Capela Redemptoris Mater, no Vaticano
(Vatican Media)
"Usemos as armas da luz - A pureza cristã", foi o tema da V Pregação da Quaresma do frei Raniero Cantalamessa: "A primeira atitude é conservar o controle de si e do próprio corpo; a segunda é, pelo contrário, vender ou alienar o próprio corpo, ou seja, dispor da sexualidade à vontade, para fins utilitaristas e diversos, daqueles para os quais foi criada".
Cidade do Vaticano
O Pregador da Casa Pontifícia, padre Raniero Cantalamessa OFM, propôs ao Papa Francisco e à Cúria reunidos na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, a quinta e última pregação da Quaresma, intitulada "Usemos as armas da luz - A pureza cristã". Confira o texto na íntegra:
"A pureza cristã
No nosso comentário à parénese da Carta aos Romanos, chegamos ao ponto em que se diz: A noite vai adiantada, e o dia está a chegar. Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz. Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites" (Rm 13, 12-14)
Santo Agostinho, nas Confissões, diz-nos, o lugar que esta passagem teve na sua conversão. Ele já tinha alcançado uma quase completa adesão à fé;
as suas objeções tinham sido aniquiladas uma após a outra e a voz de
Deus tornara-se cada vez mais urgente. Mas havia uma coisa que o
detinha: o medo de não ser capaz de viver casto. Ele vivia, como
sabemos, com uma mulher sem ser casado.
Estava no jardim da casa que o abrigava, nas garras dessa luta
interior e com lágrimas nos olhos, quando, de uma casa próxima, ouviu
uma voz, como um menino ou menina, que repetia: "Tolle, lege!,
Pegue, leia; pegue, leia!". Ele interpretou estas palavras como um
convite de Deus e, tendo ao alcance das mãos o livro das Epístolas de
São Paulo, abriu-o ao acaso, determinado a considerar como vontade de
Deus a primeira frase em que o seu olhar se fixasse.
A palavra em que o seu olhar caiu foi, de facto, aquela da Carta aos
Romanos que acabamos de mencionar. Uma luz de segurança brilhou dentro
dele (lux securitatis), o que fez desaparecer toda a escuridão da incerteza. Ele sabia agora que, com a ajuda de Deus, poderia ser casto[1].
As coisas que o Apóstolo, naquela passagem, chama “obras das trevas”
são as mesmas que noutros lugares define "desejos, ou obras, da carne"
(cf. Rm 8,13; Gl 5,19) e as coisas que chama "armas da luz" são as
mesmas que noutros lugares chama de "obras do Espírito", ou "frutos do
Espírito" (cf. Gl 5, 22). Entre essas obras da carne é enfatizada, com
dois termos (koite e aselgeia), a devassidão sexual, à qual se opõe a arma da luz que é a pureza.
O Apóstolo não se ocupa, no presente contexto, em falar desse aspecto
da vida cristã; mas da lista dos vícios, colocada no início da Carta
(cf. Rm 1, 26ss), sabemos quão importante era isso para os seus olhos.
São Paulo estabelece uma ligação muito estreita entre pureza e santidade
e entre pureza e Espírito Santo:
"Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação; que eviteis a
impureza; que cada um de vós saiba possuir o seu corpo santo e
honestamente, sem se deixar levar pelas paixões desregradas, como os
pagãos que não conhecem Deus; e que ninguém, nesta matéria, oprima nem
defraude o seu irmão, porque o Senhor faz justiça de todas estas
coisas, como já antes vo-lo temos dito e asseverado. Pois Deus não nos
chamou para a impureza, mas para a santidade. Por conseguinte, desprezar
estes preceitos é desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos deu o
seu Espírito Santo." (1 Ts 4, 3-8)
Por isso, procuremos reunir esta última "exortação" da palavra de Deus, aprofundando o fruto do Espírito que é a pureza.
1. As motivações cristãs da pureza
Na Carta aos Gálatas, São Paulo escreve: "O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5, 22). O termo grego original, que traduzimos com "autodomínio” é enkrateia e tem uma gama muito ampla de significados; pode-se exercer, de facto, o domínio de si no comer, no falar, no controle da ira, etc.
1. As motivações cristãs da pureza
Na Carta aos Gálatas, São Paulo escreve: "O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5, 22). O termo grego original, que traduzimos com "autodomínio” é enkrateia e tem uma gama muito ampla de significados; pode-se exercer, de facto, o domínio de si no comer, no falar, no controle da ira, etc.
