(RV) O jornal de rua holandês “Straatniews”em Utrecht, na Holanda, publicou na sua mais recente edição uma entrevista com o Papa Francisco, realizada no dia 27 de outubro. Este jornal é desenvolvido por jornalistas, fotógrafos e ilustradores voluntários e é vendido por moradores de rua, entre os quais alguns migrantes. As edições do Straatniews também chegam a cidades importantes como Haia, Roterdão e Amsterdão.
Publicamos um excerto dessa entrevista traduzida pelo Programa Brasileiro da Rádio Vaticano:
É ainda cedo quando nos apresentamos diante de um dos portões de
serviço do Vaticano, à esquerda da Basílica de São Pedro. Os
guardas-suíços sabem na nossa chegada e nos deixam passar. Temos que ir
até a Casa Santa Marta, porque é lá que vive o Papa Francisco. A Casa
Santa Marta é, provavelmente, o hotel três estrelas mais particular do
mundo. Um grande edifício branco onde pernoitam cardeais e bispos que
trabalham no Vaticano ou que se encontram de passagem e que também é a
residência dos cardeais durante o Conclave.
Aqui também sabem da nossa chegada. Duas senhoras na recepção, como
em qualquer hotel, gentilmente nos indicam uma porta lateral. A sala do
encontro já havia sido preparada. Um espaço grande com uma escrivaninha,
um sofá, algumas mesas e cadeiras: este é o lugar em que o Papa recebe
seus convidados “informais”. Tem início a espera. Marc, um dos
vendedores do Straatnieuws, é o mais tranquilo de todos e aguarda,
sentado, o que acontecerá.
De repente, aparece o fotógrafo oficial do Pontífice. “O Papa está chegando”, nos sussurra.
E, antes mesmo que percebêssemos, entra na sala: Papa Francisco, o
líder espiritual de 1,2 bilhão de católicos. Traz consigo um grande
envelope branco. ‘Sentem-se, amigos’, nos diz fazendo um gesto gentil
com a mão. ‘Que satisfação encontrá-los’. O Santo Padre dá a impressão
de ser um homem calmo e amigável, mas ao mesmo tempo enérgico e preciso.
Uma vez sentados, desculpa-se pelo fato de não falar holandês. O
desculpamos imediatamente.
Straatniews – As nossas entrevistas começam sempre com uma pergunta
sobre a rua na qual o entrevistado cresceu. O senhor, Santo Padre, o que
se lembra daquela rua? Que imagens lhe vêm à mente pensando nas ruas de
sua infância?
Papa Francisco – Desde quando tinha 1 ano até quando entrei no
seminário, vivi na mesma rua. Era uma rua simples de Buenos Aires, casas
baixas. Havia uma pracinha onde jogávamos bola. Me lembro que fugia de
casa e ia jogar bola com os meninos depois da escola. Meu pai trabalhava
em uma fábrica a 100 metros dali. Era contador. Meus avós viviam a 50
metros. Todos a poucos passos. Me lembro também o nome das pessoas, como
padre fui dar os sacramentos, o último conforto a tantos, que me
chamavam e eu ia porque gostava deles. Estas são as minhas recordações
espontâneas.
S – O senhor jogava bola?
Papa – Sim
S – Era bom?
Papa – Não. Em Buenos Aires quem jogava como eu era chamado de ‘pata
dura’. Quer dizer, o mesmo que ter duas pernas esquerdas. Mas eu jogava,
era goleiro muitas vezes.
S – Como nasceu seu empenho pessoal pelo pobres?
Papa – Sim, tantas recordações me vêm à mente. Me impressionou muito
uma senhora que vinha à minha casa três vezes por semana para ajudar
minha mãe. Por exemplo, ajudava na lavanderia. Ela tinha dois filhos.
Eram italianos, sicilianos, e viveram a guerra, eram muito pobres, mas
muito bons. Sempre mantive a recordação daquela mulher. A sua pobreza me
impressionava. Nós não éramos ricos, chegávamos ao fim do mês
normalmente, mas não além. Não tínhamos um carro, não tirávamos férias
ou coisas assim. Mas a ela muitas vezes faltavam as coisas necessárias.
