Da decepção à conversão
Acompanhámos Jesus, da entrada em Jerusalém à sua morte e sepultura. Ouvimos outros trechos bíblicos, condicentes com o significado deste dia. Guardemos tudo em memória viva.
Podemos
verificar que, à exceção de Jesus, o sentimento geral foi de deceção.
Aqueles ramos levantados, aqueles hossanas entusiásticos, não prometiam
tal desfecho, tão poucos dias depois. Era o Messias régio que finalmente
entrava na sua cidade. Sua e não dos ocupantes romanos; sua e não dos
régulos herodianos; sua e não dos poderosos mesquinhos…
Lembravam a
antiga profecia, prevendo a sua entrada, sentado num simples jumento,
como de facto foi. Mas não compreendiam que a humildade da montada
assinalava a muito maior humildade de quem chegava. Só viam o “Filho de
David”, que não poderia ser menos poderoso do que o seu antepassado,
jamais esquecido.
Mas nada correspondeu a quanto esperavam. Pelo
contrário, tudo pareceu confirmar o que diziam os seus opositores. Que o
Messias não podia ser assim, nem vir donde vinha, nem falar como
falara, pondo em causa velhas práticas e interdições. Que era mesmo um
perigo, podendo provocar os romanos e trazer mais opressão…
Daí a
dias, quantos terão sido os que, no pretório de Pilatos, mudaram os
hossanas em condenações? Terão sido muitos e uníssonos. Sugestionados, é
certo, pelos habituais inimigos de Jesus. Mas a sugestão deve ter
coincidido com uma grande deceção.
Aliás, não foi só dessa vez
que se dececionaram com possíveis messias, também aclamados e também
derrotados. A memória dum passado glorioso, guardada em tempos
desconformes, proporciona sempre alvoroços e desilusões. É uma
verificação tão trágica como repetida.
Deparámos com um caso mais personalizado.
Foi também de deceção que se tratou, com Judas Iscariotes. Fora um dos
escolhidos por Jesus, do seu círculo mais próximo, testemunha de
palavras e gestos que certamente o maravilharam e atraíram. Porém não os
interpretou segundo Jesus, mas segundo Judas. Como garantias de mais um
reino “deste mundo” e não como sinais de outro a começar, diferente e
já aqui.
Daí a deceção. Daí a coincidência com os inimigos de
Jesus, que entendiam ser melhor que morresse, para não provocar os
romanos com alguma agitação indevida. Daí que aceitasse trinta moedas
para lhes entregar Jesus. Também doutras moedas fala um Evangelho, a
propósito de Judas. Diz que, por cobiça, as tirava da bolsa comum do
grupo. A deceção juntava-se à falta de escrúpulos (cf. Jo 12, 4-6).
No
caso dos outros discípulos, também haveria deceção naquela altura. A
entrada na cidade correra tão bem… Mas o que se sobrepôs foi o medo.
Mesmo que pouco antes prometessem que não abandonariam Jesus. Talvez
esperassem que não fosse tão assim, tão decididamente indefeso.
Fugiram
todos. Pedro ainda o seguiu até à casa de Anás, mas para negar
conhecê-lo, logo que identificado como seu discípulo. Ao contrário de
Judas, que morreu de remorso, Pedro arrependeu-se e testemunhou Jesus
até ao fim dos seus dias.
Da deceção geral, mesmo dos mais
próximos, darão conta os discípulos de Emaús: «Nós esperávamos que fosse
ele o que viria redimir Israel…» (Lc 24, 21). Mas afinal não fora como esperavam, da maneira que pensavam.
Começamos uma Semana Santa muito especial e diferente,
enfrentando a presente pandemia. Com alguma deceção também, não podendo
já contar com o que contávamos, no que diz respeito a tempos e lugares
previstos. Com receios e cautelas, por nós e pelos nossos. Com atenção
solidária a enfermos e cuidadores, que tanto a merecem, uns e outros.
Mas
pode existir também, aqui e ali, alguma deceção ”religiosa”. – Onde
está Deus, como atua Deus? Para a prevenir ou ultrapassar, fixemo-nos em
Jesus, no que disse e calou, no que fez ou não fez, nesta semana que só
é santa por ser absolutamente sua. Aliás, com a vantagem de sabermos já
o que os discípulos da altura souberam depois, naquele dia a seguir ao
sábado: Jesus venceu a morte, não porque lhe fugiu, mas porque a encheu
de vida, da sua própria vida.
Não nos dececionaremos nós, se não
esperarmos nada a não ser a sua Páscoa e o modo como passou deste mundo
para o Pai. Bem por dentro do drama comum duma humanidade frágil e não
por qualquer alienação do que ela é de facto. Alienar-se é fugir da
realidade e dos seus dramas, exatamente o contrário da incarnação de
Deus, que em Cristo nos assume. Até à morte e morte de cruz (cf. Fil
2, 8), para que a vida triunfe, aí mesmo onde é preciso. É esta a
novidade de Cristo na humanidade que reconstrói. Nada se subtrai ao seu
reino, porque a sua presença tudo invade. Como oferta de si e sem
conquista dos outros – a não ser como rendição ao seu amor comprovado.
Ninguém
esperava que fosse assim - e daí a deceção. Mas nós sabemos que assim é
- e daqui a conversão. E no modo de o verificar nestes dias, com tanto
que de bom e solidário acontece, no Espírito que Cristo nos doou, para
multiplicar a sua ação neste mundo: Na oração mais intensa, que garante
que tudo se faz a partir de Deus, para o resultado ser absoluto. No
trabalho pastoral, que encontrou outras formas de se exercer - sem a
habitual proximidade física, é certo, mas orante, mediática e igualmente
concreta, com muita criatividade também. Nas famílias, nas autarquias e
no Estado; nos vários setores públicos, particulares e sociais, que nos
sustentam o presente e o futuro; na aplicação redobrada dos cientistas e
dos profissionais de saúde. Em quem, mesmo sem deslocações, sabe
colmatar a solidão alheia. Na preocupação ativa por doentes e isolados,
por pobres e sem abrigo, por imigrantes e reclusos. Em quem cuida e
protege, em quem vigia e responde. E reconhecendo todo o bem que se
faça, seja por quem for, como Jesus reconhecia e louvava (cf. Mc 9, 40).
Assim
sabemos que Deus está connosco, onde Cristo revive em mil gestos
solidários. O sofrimento do mundo é a sua cruz, última etapa para a
ressurreição garantida. Todos os que praticam o bem o vão sabendo também
e nunca lhes sobrevirá a deceção. Vivamos esta semana como Jesus a
preencheu. Com os outros e para todos, mesmo quando ficou só.
Experimentaremos assim a verdade pascal.
Sé de Lisboa, 5 de abril de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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