Aqui, porém, como nos demais, quase sempre no Novo Testamento, isso
significa o domínio de si numa esfera bem precisa da pessoa, ou seja,
no âmbito da sexualidade. Deduzimos isso do facto de que, pouco acima,
elencando as “obras da carne”, o Apóstolo chama porneia , ou seja, impureza, aquilo que se opõe ao domínio de si (é o mesmo termo do qual deriva “pornografia”!).
Nas traduções modernas da Bíblia, o termo porneia é traduzido,
ora como prostituição, ora como impureza, ora como fornicação ou
adultério, e ora como outros vocábulos. A ideia de fundo, contida no
termo é, todavia, aquela de “vender-se”, de alienar o próprio corpo,
portanto, de prostituir-se (pernemi, em grego, significa “vendo-me”).
Usando este termo para indicar quase todas as manifestações de
desordem sexual, a Bíblia diz que todo pecado de impureza é, em certo
sentido, um prostituir-se, um vender-se.
Os termos usados por São Paulo dizem-nos, portanto, que são
possíveis, em relação ao nosso próprio corpo e a própria sexualidade,
duas atitudes opostas, uma atitude do Espírito e a outra obra da carne;
uma, virtude e a outra, vício.
A primeira atitude é conservar o controle de si e do próprio corpo; a
segunda é, pelo contrário, vender ou alienar o próprio corpo, ou seja,
dispor da sexualidade à vontade, para fins utilitaristas e diversos
daqueles para os quais foi criada; um transformar o ato sexual num ato
venal, mesmo que o útil em questão não seja sempre constituído pelo
dinheiro, como no caso da prostituição verdadeira e real, mas também
pelo prazer egoísta como um fim em si mesmo.
Quando falamos da pureza e da impureza em simples listas de virtudes
ou de vícios, sem aprofundar a matéria, a linguagem do Novo Testamento
não é muito diferente da linguagem dos moralistas pagãos, por exemplo,
dos Estoicos.
Até os moralistas pagãos exaltavam o domínio de si, mas somente em função da quietude interior, da impassividade (apatheia), do autodomínio; a pureza era governada, para eles, pelo princípio da "reta razão".
Na realidade, porém, dentro desses velhos vocabulários pagãos, existe
um conteúdo totalmente novo que brota, como sempre, do querigma. Isso
já é visível no nosso texto, onde a devassidão é contraposta, de modo
muito significativo, como o seu contrário, do “revestir-se do Senhor Jesus
Cristo”.
Os primeiros cristãos foram capazes de compreender este conteúdo
novo, porque isso era objeto específico de catequese noutros
contextos.
Vamos agora examinar uma dessas catequeses específicas sobre pureza,
para descobrir o verdadeiro conteúdo e as verdadeiras motivações cristãs
dessa virtude que derivam do evento pascal de Cristo. Trata-se do texto
da 1 Cor 6, 12-20. Parece que os Coríntios - talvez deturpando uma
frase do Apóstolo - alegassem o princípio: "tudo me é lícito", para
justificar também os pecados da impureza.
Na resposta do Apóstolo está contida uma motivação absolutamente nova
da pureza que brota do mistério de Cristo. Não é lícito - diz ele –
entregar-se à impureza (porneia), não é lícito vender-se, ou
dispor de si à vontade, pelo simples facto de que nós não nos pertencemos
mais, não somos nossos, mas de Cristo. Não se pode dispor do que não é
nosso: "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo [...] e
que não pertenceis a vós mesmos?" (1 Cor 6, 15.19).
A motivação pagã é, em certo sentido, invertida; o valor supremo a
ser salvaguardado não é mais o domínio de si, mas o “não domínio de si”.
“O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor!” (1 Cor 6, 13): a
última motivação da pureza é, portanto, que “Jesus é o Senhor!”. A
pureza cristã, noutras palavras, não consiste tanto em estabelecer o
domínio da razão sobre os instintos, mas em estabelecer o domínio de
Cristo sobre toda a pessoa, razão e instintos.
Esta motivação cristológica da pureza torna-se mais convincente com
aquilo que São Paulo acrescenta no mesmo texto: não somos apenas
genericamente “de” Cristo, como sua propriedade ou sua coisa; nós somos o
próprio corpo de Cristo, os seus membros! Isso torna tudo imensamente
mais delicado, porque significa que, ao cometer a impureza, eu prostituo
o corpo de Cristo, realizo uma espécie de sacrilégio odioso; uso da
"violência" ao corpo do Filho de Deus. Diz o Apóstolo: "Tomarei então os
membros de Cristo e torná-los-ei membros de uma prostituta?" (1 Cor 6,
15).
