14 abril, 2017

Meditação da Paixão do Senhor



Eram tão poucos, somos tantos…

Caríssimos irmãos: Eram tão poucos naquele dia, junto da cruz do Senhor… E somos tantos agora, quase dois milénios depois. Importa perguntar porquê e indagar como se explica.
Não estamos aqui só por estar, ainda que as celebrações desta sé decorram bem e sejam belas. Nem os outros irmãos, de igreja em igreja, pela diocese e pelo mundo além. Não é mais um costume, pois nunca nos acostumamos suficientemente à Cruz do Senhor. Nem sentimentalismo de circunstância, pois que o sentimento perdura e converte.
Não estamos aqui exatamente como há um ano. Temos mais um ano de vida, de bom propósito e alguma contradição, de pecado e de graça, como em geral decorre a existência humana. Vale o propósito, superabunda a graça – precisamente a graça da Cruz do Senhor, que vence e convence, que aqui nos traz.
Aqui nos traz a nós, nesta cidade que tanta gente atrai. Mas atrai igualmente, a Cruz do Senhor, noutras paragens onde nada chama e tudo repele. Cidades destroçadas do Próximo Oriente, cidades famintas de tantos países, cidades fantasmáticas de destruições e saques, cidades amedrontadas da nossa própria Europa…
A Cruz do Senhor atrai porque nos reconhecemos nela, no que a vida dói e onde a vida fenece. Mas atrai sobretudo porque nela divisamos a presença de Deus na humanidade de Cristo. Na nossa humanidade que assumiu, para a preencher com a vida que ali mesmo ofereceu e oferece. Humanidade que assumiu inteiramente, sem se poupar a nada do que a nós nos toca e aos outros aflige.
Como sabemos, a Cruz foi um escândalo para quantos esperavam um Deus sem humanidade e uma glória mais fácil e garantida sem mais. Há quem reduza e anule a Cruz e a morte de Cristo, como de facto foram e há pouco ouvimos na leitura da Paixão. Para outros credos, Jesus foi um profeta de Deus, por isso mesmo preservado de morrer assim. E, mesmo entre nós, algumas representações de Cristo na Cruz quase lhe diluem a tragédia para antecipar a luz que só brilhou depois. É legítima a representação da Cruz com resplendor, mas que seja o resplendor da Cruz, que não a atenue nem ofusque. Para não se perder o essencial do que foi. Para não se perder o essencial que nos salva. Jesus Cristo viveu, sonhou e sofreu realmente, na humanidade que compartilhou connosco. Assumiu até ao fim a tragédia de todos, e especialmente de quantos são ofendidos e rejeitados, são combatidos e mortos, porque fiéis ao que acreditam - e acreditam num Deus de todos para todos e numa solidariedade completa entre todos e cada um. Essa solidariedade que, quando levada ao ponto a que Jesus a levou, se chama caridade, propriamente dita.
Não venceu o mal com as armas do mal. Venceu o mal com o bem e venceu a morte sem a infligir aos inimigos, antes dando a vida por eles. Neste ponto, verdadeiro e total, restaurou a vida na sua fonte, o amor absoluto. Fonte que nunca mais deixou de brotar naquele sangue e água que do seu peito saíram, naquele Espírito que para nós exalou.
Porque foi como homem que Pilatos o apresentou e assim foi rejeitado: «Jesus saiu, trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Pilatos disse-lhes: “Eis o homem.” Quando viram Jesus, os príncipes dos sacerdotes e os guardas gritaram: “Crucifica-o! Crucifica-o!”»
Para o romano pagão, era apenas mais um, ainda que fosse especialmente aquele. Para muitos religiosos da altura era um blasfemo, que se apresentara divino na humanidade que detinha, coisa insuportável para eles. Para nós, que nos encontramos hoje aqui, é a suma revelação de um Deus que vem ter connosco e com todos onde realmente estamos e no que realmente somos, no drama da vida que sempre nos cabe – e a muitos tão tragicamente toca.

É por isso, acima de tudo por isso, que estamos aqui, na mais despojada das celebrações. O altar está despido, como nua e crua era a rocha do Calvário. As flores terão de esperar pela Vigília Pascal. E, no entanto, a atração da Cruz que adoraremos é ainda mais forte, por ser tão autêntica, por valer sem mais.
Desfilaremos perante ela como desfila a vida de todos os dias e até dos dias sem amanhã no calendário. Desfilaremos como desfila o mundo no fio dos dias. Como quem vai à Fonte que tem sede de nós, da nossa presença que quer saciar.
E ficamos outros sendo os mesmos, porque O guardaremos connosco, que sempre nos guarda. Acompanhados, venha o que vier. E mais do seu lado, para acompanharmos agora todas as solidões do mundo, com o Espírito que nos comunicou – o Espírito divino, universal companhia.
Estamos aqui, na Paixão do Senhor, para respondermos finalmente à pergunta de Pilatos, que também ouvimos: «Que é a verdade?» Respondemos não é “que”, é “quem”, é precisamente Jesus, que Pilatos tinha diante dele e não reconhecia. Antes, Pilatos perguntara-lhe se era um rei, que se opusesse a César. Jesus respondera, sem que ele percebesse a profundidade da resposta: «É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz.»
Por “verdade”, como a definiam os gregos, entendia-se a coincidência da mente com o objeto, a realidade. Para os judeus e a tradição bíblica seria mais a certeza duma relação que se mantivesse fiel, como era a de Deus com o povo, como devia ser a do povo com Deus. Podemos concluir que, para nós, hoje e aqui, as duas aceções confluem. Iluminados pelo Espírito, encontramos na Cruz do Senhor o significado absoluto da vida como drama, transformada em drama como dom. Realizamo-nos na partilha do que somos, vencendo o mal com o bem, e aí mesmo estaremos no coração de Deus, como se abriu no coração trespassado de Cristo, porque «Deus é amor» (1 Jo 4,8). Fidelidade divina e fidelidade humana tornam-se uma só, como em Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Deus humanado para nos fazer divinos, só assim divinos.
- Tantas as lições da Cruz do Senhor, anualmente retomadas e sempre aprendidas, para totalmente sermos, para verdadeiramente vivermos!

Sé de Lisboa, 14 de abril de 2017

+ Manuel, Cardeal-Patriarca 

Patriarcado de Lisboa

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