Para o perfeito cumprimento do “programa” essencial de Cristo
Caríssimos irmãos sacerdotes do clero secular e regular, presentes nesta grande assembleia do Povo Sacerdotal de Lisboa: As palavras “crismais” que acabámos de ouvir, retomam-nos em Cristo para o anúncio vivo do seu Evangelho essencial. São como que uma requalificação ministerial permanente, no nosso caso e a favor de todos: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor.»
Quando iniciámos o nosso caminho sinodal foi esse o propósito, como continua a ser agora, ao prepararmos um triénio de receção ativa da Constituição Sinodal de Lisboa. Pretendemos que a todos chegue a alegria do Evangelho, através de comunidades cada vez mais atentas e missionárias em relação ao que as rodeia.
Depois da consulta feita nas vigararias, institutos e outras instâncias pastorais, o triénio 2017-2020 incidirá, ano por ano, nas dimensões profética, sacerdotal e real da vida cristã, com redobrada projeção dentro e fora das comunidades. 2017-2018 em torno da Palavra de Deus, como “lugar” onde nasce a fé (CSL, nº 38). 2018-2019 sobre a vivência litúrgica como lugar de encontro com Deus e com os outros (CSL, nº 47). 2019-2020 para sair com Cristo ao encontro de todas as periferias (CSL, nº 53). Ao longo do triénio procuraremos que as nossas comunidades se tornem cada vez mais uma rede de relações fraternas (CSL, nº 60).
Fé que corresponde à Palavra, comunhão orante com Deus e com todos, solidariedade alargada ao maior alcance… Com tudo isto continuamos a receber e pôr em prática o “programa” que o Papa Francisco apresentou à Igreja e tanto identifica o seu pontificado. Como ele próprio o lembrou nesta Quaresma ao clero da sua diocese de Roma: «Se voltardes a ler com atenção a Evangelii gaudium – que é um documento programático – vereis que fala sempre de “crescimento” e de “maturação”, na fé, no amor, na solidariedade e na compreensão da Palavra» (L’ Osservatore Romano, ed. port., 9 de março de 2017, p. 2).
Decorre entretanto nova recolha de sugestões programáticas para realizar tudo isto, em especial no que respeita ao próximo ano pastoral. “Sugestões programáticas”, repito, pois é em cada comunidade, no decorrer da respetiva vida e missão, que o programa se desenvolverá, como as circunstâncias requererem e o próprio Deus interpelar. Aí se continuará a missão de Jesus, anunciando o Evangelho a todas as pobrezas que o aguardam, materiais e espirituais como forem. Sugestões feitas diocesanamente, decerto, mas para apoiar, não para distrair nem sobrepesar cada comunidade, nem cada agente pastoral, no muito que já lhes incumbe.
Persistem entre nós formas agudas de fragilidade e pobreza, que não podemos desistir de superar, com todos os nossos concidadãos e instituições sociais e estatais. Muitos continuam sem abrigo: há quem o não tenha e há quem deixe de o ter, sem alternativa capaz. Há quem não encontre trabalho, quem o tenha precário e quem o perca, para si e para sustento dos seus. Há quem tenha teto e comida, mas não tenha vizinhança nem companhia…
Estas e outras são carências à espera de Evangelho. Não nos podemos acomodar, pois, se persistem, não é por Deus se esquecer delas. É a sua resposta em nós, desdobrando a de Cristo, que podemos adiantar ou atrasar. Não nos falta o seu Espírito, ao povo dos batizados, mas por vezes demora a nossa correspondência. O que houver a melhorar, melhoremos; o que houver a corrigir, corrijamos; onde ainda tardar, comecemos. No esforço comum duma sociedade solidária, a nossa linha só pode ser a da frente. A “solidariedade” é um dos princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 160). E a “caridade” é a solidariedade vivida ao ponto em que o próprio Cristo a viveu (Cf. ibidem, nº 196).