A esta motivação cristológica, acrescenta-se em seguida aquela
pneumatológica, isto é, relativa ao Espírito Santo: "Ou não sabeis que o
vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós?" (1 Cor 6, 19).
Abusar do próprio corpo é, portanto, profanar o templo de Deus; mas se
alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá (cf. 1 Cor 3, 17).
Cometer impureza é "entristecer o Espírito Santo de Deus" (cf. Ef 4,
30).
Juntamente com as motivações cristológicas e pneumatológicas, o
Apóstolo também menciona uma motivação escatológica, que se refere ao
destino final do homem: "Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos
ressuscitará" (1 Cor 6, 14). O nosso corpo está destinado à
ressurreição; está destinado a participar, um dia, na bem-aventurança e
na glória da alma. A pureza cristã não se baseia no desprezo do corpo,
mas, ao contrário, na grande estima de sua dignidade.
O Evangelho - diziam os Padres da Igreja ao combater os gnósticos -
não prega a salvação "de" carne, mas a salvação "da" carne. Aqueles que
consideram o corpo um "traje estrangeiro", destinado a ser abandonado
aqui, não possuem os motivos que o cristão tem para mantê-lo imaculado.
O Apóstolo conclui a sua catequese sobre a pureza com o convite
apaixonado: "Glorificai, pois, Deus no vosso corpo" (1 Cor 6, 20). O
corpo humano é, portanto, para a glória de Deus e expressa essa glória
quando a pessoa vive a própria sexualidade e toda a sua corporeidade em
obediência amorosa à vontade de Deus, que é como dizer: em obediência ao
próprio sentido da sexualidade, à sua natureza intrínseca e originária
que não é aquela de vender-se, mas aquela de doar-se.
Tal glorificação de Deus através do seu próprio corpo não exige
necessariamente a renúncia ao exercício da própria sexualidade. No
capítulo imediatamente seguinte, isto é, em 1 Cor 7, São Paulo explica,
de facto, que tal glorificação de Deus é expressa de duas maneiras e em
dois carismas diferentes: ou através do casamento, ou através da
virgindade. Glorifica a Deus no seu corpo a virgem e o celibatário, mas
também o glorifica quem se casa, desde que todos vivam as exigências do
próprio estado.
Pureza, beleza e amor ao próximo
Na nova luz que emergiu do mistério pascal e ilustrada até agora por São Paulo, o ideal da pureza ocupa um lugar privilegiado em toda a síntese da moral cristã do Novo Testamento. Não existe, podemos dizer, uma carta de São Paulo na qual ele não dedique um espaço, quando descreve a vida nova no Espírito (cf. por exemplo, Ef 4, 17-5, 33; Cl 3, 5 12).
Pureza, beleza e amor ao próximo
Na nova luz que emergiu do mistério pascal e ilustrada até agora por São Paulo, o ideal da pureza ocupa um lugar privilegiado em toda a síntese da moral cristã do Novo Testamento. Não existe, podemos dizer, uma carta de São Paulo na qual ele não dedique um espaço, quando descreve a vida nova no Espírito (cf. por exemplo, Ef 4, 17-5, 33; Cl 3, 5 12).
Este requisito fundamental de pureza é especificado, de tempos a tempos, de acordo com os diferentes estados de vida dos cristãos. As
epístolas pastorais mostram como a pureza deve ser configurada em
jovens, mulheres, casais, idosos, viúvas, presbíteros e bispos;
apresentam-nos a pureza nas suas várias faces da castidade, fidelidade
conjugal, sobriedade, continência, virgindade, modéstia.
No seu conjunto, este aspecto da vida cristã determina o que o Novo
Testamento – de modo especial, as Epístolas pastorais – chama de
“beleza” ou o caráter “belo” da vocação cristã, que, fundindo-se com
outra característica, a da bondade, forma o ideal único da "boa beleza",
ou da "bela bondade", o que nos levou a falar, indiferentemente, tanto
de obras boas como de obras belas.
A tradição cristã, chamando a pureza de “bela virtude”, recolheu esta
visão bíblica, que expressa, apesar dos abusos e das ênfases muito
unilaterais que também houve, algo de profundamente verdadeiro. A
pureza, de facto, é beleza!
