28 junho, 2020

Homilia na Missa de Ordenações Sacerdotais


 
Um diálogo para toda a vida
Estimados irmãos e muito especialmente vós, caríssimos ordinandos:

Estarmos aqui hoje, vigília de São Pedro e São Paulo com os atuais condicionamentos e em ordenações sacerdotais, traz-nos necessariamente ao essencial.

Aí nos fixamos, sem rodeio nem demora: – Porquê a Igreja e porquê os padres? Para responder desde já: - Porque sim Cristo, porque sim o Evangelho e porque sim a tradição viva e católica em que nos incluímos.

Porque sim Cristo, como resposta de Deus ao mundo. O mundo, tudo aquilo que existe à nossa medida, permitindo-nos viver e conviver. O espaço-tempo de cada um e de cada coisa, tão inevitáveis como relativos. Como crentes, sabemos que é a criação divina, a respeitar e compartilhar. Sabemos e correspondemos, quando tomamos conta dos outros e das coisas, na medida da responsabilidade e competência próprias. Sempre que não é assim – e às vezes muito pelo contrário -, o mundo passa de possibilidade a impossibilidade, face ao que a vida exige, concebida ou enfraquecida que esteja, para a subsistência capaz e saudável de multidões inteiras.

Assim somos nós, enquanto mundo, tão magníficos como contraditórios. Para tal não precisaríamos de quanto aqui nos traz. E o que aqui nos traz é Cristo, como resposta de Deus ao mundo. Resposta cabal ao que o mundo mais profundamente anseia e redenção absoluta de quanto o impede.

Impressiona positivamente verificar como os mais antigos textos cristãos expressam tal verdade. Assim Jesus, falando a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). Assim o autor da Carta aos Hebreus, quase resumindo a nossa teologia: «Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo» (Heb 1, 2).

O percurso terreno de Cristo foi muito limitado em espaço – tempo, num Israel exíguo e em pouco mais de três décadas. Mas tão totalizado, das tábuas do presépio às da oficina de Nazaré e finalmente às da cruz, que preenche agora o espaço e o tempo de cada um de nós, redimidos de quanto os arruinaria e com ele eternamente sublimados. Saiu do Pai e veio ao mundo, para voltar do mundo para o Pai e nos levar consigo (cf. Jo 16, 28). Por isso estamos aqui, para “passar” com Cristo para o Pai, no plano final da sua Páscoa.

Para Paulo, foi completa a surpresa. Foi também total, pois lhe totalizou a vida. Naquela estrada de Damasco, em que o Ressuscitado o começou a ressuscitar a ele, Paulo encontrou-se a si próprio como significado e destino. Oiçamo-lo com atenção e pormenor: «… quando Aquele que me destinou desde o seio materno e me chamou pela sua graça Se dignou revelar em mim o seu Filho, para que eu O anunciasse aos gentios, decididamente não consultei a carne e o sangue…»

A “carne e o sangue” somos nós, como nos entendemos só por nós, e a nossa condição neste mundo. Podemos considerá-los bons, naturais e comuns. Assim gostamos dos nossos e somos capazes de gostar dos outros. O mundo está cheio de bons exemplos de solidariedade, que havemos de reconhecer e louvar, como o próprio Cristo o reconheceu e louvou, mesmo nos que não pertenciam ao seu grupo. 

Mas Cristo foi muito além desta ordem natural das coisas e do limite espontâneo dos afetos, preferindo os últimos e amando a todos por igual, de coração indiviso. É neste sentido que a opção preferencial pelos pobres ou o celibato por amor do Reino dos Céus assinalam o que vai além “da carne e do sangue”. Exigindo conversão permanente, são grande serviço da Igreja ao mundo, para que este não se encerre em si mesmo. Para que o mundo se converta na matéria do Reino e todo o bem se eternize, naquele amor que nunca acabará.  
  
Deus revela Cristo a Paulo e a revelação torna-se missão, para chegar a muitos. Revelação que aconteceu exterior e interiormente, não apenas a Paulo mas em Paulo. Como Deus nos chega em Cristo, assim Cristo chega aos outros através de nós, quando somos realmente seus. 

Estou certo, caríssimos ordinandos, que estais aqui em consequência do muito que vos chegou e cativou de Cristo na vida e exemplo de discípulos autênticos. E assim há de ser através vós, agora, com a graça do sacramento apostólico. Com São Paulo, não vos ficareis pelo modo mundano de considerar as coisas. O horizonte que se abriu na estrada de Damasco, há de rasgar-se também nas que trilhareis agora. 

Assim realizareis uma vocação que é muito mais do que mera escolha profissional. Como ouvimos a Paulo: «… quando Aquele que me destinou desde o seio materno e me chamou pela sua graça…». Olhai o vosso percurso a esta luz e agradecei-o muito a Deus, como nós o agradecemos convosco.

O que seja a missão, em qualquer lugar e circunstância que a Igreja nos coloque, está claro e patente noutro trecho escutado. Pedro e João subiram ao templo e encontraram um coxo de nascença a pedir esmola. Pedro «olhou fixamente para ele e disse-lhe: “Não tenho ouro nem prata, mas dou-te o que tenho: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda”».

Olhar atentamente para o outro que nos requer, tolhido que seja de corpo ou de espírito, e fazê-lo levantar-se e andar em nome de Cristo, tem muitas concretizações hoje como então.

Era coxo de nascença aquele homem. E não faltam tolhimentos hoje em dia, impedindo de andar perfeitamente. Limitações físicas, nalguns casos, que pedem resposta clínica competente. Mas outras se acrescentam, de ordem educativa e cultural, quando alguma ideologia ou preconceito contrariam a formação e o crescimento num quadro geral de valores humanizantes. Valores como os que incluem o respeito pela vida, concebida ou fragilizada que esteja, a complementaridade essencial homem – mulher, a igual dignidade de todos, ou a abertura à religião transcendente. Omitir ou contrariar tais valores deforma e entorpece qualquer um e desde muito cedo infelizmente. Já o verificava o Papa Francisco no início do seu pontificado, ao escrever: «Com a negação de toda a transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado, e tudo isso provoca uma desorientação generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da adolescência e da juventude» (Evangelii Gaudium, 64).

Àquele homem que pedia esmola, os apóstolos responderam com a oferta do nome de Jesus. E olhando atentamente a evolução do pensamento e da prática nestes dois últimos milénios, não será difícil verificar como o seu nome, na força do que disse e do que fez, foi gerando o melhor da humanidade que nos chegou. 

Caros ordinandos: É desta tradição viva que sereis especiais transmissores, guardando o depósito que vos é confiado, como Paulo exortou o seu discípulo Timóteo (cf. 1 Tm 6, 20). Para que na vossa própria conduta e pregação, na resposta que dareis a tanto brado, ressalte sempre e em tudo o nome de Jesus, a verdade do Evangelho e o fulgor da caridade mais atenta.

Tal sucederá pela razão de aqui estardes: o amor verdadeiro, intenso e pleno a Cristo, que vos toca o coração, com a vontade de lhe corresponder em tudo. É esta a única razão do vosso ministério, que só assim vos é sacramentalmente concedido. Retomai diariamente o diálogo de há pouco: «Pedro respondeu-Lhe: Senhor, Tu sabes tudo, bem sabes que Te amo”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas”».

 Não precisareis doutro motivo para vos encher o coração e a vida. E, através de vós, a de muitos.

Santa Maria de Belém, 28 de junho de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca 
        
Foto: Arlindo Homem
 
 
Patriarcado de Lisboa

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