Nós tínhamos o suficiente e minha mãe lhe dava as coisas. Depois, ela
voltou para a Itália, e voltou de novo para a Argentina. Encontrei-a
novamente quando era arcebispo de Buenos Aires, ela tinha 90 anos. E eu a
acompanhei até a morte, aos 93 anos. Um dia, ela me deu uma medalha do
Sagrado Coração de Jesus que até hoje ainda trago comigo. Esta medalha –
que também é uma recordação – me faz muito bem. Queres ver?
(Com certa dificuldade, o Papa consegue tirar a medalha, completamente descolorida depois de ser usada por anos).
Assim, penso nela todos os dias e o quanto sofreu pela pobreza. E penso a todos os outros que sofreram. Carrego e rezo...
S – Qual é a mensagem da Igreja para os sem-teto? O que significa a solidariedade cristã para eles, concretamente?
Papa – Penso em duas coisas. Jesus veio ao mundo sem-teto e se fez
pobre. A Igreja quer abraçar a todos e dizer que é um direito ter um
teto sobre você. Nos movimentos populares trabalha-se com três ‘t’
espanhóis, trabalho, teto, terra. A Igreja predica que todas as pessoas
têm direito a estes três ‘t’.
S – O senhor pede com frequência atenção aos pobres e refugiados. Não
acredita que assim possa criar uma forma de cansaço nos meios de
comunicação e na sociedade em geral?
Papa – A todos nós vem a tentação – quando se fala de um tema que não
é agradável, porque é desagradável falar – de dizer: ‘Chega, isso cansa
demais’. Eu sinto que o cansaço existe, mas não me preocupo. Devo
continuar a falar das verdades e de como as coisas são.
S – É o seu dever?
Papa – Sim, é o meu dever. Sinto isso dentro de mim. Não é um mandamento, mas como pessoas, todos devemos fazer.
S – Não teme que a sua defesa da solidariedade e da ajuda aos
sem-teto e outros pobres possa ser instrumentalizada politicamente? Como
a Igreja deve falar para ser influente e, ao mesmo tempo, ficar de fora
dos alinhamentos políticos?
Papa – Existem estradas que levam a erros neste ponto. Gostaria de
destacar duas tentações. A Igreja deve falar com a verdade e também com o
testemunho: o testemunho da pobreza. Se um fiel fala da pobreza ou dos
sem-teto e leva uma vida de faraó: isso não se pode fazer. Esta é a
primeira tentação. A outra é de fazer acordos com os governos.
Acordos podem ser feitos, mas devem ser acordos claros,
transparentes. Por exemplo, nós administramos este edifício, mas as
contas são todas controladas, para evitar a corrupção. Porque há sempre a
tentação da corrupção na vida pública. Seja política, seja religiosa.
Recordo que uma vez, com muito pesar, vi – quando a Argentina sob o
regime militar entrou na guerra contra a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas
– que as doações, e vi que muitas pessoas, também católicos, que
estavam encarregados de distribui-las, as levavam para casa. Existe
sempre o perigo da corrupção. Uma vez fiz uma pergunta a um ministro
argentino, um homem honesto. Ele que deixou o cargo porque não podia
concordar com algumas coisas um pouco obscuras. Lhe fiz a pergunta:
quando vocês enviam ajudas, seja alimento, vestido, dinheiro, aos pobres
e aos indigentes: aquilo que mandam, quanto chega realmente? Me disse:
35%. Significa que 65% se perde. É a corrupção: um pedaço para mim, um
outro pedaço para mim.
S – Acredita que até agora no seu Pontificado pôde obter uma mudança mental, por exemplo, na política?
Papa – Não sei o que responder. Não sei. Sei que alguns disseram que
eu era comunista. Mas é uma categoria um pouco antiquada (risos). Talvez
hoje se utilizem outras palavras para dizer isto...
S – Marxista, socialista...
Papa – Disseram tudo isso.
S – Os sem-teto têm problemas financeiros, mas cultivam a própria
liberdade. O Papa não tem nenhuma necessidade material, mas é
considerado por alguns como um prisioneiro no Vaticano. Não sente nunca o
desejo de se colocar nas vestes de um sem-teto?
