06 abril, 2020

Via-Sacra: meditações escritas no cárcere


Via-Sacra: Verónica enxuga o rosto de Jesus

Cinco presos, uma família vítima de homicídio, a filha de um condenado a prisão perpétua, uma educadora, um juiz corregedor de presídios, a mãe de um presidiário, uma catequista, um sacerdote acusado injustamente, um frade voluntário, um policia, todos ligados à Capelania do Cadeia “Due Palazzi” de Pádua: são os autores das meditações que serão lidas durante a Via-Sacra deste ano, presidida pelo Papa Francisco no adro da Basílica de São Pedro 

Adriana Masotti – Cidade do Vaticano 

“Acompanhar Cristo no Caminho da Cruz, com a voz rouca dos que vivem no mundo carcerário, é uma oportunidade para assistir ao prodigioso duelo entre a Vida e a Morte, descobrindo como os fios do bem se entrelacem inevitavelmente com os fios do mal”. São palavras escritas na introdução das meditações da Via-Sacra publicadas pela Libreria Editrice Vaticana. Os textos, as narrações do capelão do Instituto carcerário “Due Palazzi” de Pádua, padre Marco Pozza, e da voluntária Tatuana Mario, foram escritos por eles mesmos, mas pretendem dar voz a todos os que partilham a mesma condição no mundo inteiro. 

No cárcere, Jesus procurou-me
 
“Crucifica-o, crucifica-o!”. A pessoa que comenta a primeira estação (Jesus é condenado à morte) é um condenado à prisão perpétua. Crucifica-o “é um grito que ouvi dirigido a mim”, escreve. A sua crucificação iniciou quando era criança, uma criança marginalizada, agora considera-se mais semelhante a Barrabás do que a Cristo. O seu passado é algo que lhe causa repulsa. “Depois de 29 anos de prisão – afirma – ainda não perdi a capacidade de chorar, de me envergonhar pelo mal que fiz (…) porém sempre procurei algo que fosse vida”. Hoje “percebo, no coração, que aquele Homem inocente, condenado como eu, veio me procurar no cárcere para me educar para a vida”. 

O amor é mais forte do que o mal
 
Na segunda estação (“Jesus carrega a cruz”), a meditação foi escrita por um casal que teve a sua filha assassinada. “A nossa vida foi sempre uma vida de sacrifícios, baseada no trabalho e na família. Muitas vezes interrogamo-nos: Por que razão este mal foi acontecer exatamente connosco? Não temos paz”. Sobreviver à morte de um filho é doloroso, mas “no momento em que o desespero parece tomar conta de tudo, o Senhor, por mais do que um modo, vem ao nosso encontro, dando-nos a graça de nos amarmos como casal, apoiando-nos um ao outro, mesmo com dificuldade”. Continuam a fazer o bem aos outros, e deste modo encontram uma forma de salvação, não querem render-se ao mal. Provam que “o amor de Deus é capaz de regenerar a vida”. 

No mundo há também a bondade
 
Na terceira estação (“Jesus cai pela primeira vez”) um presidiário conta que a sua queda, a primeira foi o seu fim. Depois de uma vida difícil, na qual não dava conta que o mal estava a crescer dentro de si, dominando-o, tirou a vida de uma pessoa. “Uma noite, num instante, como uma avalanche – escreve – desencadearam na minha cabeça todas as injustiças às quais fui submetido durante a vida. A raiva assassinou a gentileza, cometi um mal imensamente maior do que todos os que tinha recebido”. Na prisão tentou o suicídio, mas depois encontrou a luz, por meio do encontro com pessoas que lhe davam novamente “a confiança perdida”, mostrando-hle que neste mundo existe também a bondade. 

O olhar do amor entre a mãe e o filho
 
“Nem mesmo por um instante tive a tentação de abandonar o meu filho à sua condenação”, afirma a mãe de um preso. As suas palavras comentam a quarta estação (Jesus encontra Maria, sua Mãe”). Desde a prisão do filho “as feridas crescem com o passar dos dias, tirando-nos até mesmo o ar que respiramos. Percebo a proximidade de Nossa Senhora… Confiei o meu filho a Ela: posso confiar os meus medos somente a Maria, visto que ela mesma os sofreu enquanto subia o Calvário”. E continua: “Imagino Jesus, ao elevar o seu olhar, tenha cruzado com os olhos da sua mãe cheios de amor e não se tenha sentido sozinho em nenhum momento. Assim eu quero que meu filho se sinta”. 

O sonho de ser um Cireneu para os outros
 
A quinta estação também é explicada por um prisioneiro (O Cireneu ajuda Jesus a levar a cruz”). A cruz a ser carregada é pesada, mas “dentro da prisão Simão Cireneu é conhecido por todos: é o segundo nome dos voluntários, dos que sobem este calvário para ajudar a levar a uma cruz”. Um outro Simão Cireneu é o seu companheiro de cela, capaz de uma generosidade inesperada. Conclui: “Estou envelhecendo na prisão: sonho num dia poder confiar no homem. Torna-me um cireneu da alegria para alguém”. 

Um olhar que permite recomeçar
 
“Como catequista enxugo muitas lágrimas, deixando-as escorrer: não se pode deter o pranto de corações dilacerados”. São as palavras de uma catequista que reflete deste modo a sexta estação (“Verónica enxuga o rosto de Jesus”). Como fazer para abrandar a angústia de homens “que não encontram uma saída depois de cederam ao mal?”. O único caminho é ficar ali, ao lado deles, sem nenhum medo, “respeitando os seus silêncios, escutando as suas dores, procurando olhar para além do preconceito”. Assim como faz Jesus com as nossas fragilidades. E escreve: “A cada um, também aos reclusos, é oferecido todos os dias, a possibilidade de se tornarem pessoas novas graças Àquele olhar que não julga, mas inspira vida e esperança”. 

