A plenitude da caridade e da vida
No banquete do amor de Cristo, a plenitude da caridade e da vida: Assim a pedimos na oração coleta, assim nos será proporcionada, se a quisermos deveras. Problema é quando diminuímos o pedido, como atrasamos a conversão.Em cada celebração eucarística, a oração coleta indica-nos o motivo próprio e a referência oportuna. Assim também agora, iniciando o Tríduo Pascal na Missa Vespertina da Ceia do Senhor.
- E o que pedimos a Deus, como especialíssima graça desta celebração? Já foi dito, e é nada menos do que a plenitude da caridade e da vida – que na prática é reforçar o mesmo, pois que a vida é a caridade, como o próprio Deus. Tudo em Cristo alcançado, tudo por Cristo oferecido.
Porque de “plenitude” se há de tratar, no sentido perfeito que a palavra transporta. Detenhamo-nos um pouco e percebamo-nos a nós também assim.
No mesmo Evangelho de João, dissera Jesus que nos trazia a vida. Não uma vida qualquer, mas abundante e plena. Ao contrário de outros, que tinham vindo para destruir, vinha para nos reconstruir, a partir de si mesmo, como vida completa: «O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância.» (Jo 10, 10).
Mas em muitos passos evangélicos verificamos a tensão entre a oferta que Jesus faz de si mesmo e a resistência daqueles a quem se propõe. Estranha contradição é esta… E trágica consequência também, que levarão ao ponto pascal de Jesus ter de morrer para oferecer uma vida que todos deveriam logo querer, eles como nós. Foi preciso chegar-se àquele extremo, para que finalmente o aceitássemos, se é que o aceitámos já... Rejeitado em Nazaré, rejeitado em Corazaim, Betsaida e Cafarnaum (cf. Mt 11, 20 ss) foi-o depois em Jerusalém: «Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!» (Mt 23, 37).
- Problema só deles, dos de há dois mil anos? Infelizmente não só, porque ainda nosso e bem nosso, persistentemente nosso. Problema que resumiremos assim: - Estamos dispostos, por real necessidade e maior desejo, a receber Deus de Deus, como em Jesus se oferece? Deus que não nos quer dar simplesmente coisas, ainda que úteis, mas a si mesmo, pleno e bastante.
Lembramos certamente o discurso do Pão da Vida, no quarto Evangelho. Jesus tinha-os saciado de pão material, e facilmente ficariam por aí e por então. Mas era muito mais o que propunha, como alimento perfeito e perene: «Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. […] Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo» (Jo 6, 49-51). Mas lembramos também o que se seguiu, como se a oferta fosse excessiva: «A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram para trás…» (Jo 6, 66).
É este o problema, irmãos caríssimos: É Jesus oferecer-se tão pleno, que exige acolhimento perfeito. É Deus revelar-se tão simples, que se traduz em serviço.
Vida que nos dá a duração de Deus, excedendo por um só sentimento a sucessão dos tempos em que nos dispersamos – vidas, desejos, projetos só nossos, demasiadamente nossos. Assim compreenderemos que aceitar a vida divina é aceitar o serviço de Cristo, como a si mesmo se oferece, tão total e simples, tão simplesmente total. É alargarmos a nossa estreiteza, onde mal cabemos nós e ainda menos os outros, para O recebermos plenamente – e com Ele a Deus e em Deus a todos. Permito-me concretizar e interrogar sobre o ritmo eucarístico das nossas vidas e da assim chamada “prática dominical”. – Não será a ausência de muitos, o pouco escrúpulo em faltar, a sobrevalorização de circunstâncias - como se é perto ou longe, se é mais cedo ou mais tarde -, não será tudo isto manifestação de descaso em relação à vida de Cristo, sacramentalmente oferecida e eclesialmente compartilhada? - É afinal simples demais para nem darmos por ela, nessas circunstâncias comezinhas?
Como um pão que se partilha, como um cálice que se oferece. Por isso, insisto, o “problema eucarístico” é o da nossa conversão à simplicidade de Deus, ao serviço de Cristo no modo em que foi e continua a ser, sacramental e eclesialmente prestado.
