Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap
"O CRUX, AVE SPES UNICA”
A cruz, única esperança do mundo
Pregação da Sexta-feira Santa de 2017, na Basílica de São Pedro
Escutamos a narrativa da Paixão de Cristo. Trata-se, essencialmente,
do relato de uma morte violenta. Notícias de mortes, e mortes violentas,
quase nunca faltam nos noticiários vespertinos. Também nestes últimos
dias, temos escutado tais notícias, como a dos 38 cristãos coptas
assassinados no Egito no Domingo de Ramos. Estas notícias se sucedem com
tal rapidez, que nos fazem esquecer, a cada noite, as do dia anterior.
Por que, então, após 2000 anos, o mundo ainda recorda, como se tivesse
acontecido ontem, a morte de Cristo? É que esta morte mudou para sempre o
rosto da morte; ela deu um novo sentido à morte de cada ser humano.
Sobre ela, reflitamos por um momento.
"Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram
as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e,
imediatamente, saiu sangue e água" (Jo 19, 33-34). No início do seu
ministério, àqueles que lhe perguntavam com qual autoridade ele
expulsava os vendedores do templo, Jesus disse: "Destruí este templo e
em três dias eu o levantarei". "Ele falava do templo do seu corpo" (Jo
2, 19. 21), havia comentado João naquela ocasião, e eis que agora o
próprio evangelista nos diz que do lado deste templo "destruído" jorram
água e sangue. É uma clara alusão à profecia de Ezequiel que falava do
futuro templo de Deus, daquele lado do qual jorra um fio de água que se
torna primeiro um riacho, depois um rio navegável, em torno do qual
floresce toda forma de vida.
Mas, penetremos no epicentro da fonte deste “rio de água viva” (Jo 7,
38), no coração trespassado de Cristo. No Apocalipse, o mesmo discípulo
que Jesus amava escreve: "Com efeito, entre o trono com os quatro
Viventes e os Anciãos, vi um Cordeiro de pé, como que imolado” (Ap 5,
6). Imolado, mas de pé, ou seja, trespassado, mas ressuscitado e vivo.
Existe agora, dentro da Trindade e dentro do mundo, um coração humano
que bate, não só metaforicamente, mas realmente. Se, de fato, Cristo
ressuscitou dentre os mortos, também o seu coração ressuscitou dentre os
mortos; este coração vive, como todo o resto do seu corpo, em uma
dimensão diferente da primeira, real, embora mística. Se o Cordeiro vive
no céu "imolado, mas de pé”, também o seu coração compartilha o mesmo
estado; é um coração trespassado, mas vivente; eternamente trespassado,
precisamente porque eternamente vivente.
Há uma expressão que foi criada justamente para descrever a
profundidade da maldade que pode aglutinar-se no seio da humanidade:
“coração de trevas”. Depois do sacrifício de Cristo, mais profundo do
que o coração de trevas, palpita no mundo um coração de luz. Cristo, de
fato, subindo ao céu, não abandonou a terra, assim como, encarnando-se,
não tinha abandonado a Trindade.
"Agora cumpre-se o plano do Pai – diz uma antífona da Liturgia das
horas – , fazer de Cristo o coração do mundo”. Isso explica o
irredutível otimismo cristão que fez uma mística medieval exclamar: "O
pecado é inevitável, mas tudo ficará bem e todo tipo de coisa ficará bem
" (Juliana de Norwich).
* * *
Os monges cartuxos adotaram um lema que aparece na entrada de seus
mosteiros, nos seus documentos oficiais e em outras ocasiões. Nele está
representado o globo terrestre encimado por uma cruz, rodeado pela
inscrição: "Stat crux dum volvitur orbis": A Cruz permanece intacta
enquanto o Mundo dá sua órbita.
O que é a cruz, para ser esse ponto fixo, este mastro, no meio dos
balanços do mundo"? Ela é o "Não" definitivo e irreversível de Deus à
violência, à injustiça, ao ódio, à mentira, a tudo aquilo que nós
chamamos de “mal”; e é ao mesmo tempo o “Sim” também irreversível ao
amor, à verdade, ao bem. “Não” ao pecado, “Sim” ao pecador. É o que
Jesus praticou em toda a sua vida e que agora consagra definitivamente
com a sua morte.
A razão para esta distinção é clara: o pecador é criatura de Deus e
mantém a sua dignidade, apesar de todos os seus desvios; o pecado não;
este, é uma realidade espúria, adendo, fruto das próprias paixões e da
“inveja do demônio” (Sb 2, 24). É a mesma razão pela qual o Verbo,
encarnando-se, assumiu todo do homem, exceto o pecado. O bom ladrão, a
quem Jesus moribundo promete o paraíso, é a prova viva de tudo isso.
Ninguém deve se desesperar; ninguém deve dizer, como Caim: "Muito grande
é a minha culpa para obter o perdão" (Gn 4, 13).
A cruz não "está", portanto, contra o mundo, mas pelo mundo: para dar
um sentido a todo o sofrimento que houve, que há e que haverá na
história humana. "Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo
– diz Jesus a Nicodemos –, mas para que o mundo seja salvo por Ele" (Jo
3, 17). A cruz é a proclamação viva de que a vitória final não é de
quem triunfa sobre os outros, mas de quem triunfa sobre si mesmo; não
daqueles que causam sofrimento, mas daqueles que sofrem.
