05 abril, 2020

Homilia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor



Homilia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor

[versão escrita]

Da decepção à conversão

Acompanhámos Jesus, da entrada em Jerusalém à sua morte e sepultura. Ouvimos outros trechos bíblicos, condicentes com o significado deste dia. Guardemos tudo em memória viva.

Podemos verificar que, à exceção de Jesus, o sentimento geral foi de deceção. Aqueles ramos levantados, aqueles hossanas entusiásticos, não prometiam tal desfecho, tão poucos dias depois. Era o Messias régio que finalmente entrava na sua cidade. Sua e não dos ocupantes romanos; sua e não dos régulos herodianos; sua e não dos poderosos mesquinhos…

Lembravam a antiga profecia, prevendo a sua entrada, sentado num simples jumento, como de facto foi. Mas não compreendiam que a humildade da montada assinalava a muito maior humildade de quem chegava. Só viam o “Filho de David”, que não poderia ser menos poderoso do que o seu antepassado, jamais esquecido.

Mas nada correspondeu a quanto esperavam. Pelo contrário, tudo pareceu confirmar o que diziam os seus opositores. Que o Messias não podia ser assim, nem vir donde vinha, nem falar como falara, pondo em causa velhas práticas e interdições. Que era mesmo um perigo, podendo provocar os romanos e trazer mais opressão…

Daí a dias, quantos terão sido os que, no pretório de Pilatos, mudaram os hossanas em condenações? Terão sido muitos e uníssonos. Sugestionados, é certo, pelos habituais inimigos de Jesus. Mas a sugestão deve ter coincidido com uma grande deceção. 

Aliás, não foi só dessa vez que se dececionaram com possíveis messias, também aclamados e também derrotados. A memória dum passado glorioso, guardada em tempos desconformes, proporciona sempre alvoroços e desilusões. É uma verificação tão trágica como repetida.

Deparámos com um caso mais personalizado. Foi também de deceção que se tratou, com Judas Iscariotes. Fora um dos escolhidos por Jesus, do seu círculo mais próximo, testemunha de palavras e gestos que certamente o maravilharam e atraíram. Porém não os interpretou segundo Jesus, mas segundo Judas. Como garantias de mais um reino “deste mundo” e não como sinais de outro a começar, diferente e já aqui. 

Daí a deceção. Daí a coincidência com os inimigos de Jesus, que entendiam ser melhor que morresse, para não provocar os romanos com alguma agitação indevida. Daí que aceitasse trinta moedas para lhes entregar Jesus. Também doutras moedas fala um Evangelho, a propósito de Judas. Diz que, por cobiça, as tirava da bolsa comum do grupo. A deceção juntava-se à falta de escrúpulos (cf. Jo 12, 4-6).

No caso dos outros discípulos, também haveria deceção naquela altura. A entrada na cidade correra tão bem… Mas o que se sobrepôs foi o medo. Mesmo que pouco antes prometessem que não abandonariam Jesus. Talvez esperassem que não fosse tão assim, tão decididamente indefeso.

Fugiram todos. Pedro ainda o seguiu até à casa de Anás, mas para negar conhecê-lo, logo que identificado como seu discípulo. Ao contrário de Judas, que morreu de remorso, Pedro arrependeu-se e testemunhou Jesus até ao fim dos seus dias.

Da deceção geral, mesmo dos mais próximos, darão conta os discípulos de Emaús: «Nós esperávamos que fosse ele o que viria redimir Israel…» (Lc 24, 21). Mas afinal não fora como esperavam, da maneira que pensavam. 

Começamos uma Semana Santa muito especial e diferente, enfrentando a presente pandemia. Com alguma deceção também, não podendo já contar com o que contávamos, no que diz respeito a tempos e lugares previstos. Com receios e cautelas, por nós e pelos nossos. Com atenção solidária a enfermos e cuidadores, que tanto a merecem, uns e outros.

Mas pode existir também, aqui e ali, alguma deceção ”religiosa”. – Onde está Deus, como atua Deus? Para a prevenir ou ultrapassar, fixemo-nos em Jesus, no que disse e calou, no que fez ou não fez, nesta semana que só é santa por ser absolutamente sua. Aliás, com a vantagem de sabermos já o que os discípulos da altura souberam depois, naquele dia a seguir ao sábado: Jesus venceu a morte, não porque lhe fugiu, mas porque a encheu de vida, da sua própria vida.

Não nos dececionaremos nós, se não esperarmos nada a não ser a sua Páscoa e o modo como passou deste mundo para o Pai. Bem por dentro do drama comum duma humanidade frágil e não por qualquer alienação do que ela é de facto. Alienar-se é fugir da realidade e dos seus dramas, exatamente o contrário da incarnação de Deus, que em Cristo nos assume. Até à morte e morte de cruz (cf. Fil 2, 8), para que a vida triunfe, aí mesmo onde é preciso. É esta a novidade de Cristo na humanidade que reconstrói. Nada se subtrai ao seu reino, porque a sua presença tudo invade. Como oferta de si e sem conquista dos outros – a não ser como rendição ao seu amor comprovado.

Ninguém esperava que fosse assim - e daí a deceção. Mas nós sabemos que assim é - e daqui a conversão. E no modo de o verificar nestes dias, com tanto que de bom e solidário acontece, no Espírito que Cristo nos doou, para multiplicar a sua ação neste mundo: Na oração mais intensa, que garante que tudo se faz a partir de Deus, para o resultado ser absoluto. No trabalho pastoral, que encontrou outras formas de se exercer - sem a habitual proximidade física, é certo, mas orante, mediática e igualmente concreta, com muita criatividade também. Nas famílias, nas autarquias e no Estado; nos vários setores públicos, particulares e sociais, que nos sustentam o presente e o futuro; na aplicação redobrada dos cientistas e dos profissionais de saúde. Em quem, mesmo sem deslocações, sabe colmatar a solidão alheia. Na preocupação ativa por doentes e isolados, por pobres e sem abrigo, por imigrantes e reclusos. Em quem cuida e protege, em quem vigia e responde. E reconhecendo todo o bem que se faça, seja por quem for, como Jesus reconhecia e louvava (cf. Mc 9, 40).

Assim sabemos que Deus está connosco, onde Cristo revive em mil gestos solidários. O sofrimento do mundo é a sua cruz, última etapa para a ressurreição garantida. Todos os que praticam o bem o vão sabendo também e nunca lhes sobrevirá a deceção. Vivamos esta semana como Jesus a preencheu. Com os outros e para todos, mesmo quando ficou só. Experimentaremos assim a verdade pascal.
Sé de Lisboa, 5 de abril de 2020

+ Manuel, Cardeal-Patriarca



Patriarcado de Lisboa

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