Porque a Deus nada é impossível
Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal
Celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, e fazemo-lo hoje como o havemos de fazer sempre. Com a mesma força de sentimentos e redobrada conversão.
Porque de sentimento se trata, em especial o nosso, de portugueses, que a temos como Padroeira. E não apenas porque assim foi declarada num longínquo ano da nossa história nacional (1646). Mas sobretudo porque, com a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, nos revemos em esplendor e nos retomamos em esperança.
Nos revemos em esplendor, no seu esplendor. Com tudo quanto a palavra “Imaculada” evoca, de clara madrugada e límpida atmosfera, do mundo para a alma e da alma para a vida. Para a vida pessoal e familiar, para a vida comunitária e nacional. Ter a Imaculada Conceição como Padroeira, tê-la mesmo como feriado nacional, há de transfigurar-nos como povo, deve reforçar-nos como um todo. Tomando-a como Mãe comum, sentimo-nos certamente mais irmãos.
Como todas as solenidades do ano litúrgico, também esta de hoje é motivo de conversão. Na religião do Verbo incarnado, tudo quanto celebramos nele é-nos oferecido como graça e apela-nos à identificação. O Natal para O recebermos como alguém que nasce, a Páscoa para O acompanharmos como aquele que morre e ressuscita, o Pentecostes para que o Espírito reproduza em nós a sua vida. E, sempre na religião do Verbo incarnado, as solenidades da sua própria Mãe são-nos oferecidas para O apropriarmos como Ela, que foi concebida para O conceber depois e com Ele compartilha agora o seu destino de glória, plenamente integrada na vida divina. Vida divina que assim se revela na vida de Cristo, aceite e oferecida por Maria.
Para tal foi criada desde o primeiro momento da sua Conceição. Por isso foi Imaculada, porque Deus a criou como nova terra onde tudo renascesse em Cristo. E sendo assim criada, “cheia de graça”, assim mesmo se manteve e foi crescendo num caminho de fé que nos ensinou a percorrer, inteiramente confiada em Deus, «porque a Deus nada é impossível».
Nisto foi o contrário de Eva, que se deixou desconfiar da intenção divina, como lhe insinuara a serpente: «Deus sabe que no dia em que comerdes o fruto da árvore que está no meio do jardim, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal…» (Gn 3, 5). Foi até o contrário de Sara, mulher de Abraão, que duvidou do poder de Deus, que lhe anunciava um filho: «Sara riu-se consigo mesma e pensou: “Velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o meu senhor?”» (Gn 18, 12).
Maria é “imaculada”, também porque isenta do que estorva e atrasa a ação de Deus neste mundo, isto é, de qualquer hesitação diante do seu poder. Maria é Imaculada porque, mesmo perguntando, não duvida nunca do poder de Deus e jamais desiste de prosseguir na fé. No diálogo evangélico, pôde perguntar ao Anjo: «Como será isto, se eu não conheço homem?». Mas ouvindo a resposta: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra», o seguimento foi: «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra».
Atitude repercutida em toda a vida autêntica da Igreja que somos e em Maria se esboça. Por isso nada acontece de verdadeiramente cristão que não seja mariano também. De Cristo como dom e de Maria como acolhimento na fé, crescimento na esperança e atuação na caridade. Acolhimento na fé, porque com Maria diremos «faça-se a vontade divina», seja em que circunstância for; crescimento na esperança, porque não duvidou da resposta de Jesus e assim disse aos serventes das bodas de Caná: «Fazei o que Ele vos disser!» (Jo 2, 5); atuação na caridade, porque onde a companhia se tornava mais difícil, aí mesmo permaneceu: «Junto à cruz de Jesus estava, de pé, sua mãe…» (Jo 19, 25).
Vida imaculada, isenta de dúvida e em plena virtude, foi a de Maria desde a sua Conceição; e há de ser a nossa, cumprindo o Batismo, pelo mesmo Espírito, com a mesma graça. Assim o ouvimos, não menos que isso, na segunda leitura: «Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bens espirituais em Cristo. N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença». É grande o paralelismo deste passo da Epístola aos Efésios com o Evangelho da Anunciação a Maria. Desígnio divino sobre Ela, que Deus preencheu de graça; mas ainda sobre nós, pois «nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis na caridade». O que Maria foi plenamente e sempre, havemos nós de aprender com Ela e sempre mais.