A vontade de reconstruir a própria vida
 
Na sétima estação (“Jesus cai pela segunda vez”), um prisioneiro culpado de tráfico de drogas, que causou a prisão de toda a sua família junto com ele, sente uma infinita vergonha de si mesmo. Escreve: “Só hoje consigo admitir: naquela época que não sabia o que fazia, agora que sei, com a ajuda de Deus, estou a tentar reconstruir a minha vida”. A ideia de que o mal continue e comandar a sua vida lhe é insuportável, tornou-se a sua via-sacra. A oração ao Senhor é: “Por todos os que ainda não souberam como escapar do poder de Satanás, a todo o fascínio das suas obras e às suas múltiplas formas de sedução”. 

Para mim esperar é uma obrigação
 
“Há 28 anos pago a pena de crescer sem pai”, é a experiência de uma filha de um condenado à prisão perpétua ao comentar a oitava estação (“Jesus encontra as mulheres de Jerusalém”). Na minha família tudo se desagregou, ela viaja por Itália para ficar perto do seu pai todas as vezes que o transferem de uma prisão para outra, e refletindo sobre a sua vida diz: “Há pais que por amor aprendem a esperar que o filho amadureça. Para mim, por amor, espero a volta de meu pai. Para os que vivem como nós, a esperança é uma obrigação”. 

A força de se levantar e a coragem de deixar-se ajudar


Cair e todas as vezes levantar-se é o testemunho de um preso que se identifica com o que vê na nona estação (“Jesus cai pela terceira vez”). “Como Pedro procurei e encontrei mil desculpas para os meus erros: o facto estranho é que um fragmento de bem ficou sempre aceso dentro de mim”, escreve. E conclui: “É verdade que me despedacei em mil pedaços, mas a beleza é que aqueles pedaços podem ainda ser recompostos. Não é fácil: porém é a única coisa, que aqui dentro, ainda tenha um significado”.

Sustentar os que perderam tudo

Na décima estação é recordado “Jesus é despojado das suas vestes”, uma educadora que trabalha na prisão vê isto em muitos presos, pessoas despojadas da sua dignidade e do respeito por si e pelos outros. São homens e mulheres “desesperados nas suas fragilidades, muitas vezes privados do necessário para compreender o mal que cometeram. Porém, lentamente assemelham-se a crianças recém-nascidas que ainda podem ser modeladas”. Mas não é fácil levar adiante este compromisso. “Neste serviço tão delicado – escreve – temos necessidade de não nos sentirmos tão abandonados, para poder sustentar tantas vidas que nos foram confiadas e que correm todos os dias o risco de naufragarem”. 

Os inocentes culpados por falsas acusações
 
Na décima-primeira estação da Via-Sacra (“Jesus é pregado na cruz”), a meditação é de um sacerdote acusado e depois absolvido. A sua pessoal via-sacra durou 10 anos, “inundada por arquivos, suspeitas, acusações e injúrias”. Enquanto subia o calvário, conta, encontrou muitos cireneus que lhe ajudaram a carregar o peso da cruz. Juntos rezaram pelo jovem que o tinha acusado. “O dia em que fui absolvido – escreve – descobri que era mais feliz do que dez anos atrás: toquei com a mão a ação de Deus na minha vida. Preso na cruz, o meu sacerdócio se iluminou”. 

A pessoa por detrás da culpa


O comentário da décima-segunda estação é de um juiz corregedor de presídios (“Jesus morre na cruz”). Uma verdadeira justiça – afirma – é possível somente através da misericórdia que não prega o homem na cruz para sempre”. É necessário ajudá-lo a levantar-se, descobrindo que o bem, apesar de tudo, “nunca se apaga completamente no seu coração”. Mas isto só será possível aprendendo “a reconhecer a pessoa escondida por detrás da culpa cometida”, deste modo pode-se “entrever um horizonte que pode dar esperança às pessoas condenadas”. A oração ao Senhor é pelos “magistrados, juízes e advogados, para que se mantenham íntegros no exercício do seu serviço” a favor principalmente dos mais pobres. 

Imaginarmo-nos diferente de como nos vemos
 
Na décima-terceira estação (“Jesus é descido da cruz”) a meditação é de um frade que é voluntário há sessenta anos nas cadeias. Nós cristãos – afirma – facilmente caímos na tentação de nos sentirmos melhores do que os outros (…) Passando de uma cela para outra vejo a morte que mora ali dentro”. A sua tarefa é a de se deter em silêncio diante dos muitos “rostos devastados pelo mal e escutá-los com misericórdia”. Acolher a pessoa é deslocar do seu olhar o erro que cometeu. “Só assim poderá confiar em si mesmo e reencontrar a força de se render ao Bem, imaginando-se outra pessoa de como agora se vê”. Esta é a missão da Igreja. 

Gestos e palavras que fazem a diferença
 
“Jesus é depositado no sepulcro” é a última estação, a décima-quarta. As palavras de um agente da Polícia Penitenciária, diácono permanente, concluem a Via-Sacra. No seu trabalho, todos os dias vive com o sofrimento e sabe que na cadeia “um homem bom pode tornar-se um homem sádico. Um homem mau pode tornar-se melhor”. Depende também dele. E dar outra possibilidade aos que fizeram o mal é a sua tarefa diária que se traduz “em gestos, atenções e palavras capazes de fazer a diferença”. Capazes de dar novamente esperança a pessoas resignadas e assustadas pelo pensamento de receber, ao cumprir a pena, uma nova rejeição por parte da sociedade. “No cárcere – conclui – recordo a todos que, com Deus, nenhum pecado jamais terá a última palavra”.

VN

Sem comentários:

Enviar um comentário