25 dezembro, 2017

Missa da Noite do Natal do Senhor


É a sua luz que unicamente nos deslumbra

Irmãos caríssimos: Nesta noite de grande contraste entre o negrume exterior e a intensa luz do presépio os trechos bíblicos são de tal densidade que o passar dos anos e dos séculos nunca lhes tira a surpresa. Bem pelo contrário, no rodar dos tempos litúrgicos, o Natal guarda sempre uma especial fecundidade meditativa.  
Impressionou-me particularmente agora a grande desproporção que o texto assinala. Vistas bem as coisas, torna-se numa ainda maior advertência. São duas frases quase seguidas, com enorme contraste. Assim: «Naqueles dias, saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a terra.» E, mais à frente: «[Maria] envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria».
Os agentes são dois: César Augusto que manda recensear toda a terra e Maria – certamente com a ajuda de José – que envolve o Menino em panos e o deita na manjedoura. Abissal diferença esta, na verdade. Augusto no auge do seu império sobre todos e Maria na humildade que a define em tudo.
Em termos históricos e mundiais, nunca houvera um império assim. Os antigos impérios tinham forte preponderância étnica, religiosa e cultural da parte dos seus protagonistas e mandantes. O Império de Octávio César Augusto, sem esquecer a base romana em que nascera, ganhou nessa altura uma dimensão geográfica e cultural inédita e desenvolveu uma civilização larga e duradoura. Herdámos-lhe, além do mais, o direito e a língua.
Integrava três continentes, da Europa meridional à Ásia Menor e ao Norte de África. Quando a notícia daquele Menino que nascera e depois dera a vida pela fé que trazia se tornou em Evangelho, o Império Romano tanto se opôs ao novo culto como predispôs a sua expansão. Não por acaso Jesus mandará «dar a César o que é de César» e Paulo insistirá no respeito pela autoridade, conquanto que não se divinizasse a si própria. Mas este era já o problema do Império, que redundaria em perseguição aos discípulos de Cristo.
Não foi problema só então. Nesta mesma noite, em que passados dois milénios, celebramos entre nós e em paz o Natal de Cristo, muitos irmãos nossos arriscam a vida para o fazerem noutras latitudes, publicamente, ou mesmo discretamente. Não há grande intervalo nas notícias de perseguições e atentados, de igrejas destruídas, de prisões, maus tratos e humilhações vitimando cristãos - sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e famílias. E quase sempre em consequência de poderes que exorbitam da sua esfera, desrespeitam consciências e discriminam por motivos religiosos. Naquele tempo não demorou muito até que os sucessores de Augusto fizessem o mesmo, de Nero a Diocleciano. E, mesmo depois e até hoje, o mal pode persistir ou voltar, apesar da crescente afirmação dos direitos humanos. Direitos que o Cristianismo também inspirou e dos quais os cristãos deveriam ter sido sempre, como devemos ser nós agora, os primeiros defensores e promotores.Porque o contraste persiste e deve persistir entre a grandeza do Império e a humildade do Natal. E deve existir em tensão criativa e humanizante. Antigas ideologias políticas, que alguma vez podem regressar, e outras mais recentes, ditas culturais mas na verdade políticas também, porque assim mesmo se pretendem impor, atuam geralmente a partir do todo que alcançam ou pretendem alcançar. Tomam o poder e põem-no ao seu serviço, reduzindo drástica ou disfarçadamente o campo dos que lhes resistem. Tão convictas de si próprias, ignoram ou desclassificam tudo o mais: tradições que persistem pela verdade, bondade e beleza que transportam; legítimas crenças religiosas que libertam o espírito e criam comunhão: tudo isto sofre e com isto sofreremos realmente todos.
As democracias desenvolveram-se como resistência a tais “impérios”. E trechos como este do nascimento de Cristo e nas condições em que aconteceu demonstram desde o início o modo imprescindível delas se sustentarem. Formulemos assim: Diante de tudo o que se queira impor de fora, servindo-se dalguma autoridade materialmente entendida e apanhada, o modo divino de intervir é como uma criança que nasce, acolhida numa família que a protege, alargando-se depois numa familiaridade nova que tem em cada um o seu polo irredutível, para respeitar, ajudar a crescer e criar verdadeira comunhão.
Ao Império de Augusto e sucessores sujeitaram-se muitos, por melhores ou piores razões. Com o tempo foram-se rarefazendo a força e a convicção, até tudo ruir sob os bárbaros. Por seu lado, àquele Menino acorreram pastores, chegaram Magos, e chegamos nós todos nesta celebração festiva. Com Ele queremos coincidir na humildade do coração, que dá todo o espaço a Deus e em Deus a cada um, novo ou idoso, saudável ou doente, forte ou fragilizado, no arco inteiro da existência, da conceção à morte natural, como ela se define. É o Presépio que congrega o mundo, não qualquer império que ultrapassasse os seus limites e se esquecesse do primeiríssimo dever de respeitar e promover a dignidade de cada pessoa humana.
Formulo ainda: Se partirmos do Império de qualquer “Augusto” que seja, corremos o risco de o contrafazer a ele próprio, num totalitarismo desumanizador. Se partimos de cada pessoa, como naquele Menino o próprio Deus quis recomeçar connosco, faremos do poder um serviço autêntico e capaz para o bem comum de todos.
Em Roma o esplendor de Augusto podia deslumbrar. Em Jerusalém, Herodes juntava grandes obras a grandes prepotências. Nestes todos reparavam e tinham forçosamente de reparar. Duraram o que duraram e, do fórum de Roma ao Muro das Lamentações, o que sobra hoje são ruínas. Em contraste, num estábulo de Belém nasceu aquele Menino, que pouco depois um mago do Oriente reconheceria como rei, oferecendo-lhe o sinal do ouro (cf. Mt 2, 11).