Assim exerce a sua maternidade sobre a Igreja, com a pedagogia do exemplo, o esplendor da beleza e o conforto duma companhia de todas as horas – até à “hora da nossa morte”, como rezamos na Ave-Maria. Assim aceita e cumpre o seu padroado, dando ao nosso destino coletivo um rumo maior de conversão evangélica.
Bem o compreenderam há um século os Pastorinhos de Fátima, como que “profetas” da história portuguesa e mundial, segundo os Papas peregrinos. A mensagem foi esta: O Céu oferece-se mais brilhante do que qualquer sol; o pecado abisma-nos no seu trágico contrário; o regresso é possível pelo Coração Imaculado de Maria, maneira única de seguir a Jesus e assim mesmo corresponder à vontade divina. Fácil será de enunciar, mais difícil certamente de cumprir. Por isso a temos como Mãe que nos acalenta, por isso a temos como Padroeira que invocamos. Com a mesma confiança que lhe afastou qualquer dúvida e com a mesma prontidão para corresponder à graça.
«Porque a Deus nada é impossível»: Esta frase última do Anjo teve a resposta definitiva de Maria: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra». Entendamos esta “escravidão”, que não é de modo algum a que tragicamente existiu e persiste ainda, indignidade total e sujeição forçada ao poder de alguém. É exatamente o contrário, um ato absoluto de liberdade, que, sem qualquer constrangimento nem alienação, nos faz aderir inteiramente à vontade divina, apercebida e aceite como a única que nos pode garantir a liberdade plena do bem e libertar-nos das amarras interiores e exteriores que nos prendam. Escolhemos ser escolhidos por Deus para o que Ele quiser, quando quiser e como quiser, confiados como Maria no bem absoluto que isso mesmo significa.
Assim foi com Maria, que nenhuma dúvida maculou, então ou depois. Interrogações fez algumas, mas apenas para aderir ainda e sempre. Quando perguntou a Jesus adolescente porque ficara no templo, dando-lhe cuidados a ela e a José, ouviu a resposta e guardou-a no coração (cf Lc 2, 51), modo de dizer que assim mesmo amadureceu na sua fé.
Finalmente, irmãos, nos dias que vivemos e no Portugal que somos, prossigamos com Maria, nossa Mãe e Padroeira, como Imaculada Conceição. Mesmo que alguma vez nos sintamos poucos diante do mundo que nos toca de longe ou de perto, dos desafios que aí estão e incidem sobre realidades tão essenciais como os vínculos familiares, os ambientes educativos, as necessidades dos pobres e até a própria vida, da conceção à morte natural… Quanto a este último ponto, escreveu recentemente o Papa Francisco: «… devemos e podemos sempre cuidar da pessoa viva: sem abreviar nós mesmos a sua vida, mas também sem nos obstinarmos inutilmente contra a sua morte. A medicina paliativa move-se nesta linha. Ela tem uma grande importância também no plano cultural, comprometendo-se a combater tudo o que torna o ato de morrer mais angustiante e sofrido, ou seja, a dor e a solidão» (Mensagem aos participantes no Encontro Regional Europeu da World Medical Association, Roma, 16 e 17 de novembro de 2017).
Maria Imaculada era apenas uma jovem e estava só, naquele dia, mas acreditou em Deus e ofereceu Cristo ao mundo, sem mancha de dúvida que lhe ensombrasse a fé. E com Cristo a vida acaba sempre por se impor e a humanidade avança.
Celebrar a nossa Padroeira é certamente ocasião de reforçarmos com ela a fé em Deus, a esperança no cumprimento dos seus desígnios e a caridade de os ativar desde já na redenção evangélica de tudo. Confortem-nos e reforcem-nos as palavras do Anjo da Anunciação, dirigidas a ela, dirigidas a nós; «Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus».