Testemunhámos o espanto de Pedro, ouvimos a resposta de Jesus: «Quando chegou a Simão Pedro, este disse: “Senhor, tu vais lavar-me os pés?” Jesus respondeu: “O que estou a fazer, não o podes entender agora, mas compreendê-lo-ás mais tarde.”» E o espanto de Pedro perdura em nós. Com a consequência imediata de, resistindo ao serviço de Cristo na humildade com que a sua Igreja o continua, não o aproveitarmos nós nem o prestarmos aos outros.
Porque a humildade de Cristo é ser inteiramente para todos. E o seu modo eucarístico de ser é a única maneira de nós sermos também. Assim o acolhamos e transmitamos, tudo como um pão que se reparte, tudo como um cálice que se comunga, em união de destino para Deus e para os outros. Convençamo-nos nós e convencer-se-á o mundo, tornado num grande e mútuo lava-pés. Numa Ceia que será realmente a última, porque nada ficará para oferecer, nenhum serviço retardado.
Pedro teve dificuldade em reconhecê-lo de imediato. - E nós próprios, as nossas comunidades, como estamos diante de Cristo eucaristicamente presente em cada Missa, em cada sacrário? E também nos outros, em quem se apresenta? Simples demais, simplicíssimo mesmo, para a nossa previsão, o nosso preconceito e a nossa disponibilidade face ao seu modo eucarístico de ser e acontecer.
Ainda hoje nos espantamos como Pedro. Oxalá nos convertamos como depois se converteu. Por mais que a liturgia ornamente os gestos, estes são sempre os de Jesus e só por isso sacramentais. Naquela Jerusalém de há dois milénios levantara-se um templo de magníficas pedras trabalhadas, que também espantavam muita gente. Mas foi numa simples sala que Jesus se repartiu em pão e vinho…
Passados anos, esboroou-se aquele templo. Mas o gesto discreto de Jesus, esse perdura, como o estamos a reviver agora. Este sim é o espanto que devemos ter. Esta sim a conversão a perfazer. Comungaremos a sua vida, o seu modo de ser e de servir, pleno e prestante. A plenitude da caridade e da vida.
Sé de Lisboa, 13 de abril de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
No banquete do amor de Cristo, a plenitude da caridade e da vida: Assim a pedimos na oração coleta, assim nos será proporcionada, se a quisermos deveras. Problema é quando diminuímos o pedido, como atrasamos a conversão.Em cada celebração eucarística, a oração coleta indica-nos o motivo próprio e a referência oportuna. Assim também agora, iniciando o Tríduo Pascal na Missa Vespertina da Ceia do Senhor.
- E o que pedimos a Deus, como especialíssima graça desta celebração? Já foi dito, e é nada menos do que a plenitude da caridade e da vida – que na prática é reforçar o mesmo, pois que a vida é a caridade, como o próprio Deus. Tudo em Cristo alcançado, tudo por Cristo oferecido.
Porque de “plenitude” se há de tratar, no sentido perfeito que a palavra transporta. Detenhamo-nos um pouco e percebamo-nos a nós também assim.
No mesmo Evangelho de João, dissera Jesus que nos trazia a vida. Não uma vida qualquer, mas abundante e plena. Ao contrário de outros, que tinham vindo para destruir, vinha para nos reconstruir, a partir de si mesmo, como vida completa: «O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância.» (Jo 10, 10).
Mas em muitos passos evangélicos verificamos a tensão entre a oferta que Jesus faz de si mesmo e a resistência daqueles a quem se propõe. Estranha contradição é esta… E trágica consequência também, que levarão ao ponto pascal de Jesus ter de morrer para oferecer uma vida que todos deveriam logo querer, eles como nós. Foi preciso chegar-se àquele extremo, para que finalmente o aceitássemos, se é que o aceitámos já... Rejeitado em Nazaré, rejeitado em Corazaim, Betsaida e Cafarnaum (cf. Mt 11, 20 ss) foi-o depois em Jerusalém: «Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!» (Mt 23, 37).
- Problema só deles, dos de há dois mil anos? Infelizmente não só, porque ainda nosso e bem nosso, persistentemente nosso. Problema que resumiremos assim: - Estamos dispostos, por real necessidade e maior desejo, a receber Deus de Deus, como em Jesus se oferece? Deus que não nos quer dar simplesmente coisas, ainda que úteis, mas a si mesmo, pleno e bastante.