Essa pureza é um modo de vida, mais que uma única virtude. Tem uma
gama de manifestações que vai além da esfera propriamente sexual. Há uma
pureza do corpo, mas há também uma pureza do coração que evita não só
os atos, mas também os desejos e os pensamentos “feios” (cf. Mt 5,
8.27-28).
Há também uma pureza da boca que consiste, negativamente, em
abster-se de palavras obscenas, de vulgaridades e futilidades (cf Ef 5,
4; Cl 3, 8) e, positivamente, na sinceridade e retidão do falar, ou
seja, no dizer: “sim, sim” e “não, não”, a imitação do Cordeiro
imaculado “em cuja boca não se encontrou engano” (cf. 1 Pd 2, 22).
Finalmente, há uma pureza ou claridade dos olhos e do olhar.
O olho – dizia Jesus – é a luz do corpo; se o olho é puro e claro,
todo o corpo está na luz (cf. Mt 6, 22s; Lc 11, 34). São Paulo usa uma
imagem muito sugestiva para indicar este novo estilo de vida: diz que os
cristãos, nascidos pela Páscoa de Cristo, devem ser “fermento de pureza
e de sinceridade” (cf. 1 Cor 5, 8). O termo usado aqui pelo Apóstolo - eilikrinéia - contém, por si só, a imagem de uma "transparência solar". No nosso próprio texto, ele fala da pureza como uma "arma da luz".
Hoje em dia, tende-se a contrapor entre si os pecados, contra a pureza
e os pecados, contra o próximo e tende-se a considerar verdadeiro pecado
somente o que é feito contra o próximo; ironiza-se, às vezes, o culto
excessivo concedido no passado à "bela virtude".
Esta atitude, em parte, pode ser explicada; a moral tinha enfatizado
muito unilateralmente, no passado, os pecados da carne, até criar, por
vezes, verdadeiras e reais neuroses, em detrimento dos deveres para com o
próximo e em detrimento da própria virtude da pureza que foi, assim,
empobrecida e reduzida a virtude quase somente negativa, a virtude de
saber dizer não. Mas agora, porém, passou-se ao excesso oposto e tende-se a minimizar os pecados contra a pureza, privilegiando (muitas
vezes somente de palavra) uma atenção ao próximo. O erro de fundo está
no opor estas duas virtudes.
A palavra de Deus, longe de opor pureza e caridade, liga-as
intimamente uma à outra. Basta ler a continuação da passagem da Primeira
Carta aos Tessalonicenses que mencionei no início, para entender como
as duas coisas são interdependentes entre si segundo o Apóstolo (cf. 1
Ts 4, 3-12). O propósito único da pureza e da caridade é ser capaz de
levar uma vida "cheia de decoro", isto é, íntegra em todas as suas
relações, tanto em relação a nós mesmos, quanto em relação aos outros. No
nosso texto, o Apóstolo resume tudo isto com a expressão: “comportar-se
honestamente como em pleno dia” (cf. Rm 13, 13).
Pureza e amor ao próximo estão entre si como o autocontrole e a
doação aos demais. Como posso doar-me, se não me possuo, mas sou escravo
das minhas paixões? Como posso doar-me aos demais, se não compreendi
ainda o que me disse o Apóstolo, ou seja, que não me pertenço e que o
meu próprio corpo não é meu, mas do Senhor?
É uma ilusão acreditar que se pode colocar junto um autêntico serviço
aos irmãos, que requer sempre sacrifício, altruísmo, esquecimento de si
e generosidade, e uma vida pessoal desordenada, inteiramente voltada a
gratificar a vós mesmos e as próprias paixões. Terminamos,
inevitavelmente, por instrumentalizar os irmãos, como se instrumentaliza
o próprio corpo. Não sabe dizer “sim” aos irmãos, quem não sabe dizer
“não” a si mesmo.
Uma das "desculpas" que mais contribuem para favorecer o pecado de
impureza, na mentalidade popular, e eliminar qualquer responsabilidade, é
a indiferença do tanto faz, pois isso não faz mal a ninguém, não viola
os direitos e a liberdade dos demais, a menos – se fala – que se trate
de violência carnal. Mas, além do facto de que viola o direito
fundamental de Deus de dar uma lei às suas criaturas, essa "desculpa" é
falsa, também em relação ao próximo.
