28 junho, 2015

Homilia na Missa de Ordenações

Sentir e servir a misericórdia divina

Caríssimos irmãos e irmãs, e especialmente vós, os ordinandos deste dia abençoado:

Reunimo-nos, saudámo-nos, ouvimos a Palavra, preparamo-nos para as Ordenações e a Eucaristia. Esta breve reflexão reforça apenas a oportunidade do que acabamos de escutar e o sentido do que há de acontecer depois, no sacramento e na vida. Em Missa Vespertina de São Pedro e São Paulo, seguimos um passo evangélico de que o primeiro foi especial testemunha e jamais esqueceria. Reevoquemo-lo:
O centro, a conclusão e o tudo consistem na pessoa de Jesus. Como foi então, ao desembarcar naquela praia, como continua agora, neste mundo em que estamos. Mal pôs pé em terra, juntou-se muita gente e assim mesmo se deteve, em palavras e gestos que correspondiam a tanta procura. Chega Jairo e pede-lhe que vá salvar-lhe a filha, que estava a morrer. Jesus acede, mas tem de atravessar uma multidão compacta. Uma mulher, doente e desenganada, consegue tocar-lhe no manto. Sente-se curada e Jesus sente que a curou…
As coisas podiam ficar por aqui, mas para Jesus não chega assim. E. por mais que os próprios discípulos lhe dissessem que era impossível saber quem lhe tocara, pois muitos o faziam naquele aperto, olha em volta e insiste até descobrir quem fora. E à mulher declara o milagre maior, não apenas físico mas agora total: «Minha filha, a tua fé te salvou!».
Irmãos e irmãs, em todas as expressões atuais do corpo eclesial de Cristo: O que vai dito, item por item, é o nosso programa missionário e evangelizador, neste 2015 da era que Cristo inaugurou - outro modo de indicar a plenitude do tempo, que se atinge quando nos encontramos com Ele. Aquela mulher é cada ser humano, em busca da cura do corpo ou do espírito, limitados que somos, fragilizados também e muito especialmente alguns, por tantas necessidades e aflições.
A presença de Cristo, que se detém, acolhe e procura, destacando o singular no redor em que olha, figura-se agora em cada um de nós, na comunhão ativa da caridade de Cristo e na especificação pessoal dos carismas e ministérios que O tornam presente no mundo.
O nosso mundo, qual grande praça que devemos atravessar, olhando bem a todos e fixando-nos em cada um e de cada vez, mesmo havendo outros à espera. Insistamos neste ponto: Tempos sucedem a tempos, mas a plenitude do tempo é o encontro pessoal com Cristo, que também passa de outros para nós e através de nós para quem quer que seja. Como escreveu um grande bispo e mártir, Óscar Romero, há pouco beatificado. «A Igreja é o Corpo de Cristo na história […]. A Igreja é a carne em que que Cristo torna presente, ao longo dos tempos, a sua própria vida e a sua missão pessoal. […] É dever da Igreja na história emprestar a sua voz a Cristo, de tal modo que Ele possa falar; emprestar os seus pés, a fim de que Ele possa palmilhar o mundo de hoje, as suas mãos para construir o Reino, e para permitir a todos os seus membros que “completem o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Col 1, 24)» (cit. por Kevin Clark, Óscar Romero. O amor deve triunfar, Paulinas, 2014, p. 125-126).

Caríssimos ordinandos: Reparastes, entretanto, que com Jesus seguiam os seus discípulos. E que, quando Jesus chegou a casa de Jairo e curou a menina, apenas iam com Ele, além de Jairo, Pedro, Tiago e João, os seus mais próximos…
Pelo caminho vocacional que fizestes, pela escolha que a Igreja fez de vós, entrastes nesta “proximidade” de Jesus que salva. Como podem testemunhar-vos tantos ministros ordenados que hoje vos acompanham nesta celebração, a graça, o encargo, a realidade e a beleza do sacramento da Ordem residem especialmente aqui, em aproximar-se com Jesus de toda a humanidade, prostrada por tantos males e carências, e, repetindo-lhe a Palavra, continuar-lhe o gesto: «Jesus pegou-lhe na mão e disse: “Talita Kum”, que significa: “Menina, Eu te ordeno: Levanta-te.”».
A proximidade intensa com Jesus dá origem, no sacramento da Ordem, à participação pessoal na sua própria caridade pastoral. E só assim se garante, como acabaram por perceber Pedro, Tiago e João. E depois os outros, e Paulo, e agora vós.
Diz-se e ouve-se dizer – até para adiar conversões ou “justificar” desistências – que “o padre é um homem como os outros”. Esta afirmação, parecendo verdadeira, redunda em quase mentira. Na verdade, o padre não é apenas, nem sobretudo, «um homem como os outros». O padre, sacramento de Cristo Pastor na Igreja e no mundo, é «um homem para os outros». E assim mesmo assinala e ativa idêntica disposição na inteira comunidade dos crentes, para a cura e salvação duma humanidade realmente prostrada e tantas vezes moribunda de si mesma.

A esta disposição de acolhimento, procura e entrega se refere insistentemente o Papa Francisco, que para tal proclamou um Jubileu da Misericórdia, a partir de 8 de dezembro próximo. É uma graça particular para vós, os ordinandos, o facto do vosso ministério se iniciar assim e sob este lema. Levai-o muito “a peito”, que é o lugar do coração – vosso e de Cristo – outro modo de dizer “misericórdia”.
Na caminhada sinodal de Lisboa e no caminho universal da Igreja, deste modo nos queremos – aos ministros ordenados e, também por estes, às comunidades cristãs: sinais vivos e ocasiões certas da misericórdia divina, realmente atentos a quem mais precisa. O Jubileu visa isso mesmo, nas palavras do Papa, quando escreve na bula de proclamação: «Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos – qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia» (Misericordiae vultus, 12).

Foi há dez anos que os católicos de Lisboa e outros de vários pontos da Europa nos reunimos aqui, nesta magnífica igreja de Santa Maria de Belém, em várias sessões do Congresso Internacional para a Nova Evangelização. Como lembramos, a “nova evangelização” foi tema insistente do pontificado de São João Paulo II, que a queria «nova no ardor, nova nos métodos e nova nas expressões». Recordo também que, nesse ICNE de Lisboa, se insistia muito em comunidades acolhedoras e em missão urbana, de convite e companhia para todos.
Não é um tema esquecido e muito menos ultrapassado. Bento XVI retomou-o e o Papa Francisco também, com a particularidade, este último, de o ligar diretamente à misericórdia. Assim disse ainda há um mês, numa audiência ao Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, que encarregou de preparar o Jubileu: «A nova evangelização consiste nisto: adquirir consciência do amor misericordioso do Pai, a fim de nos tornarmos, também nós, instrumentos de salvação para os nossos irmãos» (L’ Osservatore Romano, ed. port., 4 de junho de 2015, p. 6).
Caríssimos ordinandos: Consciência do amor misericordioso do Pai, já a tendes decerto, pois só assim se explica este momento absoluto das vossas vidas entregues. De tal consciência decorre o único programa que levais: ser sacramento de Cristo Pastor para a salvação de quem O espera.
Nisto vos ajudará sempre a Mãe de Misericórdia, como também os Santos Pedro e Paulo. Assim prosseguireis seguros, na caridade pastoral de Cristo.

Santa Maria de Belém, 28 de junho de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
 Fonte: Patriarcado de Lisboa

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