Lembramos certamente o discurso do Pão da Vida, no quarto Evangelho. Jesus tinha-os saciado de pão material, e facilmente ficariam por aí e por então. Mas era muito mais o que propunha, como alimento perfeito e perene: «Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. […] Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo» (Jo 6, 49-51). Mas lembramos também o que se seguiu, como se a oferta fosse excessiva: «A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram para trás…» (Jo 6, 66).
É este o problema, irmãos caríssimos: É Jesus oferecer-se tão pleno, que exige acolhimento perfeito. É Deus revelar-se tão simples, que se traduz em serviço.
Vida que nos dá a duração de Deus, excedendo por um só sentimento a sucessão dos tempos em que nos dispersamos – vidas, desejos, projetos só nossos, demasiadamente nossos. Assim compreenderemos que aceitar a vida divina é aceitar o serviço de Cristo, como a si mesmo se oferece, tão total e simples, tão simplesmente total. É alargarmos a nossa estreiteza, onde mal cabemos nós e ainda menos os outros, para O recebermos plenamente – e com Ele a Deus e em Deus a todos. Permito-me concretizar e interrogar sobre o ritmo eucarístico das nossas vidas e da assim chamada “prática dominical”. – Não será a ausência de muitos, o pouco escrúpulo em faltar, a sobrevalorização de circunstâncias - como se é perto ou longe, se é mais cedo ou mais tarde -, não será tudo isto manifestação de descaso em relação à vida de Cristo, sacramentalmente oferecida e eclesialmente compartilhada? - É afinal simples demais para nem darmos por ela, nessas circunstâncias comezinhas?
Como um pão que se partilha, como um cálice que se oferece. Por isso, insisto, o “problema eucarístico” é o da nossa conversão à simplicidade de Deus, ao serviço de Cristo no modo em que foi e continua a ser, sacramental e eclesialmente prestado.
Testemunhámos o espanto de Pedro, ouvimos a resposta de Jesus: «Quando chegou a Simão Pedro, este disse: “Senhor, tu vais lavar-me os pés?” Jesus respondeu: “O que estou a fazer, não o podes entender agora, mas compreendê-lo-ás mais tarde.”» E o espanto de Pedro perdura em nós. Com a consequência imediata de, resistindo ao serviço de Cristo na humildade com que a sua Igreja o continua, não o aproveitarmos nós nem o prestarmos aos outros.
Porque a humildade de Cristo é ser inteiramente para todos. E o seu modo eucarístico de ser é a única maneira de nós sermos também. Assim o acolhamos e transmitamos, tudo como um pão que se reparte, tudo como um cálice que se comunga, em união de destino para Deus e para os outros. Convençamo-nos nós e convencer-se-á o mundo, tornado num grande e mútuo lava-pés. Numa Ceia que será realmente a última, porque nada ficará para oferecer, nenhum serviço retardado.
Pedro teve dificuldade em reconhecê-lo de imediato. - E nós próprios, as nossas comunidades, como estamos diante de Cristo eucaristicamente presente em cada Missa, em cada sacrário? E também nos outros, em quem se apresenta? Simples demais, simplicíssimo mesmo, para a nossa previsão, o nosso preconceito e a nossa disponibilidade face ao seu modo eucarístico de ser e acontecer.
Ainda hoje nos espantamos como Pedro. Oxalá nos convertamos como depois se converteu. Por mais que a liturgia ornamente os gestos, estes são sempre os de Jesus e só por isso sacramentais. Naquela Jerusalém de há dois milénios levantara-se um templo de magníficas pedras trabalhadas, que também espantavam muita gente. Mas foi numa simples sala que Jesus se repartiu em pão e vinho…
Passados anos, esboroou-se aquele templo. Mas o gesto discreto de Jesus, esse perdura, como o estamos a reviver agora. Este sim é o espanto que devemos ter. Esta sim a conversão a perfazer. Comungaremos a sua vida, o seu modo de ser e de servir, pleno e prestante. A plenitude da caridade e da vida.
Sé de Lisboa, 13 de abril de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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