31 maio, 2015

Homilia no Dia da Igreja Diocesana



Já naquele tempo, perguntou Moisés à sua gente: «Que povo escutou como tu a voz de Deus a falar do meio do fogo e continuou a viver?». Assim ouvimos na primeira leitura, certamente ecoando a experiência do próprio Moisés, que ouvira o Senhor na sarça ardente; e de todo o povo, diante do Sinai estremecido e fumegante.
Hoje como então, não nos seria fácil admitir que um Deus imenso falasse a seres tão pequenos, a não ser porque dois mil anos de Cristo nos ensinaram – e do culto crente para a cultura geral – que Deus pode realmente comunicar-se ao comum dos mortais, usando linguagens e símbolos muito relativos para se comunicar a Si mesmo, absoluto que é.   Isto nos ensina que a verdade de Deus é ser amor, ou seja, comunicação em Si mesmo e para todos, encontrando o modo comezinho e habitual de se fazer entender, como é próprio de quem se quer realmente comunicar.
No caminho sinodal que vamos seguindo em Lisboa, tudo se traduz em comunicação e modo certo de a fazer - o que é muito bom sinal de coincidência com Deus e os seus propósitos. Na verdade, se, trimestre após trimestre, milhares de diocesanos – ordenados, consagrados e leigos – vamos rezando, refletindo e ensaiando os capítulos sucessivos da exortação apostólica Evangelii Gaudium, outro objetivo não temos senão esse mesmo de encontrar o melhor modo de levar a todos e a cada um o que nós próprios recebemos, isto é, a vida de Cristo, Verbo incarnado, Deus comunicado, Palavra divina que humana se fez e tão concretamente disse, viva e eficazmente disse. Ou seja, para chegarmos àquela “terra” inteira cujos confins estão por vezes bem perto, nas várias periferias existenciais que importa atingir e cristamente preencher. Assim nos tornaremos «discípulos missionários» - palavras redundantes, pois ouvir a Cristo é ecoá-Lo também. E necessariamente assim, uma vez que, na sua humanidade, é Deus que nos fala e, repetimo-lo, Deus é comunicação absoluta. Quem realmente O ouve, imediatamente O comunica, passando da escuta à missão - e sem deixar de escutar, para missionar ainda mais.

- Que importante é este ponto, caríssimos irmãos e irmãs, aqui reunidos para celebrarmos a nossa Igreja Diocesana, à luz de Deus uno e trino! Localiza-se no Patriarcado – como em qualquer outra diocese do mundo – a verdade total do Deus que se comunica no corpo eclesial de Cristo, pelo impulso comum do Espírito que nos deixou. Foi aos setenta e dois, isto é, a nós todos, que Jesus disse e continua a dizer: «Quem vos ouve a mim ouve». Oiçamo-Lo primeiro e logo O comunicaremos também, vivendo e dando a viver as parábolas em que o seu Reino se traduz.
Mas oiçamo-Lo realmente primeiro. Coisa nada fácil em tempos tão mediáticos como os nossos, com o risco de mais nos perdermos num atordoante ruído do que realmente escutarmos alguma coisa ou alguém. Comunicação exige receção e resposta. Na unitrindade divina, isso está absolutamente garantido, pois a vida que está no Pai é inteiramente dada ao Filho, que inteiramente Lha retribuiu, na plena circulação do Espírito.
Importa que aconteça connosco, como sucedeu com Moisés. Certo dia, ardeu a sarça, e ardendo o chamou. Como depois no Sinai, fumegante também, foi o som de Deus. Num caso e noutro, nem morreu Moisés, nem morreu o povo. Bem pelo contrário, sempre que perdurou a atenção, existiu um “povo de Deus”, realmente assim e como sinal para todos, outro modo de dizer em missão.
Importante é agora que em cada comunidade - familiar, paroquial, consagrada ou outra -, demos todo o espaço e prestemos toda a atenção à Palavra divina, que arde como fogo, forte e incontido. Assim recebemos Cristo, como recebemos Deus, no fulgor do Espírito. Assim faremos de cada comunidade uma sarça ardente e outro Sinai, onde Deus sempre falará, como falou então. Assim temos de ser nós, para sermos realmente alguma coisa, de Deus para o mundo.
E sem medo de Deus, cujo fogo é amor. De Deus, que em Cristo se fez tão à nossa medida, e partilhou o Espírito, para podermos crescer até à sua. Ouvimo-lo a Paulo, na segunda leitura, traduzindo o âmago da nossa vida em Deus: «Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para recair no temor, mas o Espírito de adoção filial, pelo qual clamamos: “Abbá, Pai”.»    

Caríssimos consagrados e consagradas, que hoje tão especialmente referimos, contando muito convosco no caminho sinodal de Lisboa. Vários e complementares são os vossos carismas, mas todos fazem de vós outros tantos registos do único som divino, que tanto ressoou na vida dos vossos fundadores e fundadoras, como a Igreja acolheu, para que a missão continue:Um carisma de especial consagração e missão é sempre um modo de Cristo falar com oportunidade e destaque. Peço-vos muito que mantenhais esse som reconhecido e próprio, na harmonia geral da missão da Igreja, hoje como ontem - aqui, mais além, ou de novo aqui. Como cantamos no hino sinodal: «É o sonho missionário / De chegar a toda a gente. / Longe ou perto, o necessário / É mostrar Cristo presente!»

A conclusão do Evangelho de Mateus, como há pouco ouvimos, não podia ser mais indicativa da natureza missionária da religião que professamos, em Deus uno e trino. Foi dito aos Onze, mas implica-nos certamente a todos, segundo o ministério e o carisma de cada um: «Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei. Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
Nestas palavras está tudo o que importa, para que a Igreja seja Igreja e a missão seja missão, como há de acontecer cada vez mais entre nós: A ordem de ir (ou sair); a participação desse modo na vida trinitária de Deus (em que Pai e Filho de si mesmo saem para se encontrarem no Espírito); e a presença de Cristo entre nós, como Palavra recebida e ativa. Oiçamo-la sempre e atentamente, para cada vez mais a transmitirmos. - E assim mesmo se concretizará aquele «sonho missionário de chegar a todos», com que o Papa Francisco tão felizmente nos empola agora!

Lisboa, 31 de maio de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa

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