Papa – Lembro do livro de Mark Twain ‘O príncipe e o pobre’, quando
alguém pode comer todos os dias, tem roupas, uma cama para dormir, uma
escrivaninha para trabalhar e não falta nada. Tem até mesmo amigos. Mas
este príncipe de Mark Twain vive numa gaiola de ouro.
S – O senhor se sente livre aqui no Vaticano?
Papa – Dois dias depois de ser eleito Papa, eu fui (na versão em
holandês: “como se costuma dizer oficialmente”) tomar posse do
apartamento papal, no Palácio Apostólico. Não é um apartamento de luxo.
Mas é amplo, é grande... Depois de ter visto este apartamento me parecia
um funil ao contrário, isto é, grande, mas com uma pequena porta. Isto
significa estar isolado. Eu pensei: não posso viver aqui, simplesmente
por razões mentais. Iria me fazer mal. No início, parecia uma coisa
estranha, mas eu pedi para ficar aqui, na Casa Santa Marta. E isso é bom
para mim, porque eu me sinto livre. Eu almoço e janto no refeitório
onde todos comem. E quando chego com antecedência, faço as refeições com
os funcionários. Encontro pessoas, eu as saúdo e isso faz com que a
gaiola de ouro não seja tanto uma gaiola. Mas eu sinto falta da rua.
S – Santo Padre, Marc quer convidá-lo para sair e comer uma pizza conosco. O que o senhor acha?
Papa – Eu gostaria, mas não conseguiremos fazer isso. Porque no
momento que eu sair daqui as pessoas virão até mim. Quando eu fui mudar
as lentes dos meus óculos na cidade, eram 7 da noite. Não havia muitas
pessoas na rua. Levaram-me ao ótico e quando sai do carro havia uma
mulher que me viu e gritou: “É o Papa”. E então eu estava dentro e fora,
tanta gente...
S – Faz falta o contato com as pessoas?
Papa – Eu não sinto falta porque as pessoas vêm aqui. Toda
quarta-feira eu vou à Praça para a Audiência Geral, às vezes eu vou a
uma paróquia: estou em contato com as pessoas. Por exemplo, ontem (26 de
outubro) vieram mais de 5 mil ciganos à Sala Paulo VI.
S – Pode-se ver que o senhor gosta desta volta na praça durante a Audiência geral ...
Papa – É verdade. Sim, é verdade.
S - O seu homônimo São Francisco escolheu a pobreza radical e vendeu
também o seu Evangelho. Como Papa, e Bispo de Roma, o senhor não se
sente às vezes sob pressão para vender os tesouros da Igreja?
Papa – Esta é uma pergunta fácil. Não são os tesouros da Igreja, mas
são os tesouros da humanidade. Por exemplo, se eu amanhã digo que a
Pietà de Michelangelo será leiloada, não é possível, porque não é de
propriedade da Igreja. Está em uma igreja, mas é da humanidade. Isso se
aplica a todos os tesouros da Igreja. Mas nós começamos a vender
presentes e outras coisas que são dadas para mim. E os rendimentos da
venda vão para Dom Krajewski, que é meu elemosineiro. E depois tem
também a loteria. Há carros que foram vendidos ou cedidos em uma
loteria, e os recursos recolhidos utilizados para os pobres. Há coisas
que se podem vender e essas se vendem.
S – O senhor percebe que a riqueza da Igreja pode criar este tipo de expectativas?
Papa – Sim, se fizermos um catálogo dos bens da Igreja, se pensa: a
Igreja é muito rica. Mas quando foi feito a Concordata com a Itália em
1929 sobre a Questão Romana, o governo italiano daquele tempo ofereceu à
Igreja um grande parque em Roma. O papa na época, Pio XI, disse: não,
eu gostaria apenas de meio quilômetro quadrado para garantir a
independência da Igreja. Este princípio vale ainda hoje. Sim, os bens
imóveis da Igreja são muitos, mas nós os usamos para manter as
estruturas da Igreja e para manter muitas obras que são feitas em países
necessitados: hospitais, escolas. Ontem, por exemplo, eu pedi para
enviar ao Congo 50 mil euros para construir três escolas em lugares
pobres; a educação é uma coisa importante para as crianças. Eu fui à
administração competente, fiz este pedido e o dinheiro foi enviado.