«Anunciar a Boa Nova aos pobres» num momento sociocultural como o nosso, há de significar também, imprescindivelmente, transmitir a perspetiva existencial que ganhamos em Cristo e no Espírito de Cristo. Como de há dois mil anos para cá vem acontecendo, para ainda mais acontecer.
No que respeita à própria vida, como Ele a viveu inteira, desde que foi concebido no ventre de Maria, até nascer nove meses depois, até crescer e trabalhar em Nazaré, até pregar e morrer em Jerusalém. Vida inteira e plenamente vivida, mesmo que ameaçada ao princípio, mesmo que modesta sempre, mesmo tão difícil no fim. Até ao fim, sem lhe reduzir uma hora da sua parte e fazendo dos últimos instantes um imenso manancial para nós todos.
Vida que pais e mães transmitem, na complementaridade homem-mulher em que a humanidade se concretiza. Realidade esta que o matrimónio garante e nos precisos termos em que Jesus o relembrou: «Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem» (Mc 10, 6-9). Toda a consideração conjuntural, toda a atenção pastoral que qualquer caso nos mereça, não devem ofuscar a luminosa clareza desta afirmação.
Afirmação que fundamenta o que o Papa Francisco indica como essencial sobre o matrimónio e os filhos, escrevendo assim: «Sejamos sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projeta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; […] os filhos querem não só que os pais se amem, mas também que sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo» (Amoris Laetitia, 123).
Convicção que leva o Papa a insistir na preparação e no acompanhamento do matrimónio, bem como na sua espiritualidade, em termos de vinculação propriamente dita. Oiçamo-lo: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (ibidem, 211). E ainda: «Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino» (ibidem, 315).
Tudo isto nos há de levar a desenvolver sempre mais e melhor a formação matrimonial nas nossas comunidades, em termos propriamente cristãos. Por aqui passa, também e muito, o anúncio da Boa Nova aos pobres. Na verdade, a fragilidade e a rotura de tantos casamentos é hoje em dia uma inegável causa de empobrecimento afetivo e material, para os próprios, os filhos e os parentes, além de enfraquecer a sociedade em geral.
Como ao matrimónio, havemos de apoiar também as vidas que se geram. Cada uma delas, acolhida e amparada desde a sua conceção pelos progenitores e pela sociedade, como tem de ser. Muitos dos dramas que infelizmente se sucedem nesta matéria seriam evitados ou minorados com maior convicção do valor inviolável da vida humana, tanto no campo humanitário como no da própria lei.
Ainda aqui o Papa Francisco é claríssimo, quando, depois de insistir na inviolabilidade de cada ser humano em todas as etapas do seu desenvolvimento, adianta que, quando «esta convicção cai, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos». O que também nos exige uma solidariedade mais ativa: «Não é opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras» (Evangelii Gaudium, 213-214).
Ressalve-se e enalteça-se o trabalho incansável de alguns grupos cristãos e de outras pessoas de boa vontade que oferecem alternativas concretas e positivas para que mulheres em dificuldade levem por diante a sua gravidez. Tais grupos anunciam realmente a Boa Nova aos pobres e demonstram à sociedade e ao Estado o que se pode fazer de bom e constituir um verdadeiro progresso.
O mesmo se diga de quantos acompanham vidas fragilizadas pela idade e pela doença e desenvolvem cuidados paliativos, rumo a uma sociedade que se torne toda ela “paliativa” também. Uma sociedade que realmente envolva e proteja cada um dos seus membros.
Em suma, superemos o mal com o bem, a aflição com o apoio, o enfraquecimento legal com o reforço das convicções – que depois nos levarão a leis mais respeitadoras da vida humana, no arco completo da existência de cada um. Sabendo que tal exige uma solidariedade mais atenta e concreta, de que as comunidades cristãs devem ser, com as famílias, uma primeiríssima escola.