E, de facto, Jesus anunciou e inaugurou um Reino. Trinta anos depois do seu nascimento, «começou a pregar, dizendo: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu”» (Mt 4, 17). Mas, reparemos no contraste, este Reino é dom de Deus e exige conversão ao modo divino de ser como em Jesus inteiramente se revela. Não se impõe, senão pela verdade que transporta. Não impera, serve, com atenção prioritária aos mais pobres e frágeis.
Não cresce por qualquer estratégia ou logística comum, pois a sua finalidade as ultrapassa em muito. Nada menos do que isto, como lemos na 2ª Carta de Pedro: «O divino poder, ao dar-nos a conhecer aquele que nos chamou pela sua glória e pelo seu poder, concedeu-nos todas as coisas que contribuem para a vida e a piedade. Com elas, teve a bondade de nos dar também os mais preciosos e sublimes bens prometidos, a fim de que – por meio deles – vos torneis participantes da natureza divina, depois de vos livrardes da corrução que a concupiscência gerou no mundo» (2 Pe 1, 3-4).  Reparemos, a finalidade é participarmos da natureza divina; a conversão é o contrário da concupiscência, sendo esta a vontade de captar para si tudo e todos.
Assim começa o Reino e o seu primeiro trono é o Presépio, como depois será a Cruz. Assim crescerá, como o mesmo Rei ensina: «O Reino do Céu é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a mais pequena de todas as sementes; mas depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos» (Mt 13, 31-32).
Irmãos caríssimos, voltemos ao presépio desta noite, recolhamos a lição, vivamos o contraste. Na companhia de Maria e José, no círculo alargado de anjos e pastores, acolhamos a Deus no Menino assim nascido. Mantenhamo-nos com Ele, no crescimento do seu Reino, garantido por uma ressurreição que não lhe desfaz, antes reforça, o modo simples e prestável de acontecer. Em cada momento de serviço aos irmãos, um por um, lugar por lugar, com verdeiro acolhimento e resposta, garante-se o tempo todo, pois «o amor jamais passará» (1 Co 13, 8).
- É o Natal deste Reino que hoje celebramos. É a sua luz que unicamente nos deslumbra!

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2017

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa  

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