25 dezembro, 2014

Missa do Dia de Natal na Sé de Lisboa

 O passado que contemplamos é o presente que continuamos

O Natal, irmãos caríssimos, é tão verdadeiro e belo que nenhuma comemoração o esgota, nenhuma reflexão o abrange, nenhuma palavra o exprime por completo. Sucedem-se os anos que Deus nos deu e nunca conseguimos receber à altura o próprio Deus que a si mesmo se dá, no Verbo incarnado em que se exprime.

Só em Deus tudo foi, é e permanece absolutamente “dito e feito”, em plena coincidência de palavras e ações. Daqui decorre para nós, adoradores do presépio, a mais exigente das coerências, como reconstrutores do mundo, deste mundo concreto, de esplendor tão sofrido.
Nenhuma data concitou na tradição cristã mais expandida – religiosa ou culturalmente expandida – tal concurso das mais diversas artes, literárias, musicais e plásticas, eruditas e populares. Nenhum acontecimento sugeriu tantos outros, nas famílias, nas comunidades e em nações inteiras, tomando uma criança nascida como forma e figura da esperança mais profunda de todos.
A liturgia cristã desdobra-se em alusões e sinais na cíclica roda dos anos. Tem o seu centro na Páscoa, que irradia e desdobra. Mas o Natal mantém sempre a surpresa e o espanto da aventura divina no mundo, como se manifestou ao princípio e já apontava o fim. O despojamento de Deus naquela criança que Ele realmente foi, concluiu-se na cruz onde absolutamente se deu. Mas ali mesmo, no presépio de Belém, era já a inocência retomada e a recriação do mundo. Ali mesmo, nascido de Maria e guardado por José, abismados os dois no mistério que nela perpassara, no mistério que ele adotara.
Sendo o Natal assim, o que mais houve naquela noite foi um imenso silêncio que só os anjos quebraram, ou melhor, reforçaram, pois era o próprio Deus que ali se dizia. Silêncio, atenção profunda que mantemos já em pleno dia, mesmo nos cânticos que entoamos.
Chamemos a isto “dignidade humana”, com a dimensão inteira que Deus humanado lhe confere. Porque «o Verbo fez-se carne e habitou entre nós» - e também em nós, em cada um de nós e dos outros, todos os outros, como Natal continuado. Ao dizermos “carne”, dizemos o que somos, enquanto humanidade feliz e sofredora, ridente ou chorosa, saudável ou enferma, e tal e qual assim, como em nós e nos outros, sem omitir os momentos nem excluir ninguém. Aqui se encontrou Deus connosco, na vida daquele menino, depois jovem e adulto, do presépio à cruz. Aqui, indispensavelmente aqui, pois que riu e chorou, viveu e tomou por dentro o que só com Deus podemos ser ou voltar a ser. Como não Lhe chegaríamos nunca, chegou Ele próprio até nós, indissoluvelmente agora.
E somam-se as consequências. No modo de vermos a Deus e no modo de nos vermos a nós e aos outros, a nós com os outros e a partir dos outros – como certamente Maria, José, os pastores e os magos, se reviram e redescobriram no divino olhar daquele menino tão humano, o «eterno menino de ainda agora», como lhe chamou um dos nossos clássicos. Ainda hoje espanta como se pôde acusar o cristianismo de alienação, quando é precisamente o contrário, como incarnação de Deus na humanidade mais real e comezinha. Quando o presépio de Belém é agora a casa de toda a gente e mesmo – muito especialmente – a dos que a não têm, ou perderam entretanto.
Mas, se ainda espanta, é certo que também dói, no que tem de omissão nossa, sempre que não dissemos nem testemunhamos a incarnação divina, falando de Deus como se O não reconhecêssemos em Cristo, como realmente foi e enquanto “Deus connosco”.
Não nos faltam, porém, e muito felizmente, exemplos e estímulos de incarnação continuada em pessoas, famílias e grupos que continuam e ativam o Natal de Cristo no mundo, a incarnação de Deus na carne viva duma humanidade que sofre e que espera.
- Que dizer do nosso Papa Francisco e da sua constante preocupação por aproximar-se e aproximar-nos a nós de todas as periferias deste mundo, outras tantas Beléns com seus presépios vivos?! – Que dizer, neste ano da vida consagrada, daquelas comunidades religiosas que não desistem de estar presentes em meios socialmente difíceis e até os procuram, para serem sinais dum Deus que não desiste de incarnar? – Que dizer de tantas famílias, onde esta demorada crise reforçou laços de cuidado mútuo e intergeracional? – Que dizer de paróquias e outras agregações e instituições cristãs que redobram esforços para responder às mais diversas necessidades, de ontem ou agora? – Que dizer de tanto homem e mulher de boa vontade, que não deixa fechar o coração nem cair os braços, com uma persistência em que o próprio Criador certamente se revela?!

Incarnar, incarnar sempre, incarnar mais, continuando e até aumentando um Natal que o próprio Jesus enunciou assim, em “discurso de despedida”: «Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória do Pai. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei.» (Jo 14, 12-14).
Peçamos então, irmãos caríssimos, peçamos sempre e também agora, junto do presépio de Belém, alargado ao presépio do mundo. Peçamos a Jesus, Verbo de Deus incarnado, que por nós e no seu Espírito, continue a obra da verdadeira salvação, que só acontecerá com a mudança profunda do coração de cada um, para chegar ao coração de todos, ao coração duma história verdadeiramente humana, duma história finalmente divina.
Celebremos o Natal, hoje e nos dias que se seguem, num tempo litúrgico particularmente belo. Mas por isso mesmo exigente, com a intensa beleza das coisas verdadeiras e plenas de vida e convivência autêntica. Os Evangelhos da Infância são realmente belos, vazando a história da Sagrada Família em páginas da melhor literatura bíblica e teológica, porque tudo era pouco para falar de “Deus connosco”.
São palavras que “salvam”, porque nos curam e incluem na história de Deus no mundo. Do presépio à apresentação no templo, da fuga para o Egito ao regresso à terra, do reencontro no templo, já adolescente, à oficina de José… Tudo era Jesus, e Deus no mundo, para O acolhermos agora na vida que nasce, e com todo o “direito” a nascer; nas famílias que nos merecem o mais sério e até religioso dos cuidados; nos refugiados, como Jesus menino também foi; nas crianças e jovens que hão de crescer igualmente «em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52); no trabalho que os realize depois, como Jesus iniciou a reconstrução do mundo na oficina de Nazaré da Galileia.    
Sim, amados irmãos e irmãs, «o Verbo fez-se carne e habitou entre nós». Mas o passado que contemplamos é agora o presente que continuamos. Pois a glória que trouxe é hoje a esperança do mundo.

+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2014


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