Sentir e servir a misericórdia divina
Caríssimos irmãos e irmãs, e especialmente vós, os ordinandos deste dia abençoado:
Reunimo-nos, saudámo-nos, ouvimos a Palavra, preparamo-nos para as
Ordenações e a Eucaristia. Esta breve reflexão reforça apenas a
oportunidade do que acabamos de escutar e o sentido do que há de
acontecer depois, no sacramento e na vida. Em Missa Vespertina de São
Pedro e São Paulo, seguimos um passo evangélico de que o primeiro foi
especial testemunha e jamais esqueceria. Reevoquemo-lo:
O centro, a conclusão e o tudo consistem na pessoa de Jesus. Como foi
então, ao desembarcar naquela praia, como continua agora, neste mundo
em que estamos. Mal pôs pé em terra, juntou-se muita gente e assim mesmo
se deteve, em palavras e gestos que correspondiam a tanta procura.
Chega Jairo e pede-lhe que vá salvar-lhe a filha, que estava a morrer.
Jesus acede, mas tem de atravessar uma multidão compacta. Uma mulher,
doente e desenganada, consegue tocar-lhe no manto. Sente-se curada e
Jesus sente que a curou…
As coisas podiam ficar por aqui, mas para Jesus não chega assim. E.
por mais que os próprios discípulos lhe dissessem que era impossível
saber quem lhe tocara, pois muitos o faziam naquele aperto, olha em
volta e insiste até descobrir quem fora. E à mulher declara o milagre
maior, não apenas físico mas agora total: «Minha filha, a tua fé te
salvou!».
Irmãos e irmãs, em todas as expressões atuais do corpo eclesial de
Cristo: O que vai dito, item por item, é o nosso programa missionário e
evangelizador, neste 2015 da era que Cristo inaugurou - outro modo de
indicar a plenitude do tempo, que se atinge quando nos encontramos com
Ele. Aquela mulher é cada ser humano, em busca da cura do corpo ou do
espírito, limitados que somos, fragilizados também e muito especialmente
alguns, por tantas necessidades e aflições.
A presença de Cristo, que se detém, acolhe e procura, destacando o
singular no redor em que olha, figura-se agora em cada um de nós, na
comunhão ativa da caridade de Cristo e na especificação pessoal dos
carismas e ministérios que O tornam presente no mundo.
O nosso mundo, qual grande praça que devemos atravessar, olhando bem a
todos e fixando-nos em cada um e de cada vez, mesmo havendo outros à
espera. Insistamos neste ponto: Tempos sucedem a tempos, mas a plenitude
do tempo é o encontro pessoal com Cristo, que também passa de outros
para nós e através de nós para quem quer que seja. Como escreveu um
grande bispo e mártir, Óscar Romero, há pouco beatificado. «A Igreja é o
Corpo de Cristo na história […]. A Igreja é a carne em que que Cristo
torna presente, ao longo dos tempos, a sua própria vida e a sua missão
pessoal. […] É dever da Igreja na história emprestar a sua voz a Cristo,
de tal modo que Ele possa falar; emprestar os seus pés, a fim de que
Ele possa palmilhar o mundo de hoje, as suas mãos para construir o
Reino, e para permitir a todos os seus membros que “completem o que
falta aos sofrimentos de Cristo” (Col 1, 24)» (cit. por Kevin Clark,
Óscar Romero. O amor deve triunfar, Paulinas, 2014, p. 125-126).
