13 junho, 2020

Homilia de D. Américo Aguiar na peregrinação internacional aniversária (13 de junho), Santuário de Fátima



Reaprender a gramática da hospitalidade

1. “Voltaremos… Sim, voltaremos! É a nossa confiança e o nosso compromisso, hoje. Voltaremos, juntos aqui, em ação de graças, para te cantar: ‘aqui vimos, mãe querida, consagrar-te o nosso amor’!”1 Foram estas as inspiradoras palavras com que o senhor Cardeal Marto encerrou a peregrinação aniversária de Maio passado.

Nessa mesma celebração ouvíamos do nosso querido Papa Francisco: “Com estas minhas palavras, queria apenas tranquilizar-vos a respeito da companhia que vos faz a nossa Mãe do Céu. Hoje conseguimos, através apenas da alma e do coração, fazer a ligação à Virgem Maria; e somos limitados! Tão limitados, tão pequeninos que um inesperado vírus pôde facilmente transtornar tudo e todos... Nossa Senhora é pequenina como nós, ela abandonou-Se a Deus e Ele engrandeceu-A, fazendo-A Mãe sua e nossa. Hoje, gloriosa em corpo e alma, toda Ela é um coração materno ocupado e preocupado em restabelecer a sua ligação connosco e a nossa ligação com Deus. Não esqueçais a sua promessa de 13 de junho de 191 7: «O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus»2


E aqui chegamos, hoje… voltando, regressando… desconfinando…enchemos com as nossas preces este Altar do mundo, dirigimos o nosso olhar à imagem de Nossa Senhora de Fátima que completa cem anos de existência (foi encomendada por um devoto de Torres Novas, Gilberto Fernandes dos Santos, à Casa Fânzeres, de Braga e obra do santeiro José Ferreira Thedim) e vemos duas crianças, os santos Francisco e Jacinta Marto com quem temos tanto para aprender. Tal como acontece com o Evangelho que escutamos, que nos coloca perante a sabedoria de uma criança: o episódio do Menino Jesus que no templo ensina aos doutores da Lei (Lc 2,46) como se deveria ler o Livro da Escritura.


2. Ensinar e aprender… Partindo disto, o mote bíblico deste ano do Santuário de Fátima interpela-nos com o mandamento petrino: «Sede santos» (1Pe 1,15). De facto, antes da grande mudança eclesiológica do Vaticano II em 1965, pensava-se que a santidade era um propósito apenas para os bispos, padres e religiosas. Mas este Concílio trouxe-nos uma novidade: todo o ser humano é chamado à santidade3


O Papa Francisco deixa-nos uma expressão bela ao falar da «classe média da santidade», no sentido de que a santidade não é somente uma certeza escatológica, mas uma realidade que se vive aqui e agora no nosso quotidiano4. E há três anos atrás, o Papa disse-nos que a Virgem Maria não apareceu aqui em Fátima para que a víssemos, mas para nos recordar a «Luz de Deus que nos habita e cobre»5. A santidade não é, portanto, a recompensa final de uma vida cristã, mas um caminho gradual de identificação com a pessoa de Jesus6, guiados por esta luz de Deus. 


3. Uma das grandes lições que a humanidade aprendeu com o covid-19 é que os nossos pequenos gestos podem ter uma consequência não só em relação a quem está próximo, mas também comunitária e mesmo até universal. Perante isto, todos teremos de reaprender a «gramática da hospitalidade»: somos responsáveis pela saúde, o bem-estar, a alegria e a salvação dos outros! A hospitalidade é um ato racional permanente de acolhimento do outro. E o «grau de civilização de uma sociedade pode medir-se precisamente em função da sua hospitalidade»7


Aliás, a nossa União Europeia, terá de perceber que já não basta ser aquela original comunidade económica e política, mas terá de dar o passo seguinte: ser uma verdadeira comunidade humana, mais hospitaleira, determinada no combate solidário às consequências económicas e sociais desta pandemia, decidida no acolhimento de todos e apostada no respeito pela casa comum que todos habitamos. 


Que a solidariedade europeia não seja uma urgência pandémica mas uma marca da sua identidade! Que a ajuda entre povos e países europeus não resulte do medo provocado por um vírus, mas seja um ímpeto do humanismo e da matriz cristã que caracteriza o velho continente. Só com essa determinação asseguramos o nosso futuro e o das gerações vindouras, feito cada vez mais do encontro entre povos, culturas e religiões.


