Os talentos de São Bartolomeu
Junta-nos hoje a feliz lembrança e festejo de dois grandes vultos da Igreja de sempre: Santo Alberto Magno, no seu dia litúrgico, e São Bartolomeu dos Mártires, nesta paróquia onde nasceu e cujo nome adotou. São Bartolomeu, agora santo para a Igreja toda. Ambos dominicanos, ambos teólogos e ambos bispos ao serviço das suas dioceses. No século XIII o primeiro, no XVI o segundo. Hoje estamos no XXI e continuam nossos contemporâneos, no mesmo tempo do Cristo que nos une.
Ouvíamos no Evangelho: «Um homem, ao partir de viagem, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens. A um entregou cinco talentos, a outro dois e a outro um, conforme a capacidade de cada qual; e depois partiu». Assim foi, esperando que os pusessem a render. Conhecemos o resto da parábola: os que os puseram a render ganharam mais; quem o enterrou, também o perdeu.
Com Alberto e Bartolomeu, o êxito foi grande. Para eles e para quem deles beneficiou e beneficia, do seu ensino, do seu exemplo e companhia – como nós hoje e aqui.
Tratando-se de santos, trata-se de homens de Deus, que de Deus partiam, em Deus se mantinham e para Deus progrediam; pela oração e a contemplação, pelo estudo e pela caridade, que sempre encontra Deus naqueles a quem serve. Caridade que nos dois foi esplendidamente pastoral, cuidando dos que lhes foram confiados.
Gostariam mais de ter ficado no claustro e no ensino, mas a obediência alargou-os em dioceses e pregações. Assim mesmo se salvaram e salvaram muitos mais. Só Deus lhes interessava, em si mesmo e nos outros. Por isso tudo era conversão nas suas vidas, ainda no mais difícil. Escreveu Santo Alberto: «O que é mais útil para a nossa vida é o que nos serve para nos dar o perdão dos pecados e a plenitude da graça». E Bartolomeu como que acrescentava: «Aquilo que sobretudo se nos exige é um propósito firmíssimo de passar todos os martírios antes que ofender a Deus» (Estímulo de pastores, Braga, 1981, p. 309).
É esta prevalência divina que perfaz os santos, os amigos de Deus. Por isso viveram no seu Reino e nos mostraram como tal é possível e a medida certa do que havemos de ser. Assim podia São Bartolomeu escrever de si próprio que «o verdadeiro bispo, quando sai a visitar as paróquias da sua diocese, é como o Sol quando sai a iluminar as terras» (Ibidem, p. 168). E também o verdadeiro discípulo de Cristo, como luz que não se esconda debaixo do alqueire.
A parábola falava de talentos distribuídos, modo de dizer graças que são encargos, pois só aproveitam a quem as partilha. Dos talentos de Bartolomeu falarei agora. Melhor ainda, nos falará ele próprio, na sua obra mais marcante e estimulante, para pastores e para todos:O maior foi saber que, como aconteceu com Cristo, Deus é o segredo e a garantia de todo o apostolado. Por Deus somos enviados e apenas Deus nos assegura numa obra que afinal é sua. Posto perante trabalhos que não escolhera, Bartolomeu nunca desagarrou a mão que lhos dera. Mais ainda, sentia precisamente nas maiores dificuldades a única certeza de Deus, para si e para os outros.
Os trechos são muitos, como este por exemplo, ao mesmo tempo graça, encargo e testemunho. Escrevia a pastores, glosando São Bernardo, e diz-nos agora a nós: «Ficai sabendo que a tranquilidade da vossa consciência depende do cumprimento destes dois preceitos: pregação e exemplo. Mas, se quereis ser prudente, juntai-lhe um terceiro: o amor da oração. E, assim, ficam estas três coisas: a pregação, o exemplo e a oração; pois embora a pregação e as obras sejam virtudes necessárias, só a oração consegue graça e eficácia para as obras e a pregação» (ibidem, p. 252).
Contra toda a pretensão humana, para o seu ou qualquer tempo, Bartolomeu soube e ensinou que Deus e o seu Reino estão absolutamente além da nossa capacidade e medida. Só a união com Deus o unia aos outros, daquela maneira tão total, num sentimento tão divino que só Deus pôde equilibrar. Oiçamo-lo: «Solidarize-se o bispo com cada um pela compaixão, eleve-se acima de todos pela contemplação, sem afrouxar o cuidado da vida interior por causa das ocupações exteriores, e sem deixar de providenciar as coisas exteriores pela preocupação da vida interior. […] Ai de ti, ó bispo, se deixas secar em ti a fonte da devoção! Que outra coisa vem a ser a devoção, senão fonte de água viva que irriga todos os nossos atos de virtude, sejam quais forem, sem a qual não tardam a estiolar-se?» (ibidem, p. 203-204).
Só este equilíbrio lhe permitiu ser ao mesmo tempo corajoso e prudente na emenda dos outros. Corajoso foi sempre, em Braga, Trento ou Roma, para emendar o que estava mal e insistir no remédio, fosse com quem fosse, como o faria hoje. Prudente também, porque o sentido divino das coisas não esquece o verdadeiro fim, que é a salvação de cada um. A oração conduzia-lhe a ação, na justa medida de Deus. Oiçamo-lo de novo, retomando São Gregório: «Seja cautelosa a vossa doçura, e não frouxa; e a correção seja feita com diligência, mas não com severidade. Doseie-se uma coisa com outra, de tal modo que os bons se acautelem por amor, e os maus com temor» (ibidem, p. 299).
Voltemos à parábola: «O que tinha recebido cinco talentos fê-los render e ganhou outros cinco». Cinco foram distribuídos a Bartolomeu, podendo ser mais. Foi primeiro o da religião, o sentido profundo das coisas. Sentido sempre almejado, desde pequeno, nesta freguesia que foi a sua, nos conventos dominicanos onde viveu depois, ou naquele em que passou os últimos anos, como no episcopado que entretanto exerceu.
Foi segundo o do estudo, a que se dedicou com tanto êxito e gosto, ensinando depois o muito que assimilara e aprofundara. Tanto que ainda lhe poderá valer o título de “doutor da Igreja”. Que bem lhe assenta o trecho de Ben-Sirá: «Vai ao encontro da sabedoria como quem lavra e semeia e espera pacientemente os seus bons frutos, porque terás um pouco de fadiga em seu cultivo, mas em breve comerás dos seus produtos».
Foi terceiro a compaixão, tão demonstrada no governo de Braga, onde sempre privilegiou os mais pobres e frágeis, na prioridade quotidiana e em momentos difíceis de peste ou aflição. Compaixão que não lhe poupou canseiras e esforços para visitar os mais desacompanhados.Foi quarto a contemplação, que lhe permitia ver Deus em tudo e tudo em Deus, fazendo de pessoas e acontecimentos outras tantas parábolas do Reino.
Foi quinto a prudência, que nunca lhe tolheu o desassombro nem endureceu o trato, fosse com que fosse, para o maior bem de cada um.
Fico por cinco talentos para não ultrapassar a conta do Evangelho escutado. Tão exercitados foram, tão exemplarmente ficam, que nos permitem entrever a alegria de que agora goza com o seu absoluto Senhor. - Que a sua intercessão nos faça compartilhá-la também!
Lisboa, Nossa Senhora dos Mártires, 15 de novembro de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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