Sendo também incumbência crismal «dar vista aos cegos», incidamos a luz evangélica sobre dois graves pontos de mentalidade e “cultura”, no sentido fraco da palavra. Refiro-me ao que podemos chamar alarmismo mediático e ao reducionismo ético. O primeiro, quando se trocam notícias fundamentadas por títulos mais ou menos estrepitosos, puxando a atenção pela rama e pondo em causa a verdade – a verdade do que cada um realmente é e em que o acontecido realmente foi. O segundo, que faz da apetência individual o critério e a norma, quase nesta cadência: apetece-me, é tecnicamente possível, logo tenho direito… Aquele alarmismo pode deixar-nos bloqueados e céticos, opondo-se à verdadeira justiça, que nunca condena nem absolve sem comprovação. Este reducionismo opõe-se à civilização, que apenas progride pela conversão das apetências individuais ao bem comum de todos.
E de todos como pessoas, ou seja, seres em relação, que apenas se realizam no respeito mútuo e na conjugação positiva de interesses. O corpo, nosso e dos outros, é a pessoa em relação e não uma “coisa” que se mantenha ou elimine, transforme ou manipule por bel-prazer ou capricho. Não nos é exterior, somos nós próprios em exteriorização. Da conceção à morte natural de cada um, mesmo em estados incipientes ou debilitados da existência, o corpo sinaliza-nos sempre como alguém, a nós e aos outros, e faz-nos acontecer como pessoas. Nisto mesmo há justiça, que nos manda dar a cada um o que lhe é devido. Só assim existe civilização, como vida positivamente conjugada; e progresso, como caminho de maior personalização.
Para concluir, ainda e sempre, com o Papa Francisco, sumamente claro: «Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência […], dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (Laudato si’, nº 117).
Caríssimos sacerdotes e todos vós aqui presentes: - Que a graça pascal destes dias nos reforce o empenho no perfeito cumprimento do “programa” essencial de Cristo. Como o cumpriu a sua Santíssima Mãe, quando há dois mil anos viveu na terra. Como há cem anos, em Fátima, nos lembrou do céu!
Sé de Lisboa, 13 de abril de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Caríssimos irmãos sacerdotes do clero secular e regular, presentes nesta grande assembleia do Povo Sacerdotal de Lisboa: As palavras “crismais” que acabámos de ouvir, retomam-nos em Cristo para o anúncio vivo do seu Evangelho essencial. São como que uma requalificação ministerial permanente, no nosso caso e a favor de todos: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor.»
Quando iniciámos o nosso caminho sinodal foi esse o propósito, como continua a ser agora, ao prepararmos um triénio de receção ativa da Constituição Sinodal de Lisboa. Pretendemos que a todos chegue a alegria do Evangelho, através de comunidades cada vez mais atentas e missionárias em relação ao que as rodeia.
Depois da consulta feita nas vigararias, institutos e outras instâncias pastorais, o triénio 2017-2020 incidirá, ano por ano, nas dimensões profética, sacerdotal e real da vida cristã, com redobrada projeção dentro e fora das comunidades. 2017-2018 em torno da Palavra de Deus, como “lugar” onde nasce a fé (CSL, nº 38). 2018-2019 sobre a vivência litúrgica como lugar de encontro com Deus e com os outros (CSL, nº 47). 2019-2020 para sair com Cristo ao encontro de todas as periferias (CSL, nº 53). Ao longo do triénio procuraremos que as nossas comunidades se tornem cada vez mais uma rede de relações fraternas (CSL, nº 60).
Fé que corresponde à Palavra, comunhão orante com Deus e com todos, solidariedade alargada ao maior alcance… Com tudo isto continuamos a receber e pôr em prática o “programa” que o Papa Francisco apresentou à Igreja e tanto identifica o seu pontificado. Como ele próprio o lembrou nesta Quaresma ao clero da sua diocese de Roma: «Se voltardes a ler com atenção a Evangelii gaudium – que é um documento programático – vereis que fala sempre de “crescimento” e de “maturação”, na fé, no amor, na solidariedade e na compreensão da Palavra» (L’ Osservatore Romano, ed. port., 9 de março de 2017, p. 2).