Não é verdade que o pecado de impureza termina com quem o comete. Há
uma solidariedade entre todos os pecados. Todo o pecado, onde quer que
seja e por quem quer que seja cometido, contagia e polui o ambiente
moral do homem; este contágio é chamado por Jesus “o escândalo” e é
condenado por ele com algumas das palavras mais terríveis de todo o
Evangelho (cf Mt 18, 6 ss; Mc 9, 42 ss; Lc 17, 1 s). Mesmo os maus
pensamentos que estagnam no coração, de acordo com Jesus, poluem o homem
e, portanto, o mundo: "Do coração vêm os propósitos maus; os
homicídios, os adultérios, as prostituições... Estas são as coisas que
poluem o homem"(Mt 15, 19-20).
Todo pecado produz uma erosão dos valores e todos juntos criam o que
Paulo chama de "a lei do pecado" e da qual ele ilustra o terrível poder
sobre todos os homens (cf. Rm 7, 14ss). No Talmud judaico lê-se uma
parábola que ilustra bem a solidariedade que existe no pecado e o dano
que cada pecado, também o pessoal, faz aos demais: "Algumas pessoas
estavam a bordo de um barco. Uma delas pegou numa broca e começou a fazer
um buraco ma base dela. Os outros passageiros, vendo, disseram-lhe: "O
que estás a fazer? - Ele respondeu: O que isso vos importa? Eu
não estou a fazer a fazer um buraco debaixo do meu assento? - Mas eles
responderam: - Sim, mas a água virá e nos afogará a todos!" A própria
natureza começou a enviar-nos sinais sinistros de protesto contra certos
modernos abusos e excessos na esfera da sexualidade.
3. Pureza e renovação
Estudando a história das origens cristãs, fica claro com clareza que foram dois os principais instrumentos com o qual a Igreja conseguiu transformar o mundo pagão da época; o primeiro foi o anúncio da Palavra, o querigma, e o segundo o testemunho de vida dos cristãos, a martyria; e vê-se como, no âmbito do testemunho de vida, duas foram, de novo, as coisas que mais surpreenderam e converteram os pagãos: o amor fraterno e a pureza dos costumes. Já a Primeira Carta de Pedro menciona o assombro do mundo pagão em face do teor de vida tão diferente dos cristãos. Escreve:
3. Pureza e renovação
Estudando a história das origens cristãs, fica claro com clareza que foram dois os principais instrumentos com o qual a Igreja conseguiu transformar o mundo pagão da época; o primeiro foi o anúncio da Palavra, o querigma, e o segundo o testemunho de vida dos cristãos, a martyria; e vê-se como, no âmbito do testemunho de vida, duas foram, de novo, as coisas que mais surpreenderam e converteram os pagãos: o amor fraterno e a pureza dos costumes. Já a Primeira Carta de Pedro menciona o assombro do mundo pagão em face do teor de vida tão diferente dos cristãos. Escreve:
"Baste-vos que no tempo passado tenhais vivido segundo os caprichos
dos pagãos, em luxúrias, concupiscências, embriaguez, orgias, bebedeiras
e criminosas idolatrias. Estranham eles agora que já não vos lanceis
com eles nos mesmos desregramentos de libertinagem, e por isso vos
cobrem de calúnias." (1 Pd 4, 3-4).
Os Apologistas - isto é, os escritores cristãos que escreveram em
defesa da fé, nos primeiros séculos da Igreja - atestam que os padrões
de vida puro e casto dos cristãos era, para os pagãos, algo de
“extraordinário e inacreditável”. Em particular, teve um impacto
extraordinário sobre a sociedade pagã a reestruturação da família, que
as autoridades da época queriam reformar, mas que eram impotentes para
conter a desintegração.
Um dos argumentos que São Justino Mártir utiliza para basear a sua
Apologia dirigida ao imperador Antonino Pio, é este: os imperadores
romanos estão preocupados em restaurar os costumes e a família e
esforçam-se para emanar, para esse fim, oportunas leis, que se revelam, no
entanto, insuficientes. Bem, por que não reconhecer o que conseguiram
obter as leis cristãs junto àqueles que a acolheram e a ajuda que podem
dar também à sociedade civil? Algumas donzelas cristãs brilhantes,
mártires mortas, mostraram até onde chegava, nesse ponto, a força do
cristianismo.
