09 abril, 2017

Homilia do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor

 

Para que a Páscoa não chegue só no calendário…


«Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço…» Foi assim na altura. E os ramos que lhe levantaram deram o nome ao Domingo que celebramos hoje, pórtico da semana Maior.
Mas é certamente mais do que simples evocação. É de vida que se trata sempre, na liturgia cristã. Da vida de Deus connosco, como foi e continua a ser. Como deve ser.
Vejamos então: «Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço.» Há dois ou três anos que se falava dele. Da Galileia a Jerusalém corriam notícias do que fazia e dizia, do que acontecia ao seu redor. Notícias de cura física e de libertação espiritual.
Boas Notícias = Evangelho, que alastravam, apesar de tudo alastravam. Sim, porque também surgiam resistências e oposições em crescendo. Porque se aproximava de todos e deixava que mesmo os “impuros” se aproximassem dele. Porque não hesitava em atuar ao sábado, sempre que fosse preciso ajudar alguém. Porque de todo o lugar fazia um templo, relativizando o da “cidade santa”, por mais que esta o fosse. Porque reduzia toda a lei e os profetas ao amor de Deus e do próximo, ao amor de Deus comprovado no amor ao próximo…
Fosse como fosse, ao menos naquela entrada em Jerusalém, o entusiasmo era geral, ou quase geral. Ainda mais por se apresentar assim, sentado «num jumentinho, filho duma jumenta», lembrando-lhes ao vivo uma antiga profecia sobre a chegada do messias rei. Tão diferente dos reis habituais, tão concorde com os modos de Deus. De Deus, que falara ao profeta Elias numa brisa quase impercetível, mais e melhor do que com espantos e estrondos. De Deus, que curara o sírio Naamã nas águas correntes dum modesto rio. Da humildade de Deus, como a entreviam, ao menos naquela altura.
E a cidade ficou em alvoroço. Natural e espontâneo, como nas coisas que correspondem a expetativas profundas. Mas também com os limites próprios dos alvoroços, os deles e os nossos. Arriscam durar pouco e passar depressa.
Poucos dias depois, no pretório de Pilatos, ouviu-se gritar: «Seja crucificado! Seja crucificado!» - Quantos dos que gritavam seriam os mesmos que dias antes cantavam hossanas, quando Jesus, o mesmo Jesus, entrara na cidade?
O relato evangélico não faz tais contas. Deixa-as para cada um de nós, como exame de consciência, exame de coerência da nossa relação com Jesus, dois mil anos passados como se fosse agora. Entre hossanas e apupos não será, mas entre entusiasmos e desânimos talvez, ou entre manifestações de fé e contradições de prática. E por vezes nem será preciso mediarem dias…


Estamos em Domingo de Ramos, começo da Semana Santa. Com nota festiva como então, por breve que seja. Mas sejamos coerentes e, semana fora, continuemos ao lado de Jesus. Acompanhemo-lo na Ceia e não saiamos para o entregar, como o Iscariotes. Estejamos com ele no Getsémani e não adormeçamos nem fujamos, como fizeram os outros discípulos. Estejamos no pretório de Pilatos, e não gritemos “Crucifica-o!”, nem por palavras, nem por atos e omissões.
Sigamos com Jesus até ao Gólgota, mas como o Cireneu, e ainda mais como as santas mulheres, que não O deixaram até ao fim. Cada uma destas atitudes, nem por serem espiritualmente intensas, deixarão de ser eminentemente práticas, no que nos couber a cada um.
Porque onde se condenarem inocentes, está em sessão o pretório de Pilatos. Onde a cruz da vida pesar mais a este ou aquele, requer-se que sejamos cireneus. De nenhum destes lados podemos desertar, para não trocar alvoroços por fugas. Viveremos esta semana em Lisboa, ou noutros sítios em paz. Paz pública, ao menos e ainda bem. Mas por dentro de cada casa, no seio de cada família ou grupo, há Jesus que chega e continua a humildade com que o faz. Aquele jumentinho em que vinha é hoje a simplicidade com que está, na humanidade de cada um, assim reconhecido ou ainda não.
Não sabemos quantos deram realmente por Jesus, quando entrou em Jerusalém. Mas sabemos decerto que mais disponibilidade para reparamos nos outros e mais cuidado em corresponder-lhes, serão agora os hossanas com que aclamaremos, os ramos que levantaremos, as capas que estenderemos. Pois assim mesmo Jesus passa, Jesus está e sempre nos espera. Hoje, amanhã e depois, para que toda a semana seja “santa”, reencontrada e celebrada com Jesus nos outros, com Jesus em Deus – que é isso mesmo a santidade autêntica.
Por estes dias costumam chegar imagens da Semana Santa em Jerusalém, com os relativamente poucos cristãos que lá vivem e muitos outros que ali peregrinam. O lugar é mais ou menos o mesmo do acontecimento que evocamos e as circunstâncias atuais também não são fáceis, entre alegrias e penas, alvoroços e receios. Também podemos seguir algumas celebrações em Roma, com o Papa Francisco, nome atual de Pedro, e muitos romeiros que aí se juntam. Porventura imagens de algumas zonas do Oriente Próximo, onde ainda se fala a língua de Jesus e tudo continua difícil, mesmo entre ruínas. Mas ainda assim continua, com Jesus que não deixa de passar, no caminho que perfaz e na paixão que compartilha.
Não, não podemos viver esta semana com sentimentos fugazes e distrações periféricas. Que os hossanas nos brotem bem de dentro do coração convertido. Dirijamo-los a Jesus que passa, tanto em si mesmo, constante “Deus connosco”, como naqueles que nos esperam, outros tantos apelos de Deus. E quanto mais simples, comuns e correntes na circunstância dos dias que se seguem, mais se assemelharão a Jesus que prossegue, naquele jumentinho em que os seus pés tocavam certamente o chão. O chão de Jerusalém, o chão da nossa cidade agora.
Uma semana para celebrar, uma semana para cumprir. Plena de Cristo nos outros e só assim “santa”, porque inteiramente de Deus. Não esvaziemos as palavras, nem desperdicemos o tempo. Não nos distraiamos de Deus, não nos distraiamos dos outros, nem, afinal, de nós. - É preciso que a Páscoa não chegue só no calendário!     


Sé de Lisboa, 9 de abril de 2017

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

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