09 abril, 2020

Carta de Quinta-Feira Santa aos sacerdotes do Patriarcado de Lisboa

 

Carta de Quinta-Feira Santa aos sacerdotes do Patriarcado de Lisboa

Caríssimos irmãos sacerdotes:

Saúdo-vos com muita estima e gratidão, mesmo com a distância que as circunstâncias impõem e sem o nosso encontro habitual na Sé. Uno-me a cada um de vós, na respetiva vida e ministério, que são para mim constante motivo de oração e esperança.

Chegam-me repetidas notícias de como acompanhais as comunidades nestes tempos difíceis, em que a presença física é limitada e a criatividade pastoral a supera doutras formas. – Graças a Deus que tanto vos inspira!  

Fixo-me na passagem do Apocalipse que se lê na Missa Crismal: «Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos!»

Tomo este passo para salientar a natureza “sacerdotal” da vida em Cristo e do nosso ministério em função desta. Se atenuamos tal realidade, perdemos o horizonte final que Cristo nos abriu e ofuscamos o sentido da sua oferta ao Pai, por nós e para nós, qual palavra inteiramente realizada e assim plenamente sacramental. Sentido que se mantém, especialmente nas atuais circunstâncias e enquanto não podemos pregar e celebrar diretamente com o povo. Pois é pelo povo que continuamos a celebrar e rezar. 

A partilha que vamos fazendo nestes dias tem acentuado a dimensão sacerdotal do nosso ministério e o citado trecho do Apocalipse resumiu o que nos define como povo sacerdotal, a todos nós os batizados. – Lembramo-lo tantas vezes, nos batismos que administramos aos que assim se tornam «membros de Cristo, sacerdote, profeta e rei»! Sacerdócio e sacrifício são um só em Cristo, que consigo nos devolve a Deus Pai, verdadeira destinação de todos. 

Este sacerdócio desenvolve-se a partir de Cristo, continuado no nosso ministério; e depois em todos, como povo reunido para Deus. Nestes três momentos se enuncia a “oração sacerdotal”: Cristo pede por si: «Pai, chegou a hora! Manifesta a glória do teu Filho, de modo que o Filho manifeste a tua glória»; pede pelos que teve mais perto: «Pai santo, guarda-os em ti, para serem um só, como Nós somos!»; e pede por quantos os ouvirem: «Não rogo só por eles, mas também por aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim, e eu em ti» (Jo 17, 1.11.20-21). 

É no Coração Sacerdotal de Jesus que nos compreendemos. É este Coração que pulsa agora em nós – e por essa razão o Santo Cura d’Ars definiu o padre como «o amor do Coração de Jesus». Um coração que ama intensamente e por isso anuncia e celebra a oferta de Cristo, a bem de todos.

Nada acontece sem mediações, entre a imensidão divina e a pequenez humana. O que passa por nós e sacramentalmente nos repassa, irmãos sacerdotes, medeia o sacerdócio de Cristo, palavra e gesto salvadores. É a nossa verdade existencial agora e o nosso lugar eclesial sempre, como vocação própria e ministério indelegável. Escreveu-o há pouco o Papa Francisco, na exortação Querida Amazónia, com grande clareza: «… é importante determinar o que é mais específico do sacerdote, aquilo que não se pode delegar. A resposta está no sacramento da Ordem sacra, que o configura a Cristo sacerdote. E a primeira conclusão é que este caráter exclusivo recebido na Ordem capacita-o só a ele para presidir à Eucaristia. Esta é a sua função específica, principal e não delegável» (QA, 87).

 O Papa explicita depois: «O sacerdote é sinal desta Cabeça [Cristo] que derrama a graça, antes de tudo, quando celebra a Eucaristia, fonte e cume de toda a vida cristã. Este é o seu grande poder, que só pode ser recebido no sacramento da Ordem. Por isso, apenas ele pode dizer: “Isto é o meu corpo”. Há outras palavras que só ele pode pronunciar: “Eu te absolvo dos teus pecados”; pois o perdão sacramental está ao serviço duma celebração eucarística digna. Nestes dois sacramentos está o coração da sua identidade exclusiva» (QA, 88).

São muito esclarecedoras, estas palavras do Papa Francisco sobre o sacerdócio ministerial. E do que havemos de dizer e fazer, no meio do povo sacerdotal, para que este o seja, no seu modo geral e resultante. Fazemo-lo mais intimamente nestes dias, mas não menos pastoralmente na sua raiz. 
  
Com tal radicação divina, com tal objetivo santificador, havemos de considerar que a ação pastoral tem de ser sempre sacerdotal, de Deus para Deus e em oração insistente, pelo povo e com o povo.

Trata-se de ação sagrada, só possível a partir de Deus e para Deus orientada. Há de impregnar tudo o mais, da pregação à catequese e dos sacramentos à caridade. Para glória de Deus e a vida de todos em Deus. É este o arco completo da realidade eclesial, que, retida em nós, logo se perderia. Da primeira à última pregação que fizermos, da primeira à última ação que realizarmos, tudo tem de ganhar dimensão sacerdotal, para se oferecer ao Pai, com Cristo e no Espírito. 

 Também por isso, São Paulo descreveu o seu próprio ministério apostólico em linguagem sacerdotal: «… escrevi-vos, em parte, com um certo atrevimento, como alguém que vos reaviva a memória. Faço-o em virtude da graça que me foi dada: ser para os gentios um ministro de Cristo Jesus, que administra o Evangelho de Deus como um sacerdote, a fim de que a oferenda dos gentios, santificada pelo Espirito Santo, lhe seja agradável» (Rm 15, 15-16). Oferenda vital em que o sacerdócio comum se realizará, como também escreve, pedindo aos cristãos de Roma para se oferecerem «como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus» (Rm 12, 1).

Com esta finalidade fomos nós ordenados, caros irmãos sacerdotes. Como sacramento de Cristo Cabeça, Sacerdote e Pastor, servimos um povo que há de ser inteiramente de Deus e para Deus, sacerdotal também neste sentido amplo e verdadeiro. Servimo-lo como sinal vivo pela nossa consagração. Servimo-lo por palavras e gestos, que são os de Cristo em nós, para chegar a todos. Por isso, o Papa Francisco cita São João Paulo II para dizer que o sacerdócio “hierárquico”, não está acima dos outros, mas «ordena-se integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo» (QA, 87).

A nossa realidade sacerdotal específica é imensa graça e total encargo. Unimo-nos «Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai», como lemos no Apocalipse. Nas presentes circunstâncias, mesmo quando celebramos sem povo, colocamos nas mãos de Deus Pai – as mesmas a que Jesus se entregou na cruz – todo o sofrimento do mundo e toda a generosidade que o alivia. Nas mãos do Pai, sabemo-lo bem, nada se perde e tudo revive sempre mais.  
  
Inteiramente convosco, caríssimos irmãos sacerdotes do clero secular e regular, e com os Bispos que comigo trabalham no Patriarcado, desejo a cada um de vós uma Páscoa muito santa e feliz, alargada a todo o Povo de Deus e à sociedade que integramos. 

Vosso, com oração e muita estima,

+ Manuel, Cardeal-Patriarca 

Patriarcado de Lisboa

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