Tal como no evangelho que escutamos: por vezes, pensamos que por sermos doutores da lei, doutores da sociedade, da política, da economia, do progresso, doutores da vida... já não temos nada a aprender com os mais novos, já não temos nada a aprender com aquele menino Jesus (Rm 5,18)! 


Este é um grande risco que corremos, quando pensamos, que já nada temos a aprender, sobretudo com as crianças. E recordo aqui a alegria de ver este recinto cheio de crianças a cada dia 10 de Junho. Este ano foi diferente, mas cá voltarão para o ano, se Deus quiser! Sim, voltarão…


4. Hoje, aquilo que certamente Deus nos pede para esta nova fase da humanidade, a pós-globalização, é somente isto: uma santidade que consiste em acolher com hospitalidade o outro, vítima do efeito socioeconómico desta pandemia. Pois, como escutávamos na primeira leitura, o maior tesouro que temos para oferecer ao mundo é a esperança (Jdt 13,19).
Ouvimos o Cardeal Tolentino dizer que “Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”8.


Quando olhamos a biografia dos três pastorinhos de Fátima, vemos como Deus escolhe as crianças para nos comunicar verdades profundas (Mt 18,1-6). Quando lemos e conhecemos a história de vida da Irmã Lúcia somos convidados a valorizar a importância e urgência de uma relação inter-geracional… não permitamos que nos dividam entre novos e velhos, pobres e ricos, brancos e pretos, do norte e do sul, azuis ou vermelhos… não deixemos que a nossa velha Europa se queira esquecer, arrancar-se das suas raízes… até aqui chegamos… à Pandemia.


Disse-nos o Papa Francisco naquele inesquecível fim de tarde “Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”9. Como descrevia a irmã Lúcia, somos habitados por uma graça que nos faz ver Deus em nós10.


Agora talvez possamos entender melhor a urgência de uma economia nova, de Francisco, que não mate. Agora talvez possamos entender melhor a urgência destas palavras do Papa Francisco “Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspetos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais”11.


5. Para terminar, nossa querida Senhora de Fátima: hoje queremos agradecer-Te por nos recordares que não estamos abandonados à nossa sorte neste mundo12, mas que temos uma Mãe. E, como se cantava no salmo (Lc 1,46-52), é esta maravilha que temos a anunciar ao mundo:

Que...
Temos uma Mãe, para os jovens e os mais idosos! Para os pobres e os abandonados!Para os doentes e as pessoas com debilidade!Temos uma Mãe, para os que perderam o emprego! Para os que desesperam pelo perdão!Para os refugiados da guerra e as vítimas de injustiça!Temos uma Mãe, para todos os emigrantes que vivem longe das suas mães!Para os que perderam a esperança num mundo melhor!Para os que deixaram de acreditar no Crucificado!Temos uma Mãe, para todos os peregrinos que buscam o sentido de Deus!Para todos os heróis anónimos no combate ao covid-19!E, por causa desta pandemia, temos também uma Mãe para todos os filhos que perderam a sua mãe, e para todas as mães que perderam os seus filhos!


Mãe continua a guardar tudo e todos no teu Imaculado Coração.


† Américo Aguiar, Bispo Auxiliar de Lisboa

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1 Cfr. ANTÓNIO MARTO, Homilia na Missa do Santuário de Fátima do dia 13 de maio de 2020
2 Cfr. PAPA FRANCISCO, Carta aos Peregrinos de Fátima, 8 de maio 20203 Lumen Gentium, 32.4 PAPA FRANCISCO, Gaudete et Exsultate, 7.5 Cfr. PAPA FRANCISCO, Homilia na Santa Missa com o Rito da Canonização dos Beatos Francisco e Jacinta Marto, 13 de maio de 2017.6 Cfr. JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA, Elogio da Sede, 103.7 BYUNG-CHUL HAN, A expulsão do Outro, 28.8 Cfr Cardeal Tolentino Mendonça, Discurso do Dia de Portugal, Mosteiro dos Jerónimos, 10 de junho de 20209 PAPA FRANCISCO , Momento Extraordinário de Oração em tempo de Pandemia, Praça de S. Pedro, 27 de março de 202010 Cfr. Memórias da Irmã Lúcia IV, Aparições de 13 de maio, 174.11 PAPA FRANCISCO, Laudato Si, 13712 Cfr. ANTÓNIO MARTO, Fátima. Mensagem de misericórdia e de esperança para o mundo, 21.


Foto: Arlindo Homem

Patriarcado de Lisboa

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