

Sem comentários:

Enviar um comentário