Decorre entretanto nova recolha de sugestões programáticas para realizar tudo isto, em especial no que respeita ao próximo ano pastoral. “Sugestões programáticas”, repito, pois é em cada comunidade, no decorrer da respetiva vida e missão, que o programa se desenvolverá, como as circunstâncias requererem e o próprio Deus interpelar. Aí se continuará a missão de Jesus, anunciando o Evangelho a todas as pobrezas que o aguardam, materiais e espirituais como forem. Sugestões feitas diocesanamente, decerto, mas para apoiar, não para distrair nem sobrepesar cada comunidade, nem cada agente pastoral, no muito que já lhes incumbe.
Persistem entre nós formas agudas de fragilidade e pobreza, que não podemos desistir de superar, com todos os nossos concidadãos e instituições sociais e estatais. Muitos continuam sem abrigo: há quem o não tenha e há quem deixe de o ter, sem alternativa capaz. Há quem não encontre trabalho, quem o tenha precário e quem o perca, para si e para sustento dos seus. Há quem tenha teto e comida, mas não tenha vizinhança nem companhia…
Estas e outras são carências à espera de Evangelho. Não nos podemos acomodar, pois, se persistem, não é por Deus se esquecer delas. É a sua resposta em nós, desdobrando a de Cristo, que podemos adiantar ou atrasar. Não nos falta o seu Espírito, ao povo dos batizados, mas por vezes demora a nossa correspondência. O que houver a melhorar, melhoremos; o que houver a corrigir, corrijamos; onde ainda tardar, comecemos. No esforço comum duma sociedade solidária, a nossa linha só pode ser a da frente. A “solidariedade” é um dos princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 160). E a “caridade” é a solidariedade vivida ao ponto em que o próprio Cristo a viveu (Cf. ibidem, nº 196).
«Anunciar a Boa Nova aos pobres» num momento sociocultural como o nosso, há de significar também, imprescindivelmente, transmitir a perspetiva existencial que ganhamos em Cristo e no Espírito de Cristo. Como de há dois mil anos para cá vem acontecendo, para ainda mais acontecer.
No que respeita à própria vida, como Ele a viveu inteira, desde que foi concebido no ventre de Maria, até nascer nove meses depois, até crescer e trabalhar em Nazaré, até pregar e morrer em Jerusalém. Vida inteira e plenamente vivida, mesmo que ameaçada ao princípio, mesmo que modesta sempre, mesmo tão difícil no fim. Até ao fim, sem lhe reduzir uma hora da sua parte e fazendo dos últimos instantes um imenso manancial para nós todos.
Vida que pais e mães transmitem, na complementaridade homem-mulher em que a humanidade se concretiza. Realidade esta que o matrimónio garante e nos precisos termos em que Jesus o relembrou: «Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem» (Mc 10, 6-9). Toda a consideração conjuntural, toda a atenção pastoral que qualquer caso nos mereça, não devem ofuscar a luminosa clareza desta afirmação.
Afirmação que fundamenta o que o Papa Francisco indica como essencial sobre o matrimónio e os filhos, escrevendo assim: «Sejamos sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projeta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; […] os filhos querem não só que os pais se amem, mas também que sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo» (Amoris Laetitia, 123).
Convicção que leva o Papa a insistir na preparação e no acompanhamento do matrimónio, bem como na sua espiritualidade, em termos de vinculação propriamente dita. Oiçamo-lo: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (ibidem, 211). E ainda: «Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino» (ibidem, 315).
Tudo isto nos há de levar a desenvolver sempre mais e melhor a formação matrimonial nas nossas comunidades, em termos propriamente cristãos. Por aqui passa, também e muito, o anúncio da Boa Nova aos pobres. Na verdade, a fragilidade e a rotura de tantos casamentos é hoje em dia uma inegável causa de empobrecimento afetivo e material, para os próprios, os filhos e os parentes, além de enfraquecer a sociedade em geral.