* * *
"Dum volvitur Orbis", enquanto o mundo dá a sua órbita. A história
humana conhece muitas passagens de uma época para outra: se fala da
idade da pedra, do bronze, do ferro, da era Imperial, da era atômica, da
era eletrônica. Mas hoje há algo de novo. A ideia de transição já não é
suficiente para descrever a realidade atual. A ideia de mutação deve
ser combinada com a de fragmentação. Vivemos, alguém escreveu, em uma
sociedade "líquida"; não existem mais pontos fixos, valores
incontestáveis, nenhuma rocha no mar, à qual possamos nos agarrar, ou
contra a qual colidir. Tudo é flutuante.
Realizou-se o pior cenário que o filósofo havia previsto como
resultado da morte de Deus, que o advento do super-homem deveria ter
impedido, mas que não impediu: "Que fizemos quando desprendemos esta
terra da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde
vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo?
Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda
um acima e um abaixo? Não estaremos errando como num nada infinito?” (F.
Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 125).
Foi dito que "matar Deus é o suicídio mais horrendo", e é isso que
estamos vendo em parte. Não é verdade que "onde Deus nasce, o homem
morre" (J.-P Sartre); o oposto é verdadeiro: onde morre Deus, morre o
homem.
Um pintor surrealista da segunda metade do século passado (Salvador
Dalì) pintou um crucifixo que parece uma profecia desta situação. Uma
imensa cruz, cósmica, com um Cristo acima, também monumental, visto do
alto, com a cabeça inclinada para baixo. Abaixo dele, no entanto, não há
nenhuma terra firme, mas a água. O Crucifixo não está suspenso entre o
céu e a terra, mas entre o céu e o componente líquido do mundo.
Este quadro trágico (há também, no fundo, uma nuvem que poderia
aludir à nuvem atômica), contém, no entanto, uma consoladora certeza: há
esperança também para uma sociedade líquida como a nossa! Há esperança,
porque acima dela "está a cruz de Cristo". É o que a liturgia da
Sexta-feira Santa nos faz repetir todos os anos com as palavras do poeta
Venanzio Fortunato: "O crux, ave spe unica”, Salve, ó Cruz, única
esperança do mundo.
Sim, Deus está morto, morreu em seu Filho Jesus Cristo; mas não ficou
no sepulcro, ressuscitou. "Vós o crucificastes – grita Pedro à multidão
no dia de Pentecostes –, mas Deus o ressuscitou!” (At 2, 23-24). Ele é
aquele que "estava morto, mas agora vive pelos séculos dos séculos" (Ap
1, 18). A cruz não “está” imóvel no meio das turbulências do mundo" como
um lembrete de um evento passado, ou um puro símbolo; está como uma
realidade em ato, viva e operante.
* * *
Tornaríamos vã, no entanto, esta liturgia da Paixão, se ficássemos,
como os sociólogos, na análise da sociedade em que vivemos. Cristo não
veio para explicar as coisas, mas para mudar as pessoas. O coração de
trevas não é apenas aquele de algum malvado escondido no fundo da selva,
e nem mesmo aquele da nação e da sociedade que o produziu. Em diferente
medida está dentro de cada um de nós.
A Bíblia o chama de coração de pedra, "Tirarei do vosso peito o
coração de pedra – diz Deus ao profeta Ezequiel – vos darei um coração
de carne " (Ez 36, 26). Coração de Pedra é o coração fechado à vontade
de Deus e ao sofrimento dos irmãos, o coração de quem acumula
quantidades ilimitadas de dinheiro e permanece indiferente ao desespero
de quem não tem um copo de água para dar ao próprio filho; é também o
coração de quem se deixa completamente dominar pela paixão impura,
pronto para matar ou a levar uma vida dupla. Para não ficarmos com o
olhar sempre dirigido para o exterior, para os demais, digamos mais
concretamente: é o nosso coração de ministros de Deus e de cristãos
praticantes se vivemos ainda, basicamente, “para nós mesmos” e não “para
o Senhor”.
Está escrito que no momento da morte de Cristo "o véu do templo se
rasgou em dois, de alto a baixo, a terra tremeu, e as rochas se
partiram, os túmulos se abriram e muitos corpos de santos mortos
ressuscitaram" (Mt 27, 51s.). Destes sinais se dá, normalmente, uma
explicação apocalíptica, como de uma linguagem simbólica necessária para
descrever o evento escatológico. Mas eles também têm um significado
parenético: indicam o que deve acontecer no coração de quem lê e medita a
Paixão de Cristo. Em uma liturgia como esta, São Leão Magno dizia aos
fieis: “Trema a natureza humana perante a execução do Redentor,
quebrem-se as rochas dos corações infiéis e aqueles que estavam
encerrados nos sepulcros de sua mortalidade saiam para fora, levantando a
pedra que estava sobre eles" (Sermo 66, 3; PL 54, 366).
O coração de carne, prometido por Deus nos profetas, já está presente
no mundo: é o Coração de Cristo trespassado na cruz, aquele que
veneramos como “o Sagrado Coração”. Ao receber a Eucaristia, acreditamos
firmemente que aquele coração vem bater também dentro de nós. Olhando
para a cruz daqui a pouco digamos do profundo do coração, como o
publicano no templo: "Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!”, e também
nós, como ele, voltaremos para casa “justificados” (Lc 18, 13-14).
Traduçao de Thácio Siqueira
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