Sé de Lisboa, 8 de dezembro de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal
Celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, e fazemo-lo hoje como o havemos de fazer sempre. Com a mesma força de sentimentos e redobrada conversão.
Porque de sentimento se trata, em especial o nosso, de portugueses, que a temos como Padroeira. E não apenas porque assim foi declarada num longínquo ano da nossa história nacional (1646). Mas sobretudo porque, com a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, nos revemos em esplendor e nos retomamos em esperança.
Nos revemos em esplendor, no seu esplendor. Com tudo quanto a palavra “Imaculada” evoca, de clara madrugada e límpida atmosfera, do mundo para a alma e da alma para a vida. Para a vida pessoal e familiar, para a vida comunitária e nacional. Ter a Imaculada Conceição como Padroeira, tê-la mesmo como feriado nacional, há de transfigurar-nos como povo, deve reforçar-nos como um todo. Tomando-a como Mãe comum, sentimo-nos certamente mais irmãos.
Como todas as solenidades do ano litúrgico, também esta de hoje é motivo de conversão. Na religião do Verbo incarnado, tudo quanto celebramos nele é-nos oferecido como graça e apela-nos à identificação. O Natal para O recebermos como alguém que nasce, a Páscoa para O acompanharmos como aquele que morre e ressuscita, o Pentecostes para que o Espírito reproduza em nós a sua vida. E, sempre na religião do Verbo incarnado, as solenidades da sua própria Mãe são-nos oferecidas para O apropriarmos como Ela, que foi concebida para O conceber depois e com Ele compartilha agora o seu destino de glória, plenamente integrada na vida divina. Vida divina que assim se revela na vida de Cristo, aceite e oferecida por Maria.
Para tal foi criada desde o primeiro momento da sua Conceição. Por isso foi Imaculada, porque Deus a criou como nova terra onde tudo renascesse em Cristo. E sendo assim criada, “cheia de graça”, assim mesmo se manteve e foi crescendo num caminho de fé que nos ensinou a percorrer, inteiramente confiada em Deus, «porque a Deus nada é impossível».
Nisto foi o contrário de Eva, que se deixou desconfiar da intenção divina, como lhe insinuara a serpente: «Deus sabe que no dia em que comerdes o fruto da árvore que está no meio do jardim, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal…» (Gn 3, 5). Foi até o contrário de Sara, mulher de Abraão, que duvidou do poder de Deus, que lhe anunciava um filho: «Sara riu-se consigo mesma e pensou: “Velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o meu senhor?”» (Gn 18, 12).
Maria é “imaculada”, também porque isenta do que estorva e atrasa a ação de Deus neste mundo, isto é, de qualquer hesitação diante do seu poder. Maria é Imaculada porque, mesmo perguntando, não duvida nunca do poder de Deus e jamais desiste de prosseguir na fé. No diálogo evangélico, pôde perguntar ao Anjo: «Como será isto, se eu não conheço homem?». Mas ouvindo a resposta: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra», o seguimento foi: «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra».
Atitude repercutida em toda a vida autêntica da Igreja que somos e em Maria se esboça. Por isso nada acontece de verdadeiramente cristão que não seja mariano também. De Cristo como dom e de Maria como acolhimento na fé, crescimento na esperança e atuação na caridade. Acolhimento na fé, porque com Maria diremos «faça-se a vontade divina», seja em que circunstância for; crescimento na esperança, porque não duvidou da resposta de Jesus e assim disse aos serventes das bodas de Caná: «Fazei o que Ele vos disser!» (Jo 2, 5); atuação na caridade, porque onde a companhia se tornava mais difícil, aí mesmo permaneceu: «Junto à cruz de Jesus estava, de pé, sua mãe…» (Jo 19, 25).
Vida imaculada, isenta de dúvida e em plena virtude, foi a de Maria desde a sua Conceição; e há de ser a nossa, cumprindo o Batismo, pelo mesmo Espírito, com a mesma graça. Assim o ouvimos, não menos que isso, na segunda leitura: «Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bens espirituais em Cristo. N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença». É grande o paralelismo deste passo da Epístola aos Efésios com o Evangelho da Anunciação a Maria. Desígnio divino sobre Ela, que Deus preencheu de graça; mas ainda sobre nós, pois «nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis na caridade». O que Maria foi plenamente e sempre, havemos nós de aprender com Ela e sempre mais.
