15 novembro, 2019

O Papa aos penalistas: contribuam e assegurem a tutela jurídica da nossa Casa comum



O Papa Francisco apela aos líderes e representantes do Direito Penal para que dêem mais atenção aos crimes dos poderosos e contribuam e assegurem uma tutela jurídica adequada da nossa Casa comum. Os participantes do Congresso Internacional foram recebidos em audiência com o Pontífice nesta sexta-feira (15) no Vaticano 
Manoel Tavares - Cidade do Vaticano 

Na sua audiência, na manhã desta sexta-feira (15/11), no Vaticano, o Santo Padre recebeu, na Sala Régia, cerca de 600 participantes no Congresso Internacional de Direito Penal.
 
No seu discurso, o Papa expressou o seu apreço e reconhecimento pelo serviço que a Associação presta à sociedade e ao desenvolvimento de uma justiça, que respeita a dignidade e os direitos da pessoa humana.

A este propósito, Francisco fez uma reflexão sobre as questões que interpelam a Igreja na sua missão de evangelização e serviço à justiça e à paz. 

Idolatria do mercado e riscos do idealismo penal
 
Por várias décadas, disse, o Direito Penal incorporou diversos conhecimentos sobre algumas problemáticas relacionadas com o exercício da função sancionadora.

No entanto, apesar da sua abertura epistemológica, o Direito Penal não conseguiu livrar-se das ameaças que, nos nossos dias, pairam sobre as democracias e a plena vigência do Estado de Direito. Por outro lado, o Direito Penal, muitas vezes, descuida os dados da realidade, que assumem a aparência de um conhecimento meramente especulativo.

O contexto atual, disse Francisco, destaca dois aspectos relevantes: a “idolatria do mercado” e os “riscos do idealismo penal”:

“ A pessoa frágil e vulnerável encontra-se indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, que se tornaram regra absoluta. Hoje, alguns setores económicos têm mais poder do que os próprios Estados. Esta realidade torna-se mais evidente em tempos de globalização do capital especulativo ”
O princípio de maximização do lucro, isolado de qualquer outra consideração, disse o Papa, leva a um modelo de exclusão, que ataca, de modo violento, os que sofrem pelos seus custos sociais e ecoóômicos, enquanto que as gerações futuras são condenadas a pagar os custos ambientais. E ponderou:

“ A primeira coisa que os juristas deveriam hoje fazer, é questionarem-se, com seus conhecimentos, como combater este fenómeno, que coloca em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade ”
O desafio atual para os advogados criminais, afirmou Francisco, é conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta: com a prisão de massas, a aglomeração e tortura nas prisões, arbitrariedade e abusos das forças de segurança, expansão no âmbito da pena, a criminalização dos protestos sociais, o abuso da prisão preventiva e o repúdio às garantias penais e processuais mais elementares. 

Crime dos poderosos
 
A seguir, o Pontífice recordou que, uma das omissões mais frequentes do Direito Penal e uma das consequências da seletividade das sanções, são a escassa ou pouca atenção ao crime dos mais poderosos, sobretudo a macro delinquência das empresas. E acrescentou:

“ O capital financeiro global está na origem dos crimes graves contra as pessoas e o meio ambiente. Trata-se de uma criminalidade organizada pelo excesso de endividamento dos Estados e pela pilhagem dos recursos naturais do nosso planeta, que pode ser comparada a crimes contra a humanidade, quando levam à fome, pobreza, migração forçada e morte por doenças evitáveis, desastres ambientais e extermínio dos povos indígenas ”
Depois, o Santo Padre falou sobre a tutela jurídica e penal do ambiente. A resposta penal ocorre quando o crime foi cometido, mas, devido à sua seletividade estrutural, a sanção recai, geralmente, sobre os setores mais vulneráveis. E afirmou:

Um senso elementar de justiça imporia a não impunidade de alguns comportamentos, sobretudo os considerados "ecocídios": contaminação do ar, dos recursos da terra e da água; destruição em grande escala da flora e fauna, e toda ação que produz desastres ecológicos ou destruição do ecossistema”. 

Pecado ecológico
 
Aqui, Francisco recordou o que os Padres sinodais da Região Pan-Amazónica definiram o pecado ecológico como ação ou omissão contra Deus, contra os outros, contra a comunidade e o meio ambiente: um pecado contra as gerações futuras, que se manifesta com a poluição e a destruição do meio ambiente e contra a virtude da justiça. E o Papa exortou:

“ Nesta circunstância, através de vocês, gostaria de fazer um apelo a todos os líderes e representantes do setor para que contribuam, com seus esforços, para garantir uma tutela jurídica adequada da nossa Casa comum ”
Por fim, o Santo Padre recordou alguns problemas, que pioraram ao longo destes anos: o uso indevido de prisão preventiva; o incentivo involuntário à violência; a cultura do descarte, do ódio e o “lawfare” ou emprego da justiça penal.

Mediante os instrumentos próprios da lei, é explorada a necessária luta contra a corrupção, com o objetivo de combater governos indesejados, reduzir os direitos sociais e promover um sentimento anti-político, que beneficia os que aspiram a um poder autoritário.

Ao mesmo tempo, frisou o Papa, é estranho que o recurso a paraísos fiscais, que serve para ocultar todo o tipo de crime, não seja visto como uma questão de corrupção e crime organizado. Da mesma forma, fenómenos maciços de apropriação de recursos públicos passam despercebidos ou até minimizados como meros conflitos de interesse.

O Papa Francisco concluiu o seu denso discurso, chamando a atenção dos estudiosos de Direito Penal e a todos os que são chamados a desempenhar funções relacionadas com a aplicação do Direito Penal, por uma maior responsabilidade na atuação da justiça:

“ Na visão cristã do mundo, o modelo de justiça encontra uma perfeita encarnação na vida de Jesus. Ao ser tratado com desprezo e até com violência, que o levou à morte, a sua ressurreição deixou-nos uma mensagem de paz, perdão e reconciliação, valores difíceis de alcançar, mas necessários para a boa vivência de todos ”
As nossas sociedades, disse por fim o Papa, são chamadas a avançar em direção a um modelo de justiça fundado no diálogo e no encontro. Não se trata de uma utopia, mas, certamente, de um grande desafio! Um desafio que devemos enfrentar, se quisermos resolver os problemas da convivência civil, de modo racional, pacífico e democrático. Todos, cristãos e não cristãos, precisamos da ajuda de Deus, que é fonte de razão e de justiça. 

VN

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