Como ao matrimónio, havemos de apoiar também as vidas que se geram. Cada uma delas, acolhida e amparada desde a sua conceção pelos progenitores e pela sociedade, como tem de ser. Muitos dos dramas que infelizmente se sucedem nesta matéria seriam evitados ou minorados com maior convicção do valor inviolável da vida humana, tanto no campo humanitário como no da própria lei.
Ainda aqui o Papa Francisco é claríssimo, quando, depois de insistir na inviolabilidade de cada ser humano em todas as etapas do seu desenvolvimento, adianta que, quando «esta convicção cai, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos». O que também nos exige uma solidariedade mais ativa: «Não é opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras» (Evangelii Gaudium, 213-214).
Ressalve-se e enalteça-se o trabalho incansável de alguns grupos cristãos e de outras pessoas de boa vontade que oferecem alternativas concretas e positivas para que mulheres em dificuldade levem por diante a sua gravidez. Tais grupos anunciam realmente a Boa Nova aos pobres e demonstram à sociedade e ao Estado o que se pode fazer de bom e constituir um verdadeiro progresso.
O mesmo se diga de quantos acompanham vidas fragilizadas pela idade e pela doença e desenvolvem cuidados paliativos, rumo a uma sociedade que se torne toda ela “paliativa” também. Uma sociedade que realmente envolva e proteja cada um dos seus membros.
Em suma, superemos o mal com o bem, a aflição com o apoio, o enfraquecimento legal com o reforço das convicções – que depois nos levarão a leis mais respeitadoras da vida humana, no arco completo da existência de cada um. Sabendo que tal exige uma solidariedade mais atenta e concreta, de que as comunidades cristãs devem ser, com as famílias, uma primeiríssima escola.
Sendo também incumbência crismal «dar vista aos cegos», incidamos a luz evangélica sobre dois graves pontos de mentalidade e “cultura”, no sentido fraco da palavra. Refiro-me ao que podemos chamar alarmismo mediático e ao reducionismo ético. O primeiro, quando se trocam notícias fundamentadas por títulos mais ou menos estrepitosos, puxando a atenção pela rama e pondo em causa a verdade – a verdade do que cada um realmente é e em que o acontecido realmente foi. O segundo, que faz da apetência individual o critério e a norma, quase nesta cadência: apetece-me, é tecnicamente possível, logo tenho direito… Aquele alarmismo pode deixar-nos bloqueados e céticos, opondo-se à verdadeira justiça, que nunca condena nem absolve sem comprovação. Este reducionismo opõe-se à civilização, que apenas progride pela conversão das apetências individuais ao bem comum de todos.
E de todos como pessoas, ou seja, seres em relação, que apenas se realizam no respeito mútuo e na conjugação positiva de interesses. O corpo, nosso e dos outros, é a pessoa em relação e não uma “coisa” que se mantenha ou elimine, transforme ou manipule por bel-prazer ou capricho. Não nos é exterior, somos nós próprios em exteriorização. Da conceção à morte natural de cada um, mesmo em estados incipientes ou debilitados da existência, o corpo sinaliza-nos sempre como alguém, a nós e aos outros, e faz-nos acontecer como pessoas. Nisto mesmo há justiça, que nos manda dar a cada um o que lhe é devido. Só assim existe civilização, como vida positivamente conjugada; e progresso, como caminho de maior personalização.
Para concluir, ainda e sempre, com o Papa Francisco, sumamente claro: «Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência […], dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (Laudato si’, nº 117).
Caríssimos sacerdotes e todos vós aqui presentes: - Que a graça pascal destes dias nos reforce o empenho no perfeito cumprimento do “programa” essencial de Cristo. Como o cumpriu a sua Santíssima Mãe, quando há dois mil anos viveu na terra. Como há cem anos, em Fátima, nos lembrou do céu!
Sé de Lisboa, 13 de abril de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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