Assim exerce a sua maternidade sobre a Igreja, com a pedagogia do exemplo, o esplendor da beleza e o conforto duma companhia de todas as horas – até à “hora da nossa morte”, como rezamos na Ave-Maria. Assim aceita e cumpre o seu padroado, dando ao nosso destino coletivo um rumo maior de conversão evangélica.
Bem o compreenderam há um século os Pastorinhos de Fátima, como que “profetas” da história portuguesa e mundial, segundo os Papas peregrinos. A mensagem foi esta: O Céu oferece-se mais brilhante do que qualquer sol; o pecado abisma-nos no seu trágico contrário; o regresso é possível pelo Coração Imaculado de Maria, maneira única de seguir a Jesus e assim mesmo corresponder à vontade divina. Fácil será de enunciar, mais difícil certamente de cumprir. Por isso a temos como Mãe que nos acalenta, por isso a temos como Padroeira que invocamos. Com a mesma confiança que lhe afastou qualquer dúvida e com a mesma prontidão para corresponder à graça.
«Porque a Deus nada é impossível»: Esta frase última do Anjo teve a resposta definitiva de Maria: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra». Entendamos esta “escravidão”, que não é de modo algum a que tragicamente existiu e persiste ainda, indignidade total e sujeição forçada ao poder de alguém. É exatamente o contrário, um ato absoluto de liberdade, que, sem qualquer constrangimento nem alienação, nos faz aderir inteiramente à vontade divina, apercebida e aceite como a única que nos pode garantir a liberdade plena do bem e libertar-nos das amarras interiores e exteriores que nos prendam. Escolhemos ser escolhidos por Deus para o que Ele quiser, quando quiser e como quiser, confiados como Maria no bem absoluto que isso mesmo significa.
Assim foi com Maria, que nenhuma dúvida maculou, então ou depois. Interrogações fez algumas, mas apenas para aderir ainda e sempre. Quando perguntou a Jesus adolescente porque ficara no templo, dando-lhe cuidados a ela e a José, ouviu a resposta e guardou-a no coração (cf Lc 2, 51), modo de dizer que assim mesmo amadureceu na sua fé.
Finalmente, irmãos, nos dias que vivemos e no Portugal que somos, prossigamos com Maria, nossa Mãe e Padroeira, como Imaculada Conceição. Mesmo que alguma vez nos sintamos poucos diante do mundo que nos toca de longe ou de perto, dos desafios que aí estão e incidem sobre realidades tão essenciais como os vínculos familiares, os ambientes educativos, as necessidades dos pobres e até a própria vida, da conceção à morte natural… Quanto a este último ponto, escreveu recentemente o Papa Francisco: «… devemos e podemos sempre cuidar da pessoa viva: sem abreviar nós mesmos a sua vida, mas também sem nos obstinarmos inutilmente contra a sua morte. A medicina paliativa move-se nesta linha. Ela tem uma grande importância também no plano cultural, comprometendo-se a combater tudo o que torna o ato de morrer mais angustiante e sofrido, ou seja, a dor e a solidão» (Mensagem aos participantes no Encontro Regional Europeu da World Medical Association, Roma, 16 e 17 de novembro de 2017).
Maria Imaculada era apenas uma jovem e estava só, naquele dia, mas acreditou em Deus e ofereceu Cristo ao mundo, sem mancha de dúvida que lhe ensombrasse a fé. E com Cristo a vida acaba sempre por se impor e a humanidade avança.
Celebrar a nossa Padroeira é certamente ocasião de reforçarmos com ela a fé em Deus, a esperança no cumprimento dos seus desígnios e a caridade de os ativar desde já na redenção evangélica de tudo. Confortem-nos e reforcem-nos as palavras do Anjo da Anunciação, dirigidas a ela, dirigidas a nós; «Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus».
Sé de Lisboa, 8 de dezembro de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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