S - Vamos falar sobre a Holanda. O senhor nunca esteve em nosso país?
Papa – Sim, uma vez quando eu era superior provincial dos jesuítas na
Argentina. Estava de passagem durante uma viagem. Eu fui a Wijchen,
porque ali havia o noviciado, e também fui a Amsterdã por um dia e meio,
onde visitei uma casa dos jesuítas. Sobre a vida cultural não vi nada
porque eu não tinha tempo.
S – Por isso poderia ser uma boa ideia se os sem-teto da Holanda
convidassem o senhor para uma visita ao nosso país. O que a acha, Santo
Padre?
Papa – As portas não estão fechadas a essa possibilidade.
S - Então, quando haverá um pedido desta natureza, o senhor vai levá-lo em consideração?
Papa – Eu o considerarei. E agora que a Holanda tem uma rainha argentina (risos), quem sabe.
S - Alguma mensagem especial para os sem-teto em nosso país?
Papa – Eu não conheço bem a situação dos sem-teto na Holanda. Eu
gostaria de dizer que a Holanda é um país desenvolvido com tantas
possibilidades. Eu pediria aos sem-teto holandeses para continuarem a
lutar pelos três 't'.
Na conclusão, também Marc faz algumas perguntas. Ele quer saber,
entre outras coisas, se o Papa quando era criança sonhava em se tornar
Papa. O Papa respondeu com um firme "não".
Papa – Eu faço uma confidência. Quando eu era pequeno não havia lojas
que vendiam coisas. Em vez disso, havia o mercado onde se encontrava o
açougueiro, o verdureiro e assim por diante. Eu fui lá com minha mãe e
minha avó para fazer compras. Eu era pequeno, eu tinha quatro anos. E
uma vez me perguntaram: O que você gostaria de ser quando crescer? Eu
disse: açougueiro!
S - Para muitos, até 13 de março de 2013 o senhor era uma pessoa
desconhecida. Em seguida, de um momento para outro, se tornou famoso em
todo o mundo. Como viveu essa experiência?
Papa – Chegou e não esperava isso. Eu não perdi a paz. E isso é uma
graça de Deus. Eu não penso muito no fato de que sou famoso. Eu digo
para mim mesmo: agora eu tenho um lugar importante, mas em dez anos
ninguém mais vai me reconhecer (risos). Você sabe, existem dois tipos de
fama: a fama dos “grandes” que fizeram grandes coisas, como Madame
Curie, e a fama dos vaidosos. Mas essa última fama é como uma bolha de
sabão.
S - Então, o senhor diz "agora eu estou aqui e eu tenho que fazer o melhor" e continuará este trabalho até quando for capaz?
Papa – Sim.
S - Santo Padre, o senhor pode imaginar um mundo sem os pobres?
Papa – Eu gostaria de um mundo sem pobres. Devemos lutar por isso.
Mas eu sou um crente e sei que o pecado está sempre dentro de nós. E há
sempre a ganância humana, a falta de solidariedade, o egoísmo que criam
os pobres. Por isso, me parece um pouco difícil imaginar um mundo sem
pobres. Se você pensa nas crianças exploradas para o trabalho escravo,
ou nas crianças exploradas para o abuso sexual. E outra forma de
exploração: matar crianças para a remoção de órgãos, o tráfico de
órgãos. Matar as crianças para remover órgãos é ganância. Por isso, não
sei se teremos um mundo sem os pobres, porque o pecado sempre existe e
nos leva ao egoísmo. Mas devemos lutar, sempre, sempre...
Terminamos. Agradecemos ao Papa pela entrevista. Também ele nos
agradece e diz que gostou muito da entrevista. Então pega o envelope
branco que todo o tempo manteve ao seu lado no sofá e tira para cada um
de nós um rosário. São tiradas fotos e, em seguida, o Papa Francisco se
despede. Tão calmo e tranquilo como ele chegou, agora sai pela porta.
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