Caríssimos ordinandos: Reparastes, entretanto, que com Jesus seguiam
os seus discípulos. E que, quando Jesus chegou a casa de Jairo e curou a
menina, apenas iam com Ele, além de Jairo, Pedro, Tiago e João, os seus
mais próximos…
Pelo caminho vocacional que fizestes, pela escolha que a Igreja fez
de vós, entrastes nesta “proximidade” de Jesus que salva. Como podem
testemunhar-vos tantos ministros ordenados que hoje vos acompanham nesta
celebração, a graça, o encargo, a realidade e a beleza do sacramento da
Ordem residem especialmente aqui, em aproximar-se com Jesus de toda a
humanidade, prostrada por tantos males e carências, e, repetindo-lhe a
Palavra, continuar-lhe o gesto: «Jesus pegou-lhe na mão e disse: “Talita
Kum”, que significa: “Menina, Eu te ordeno: Levanta-te.”».
A proximidade intensa com Jesus dá origem, no sacramento da Ordem, à
participação pessoal na sua própria caridade pastoral. E só assim se
garante, como acabaram por perceber Pedro, Tiago e João. E depois os
outros, e Paulo, e agora vós.
Diz-se e ouve-se dizer – até para adiar conversões ou “justificar”
desistências – que “o padre é um homem como os outros”. Esta afirmação,
parecendo verdadeira, redunda em quase mentira. Na verdade, o padre não é
apenas, nem sobretudo, «um homem como os outros». O padre, sacramento
de Cristo Pastor na Igreja e no mundo, é «um homem para os outros». E
assim mesmo assinala e ativa idêntica disposição na inteira comunidade
dos crentes, para a cura e salvação duma humanidade realmente prostrada e
tantas vezes moribunda de si mesma.
A esta disposição de acolhimento, procura e entrega se refere
insistentemente o Papa Francisco, que para tal proclamou um Jubileu da
Misericórdia, a partir de 8 de dezembro próximo. É uma graça particular
para vós, os ordinandos, o facto do vosso ministério se iniciar assim e
sob este lema. Levai-o muito “a peito”, que é o lugar do coração – vosso
e de Cristo – outro modo de dizer “misericórdia”.
Na caminhada sinodal de Lisboa e no caminho universal da Igreja,
deste modo nos queremos – aos ministros ordenados e, também por estes,
às comunidades cristãs: sinais vivos e ocasiões certas da misericórdia
divina, realmente atentos a quem mais precisa. O Jubileu visa isso
mesmo, nas palavras do Papa, quando escreve na bula de proclamação: «Nas
nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos –
em suma, onde houver cristãos – qualquer pessoa deve poder encontrar um
oásis de misericórdia» (Misericordiae vultus, 12).
Foi há dez anos que os católicos de Lisboa e outros de vários pontos
da Europa nos reunimos aqui, nesta magnífica igreja de Santa Maria de
Belém, em várias sessões do Congresso Internacional para a Nova
Evangelização. Como lembramos, a “nova evangelização” foi tema
insistente do pontificado de São João Paulo II, que a queria «nova no
ardor, nova nos métodos e nova nas expressões». Recordo também que,
nesse ICNE de Lisboa, se insistia muito em comunidades acolhedoras e em
missão urbana, de convite e companhia para todos.
Não é um tema esquecido e muito menos ultrapassado. Bento XVI
retomou-o e o Papa Francisco também, com a particularidade, este último,
de o ligar diretamente à misericórdia. Assim disse ainda há um mês,
numa audiência ao Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, que
encarregou de preparar o Jubileu: «A nova evangelização consiste nisto:
adquirir consciência do amor misericordioso do Pai, a fim de nos
tornarmos, também nós, instrumentos de salvação para os nossos irmãos»
(L’ Osservatore Romano, ed. port., 4 de junho de 2015, p. 6).
Caríssimos ordinandos: Consciência do amor misericordioso do Pai, já a
tendes decerto, pois só assim se explica este momento absoluto das
vossas vidas entregues. De tal consciência decorre o único programa que
levais: ser sacramento de Cristo Pastor para a salvação de quem O
espera.
Nisto vos ajudará sempre a Mãe de Misericórdia, como também os Santos
Pedro e Paulo. Assim prosseguireis seguros, na caridade pastoral de
Cristo.
Santa Maria de Belém, 28 de junho de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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