Não devemos pensar que a comunidade cristã estava totalmente livre de
desordens e pecados em questões sexuais. São Paulo teve que repreender
um caso, até mesmo, de incesto, na comunidade de Corinto. Mas esses
pecados eram claramente reconhecidos como tais, denunciados e
corrigidos. Não se exigia que se fosse sem pecado, nesta matéria, como
no resto, mas de lutar contra o pecado.
Agora vamos dar um salto das origens cristãs para os nossos dias.
Qual é a situação no mundo de hoje em relação à pureza? A mesma, se não
pior, do que era naquele tempo! Nós vivemos numa sociedade que, em
termos de costumes, mergulhou em pleno paganismo e em plena idolatria do
sexo. A tremenda denúncia que São Paulo faz do mundo pagão, no começo
da Carta aos Romanos, aplica-se, ponto a ponto, ao mundo de hoje,
especialmente nas sociedades assim chamadas do bem-estar (cf. Rm 1,
26-27.32).
Também hoje, não só se fazem essas coisas e outras piores, mas também
se tenta justificá-las, ou seja, justificar toda licença moral e toda
perversão sexual, desde que - dizem - ela não faça violência aos outros e
não prejudique a liberdade dos outros. Como se Deus não tivesse nada a
ver com isso!
Famílias inteiras são destruídas e dizem: o que há de errado? Não há
dúvida de que certos juízos da moral sexual tradicional deviam ser
revistos e que as modernas ciências do homem têm ajudado a lançar luz
sobre certos mecanismos e condicionamentos da psique humana que removem
ou diminuem a responsabilidade moral de certos comportamentos
considerados, uma vez, pecaminosos.
Mas este progresso não tem nada a ver com o pansexualismo de certas
teorias pseudo-científicas e permissivas que tendem a negar qualquer
norma objetiva em questões de moral sexual, reduzindo tudo a uma questão
de evolução espontânea dos costumes, ou seja, a uma questão de cultura.
Se examinarmos de perto aquela que é chamada de revolução sexual dos
nossos dias, percebemos, com espanto, que ela não é simplesmente uma
revolução contra o passado, mas é, muitas vezes, também uma revolução
contra Deus.
4. Puro de coração
Mas eu não quero demora-me muito a descrever a situação atual que nos circunda que, além disso, todos conhecemos bem. Muito me interessa, de facto, descobrir e transmitir o que Deus quer de nós cristãos em tal situação. Deus chama-nos ao mesmo empreendimento ao qual ele chamou os nossos primeiros irmãos de fé: "opor-se a essa torrente de perdição". Chama-nos a fazer a "beleza" da vida cristã brilhar novamente diante dos olhos do mundo. Chama-nos a lutar pela pureza. Lutar com tenacidade e humildade; não necessariamente a ser, todos e imediatamente, perfeitos. Esta é uma luta tão antiga quanto a própria Igreja.
4. Puro de coração
Mas eu não quero demora-me muito a descrever a situação atual que nos circunda que, além disso, todos conhecemos bem. Muito me interessa, de facto, descobrir e transmitir o que Deus quer de nós cristãos em tal situação. Deus chama-nos ao mesmo empreendimento ao qual ele chamou os nossos primeiros irmãos de fé: "opor-se a essa torrente de perdição". Chama-nos a fazer a "beleza" da vida cristã brilhar novamente diante dos olhos do mundo. Chama-nos a lutar pela pureza. Lutar com tenacidade e humildade; não necessariamente a ser, todos e imediatamente, perfeitos. Esta é uma luta tão antiga quanto a própria Igreja.
Hoje há algo novo que o Espírito Santo nos chama a fazer: ele chama-nos a testemunhar ao mundo a inocência original das criaturas e das
coisas. O mundo afundou muito abaixo; o sexo - foi escrito - subiu na
cabeça de todos. Algo muito forte é necessário para quebrar esse tipo de
narcose e intoxicação sexual. É necessário despertar no homem a
nostalgia da inocência e da simplicidade que ele traz no seu coração com
pungência, ainda que tantas vezes coberta de lama.
Não de uma inocência de criação que não há mais, mas de uma inocência
de redenção que nos foi devolvida por Cristo e que nos é oferecida nos
sacramentos e na palavra de Deus. São Paulo assinala este programa
quando escreve aos Filipenses: " Sejam irrepreensíveis e simples, filhos
de Deus imaculados no meio de uma geração perversa e degenerada, na
qual devem brilhar como estrelas no mundo, mantendo no alto a
palavra de vida "(Fp 2, 15 ss). Isto é o que o apóstolo chama, no nosso
texto, "usar as armas da luz".
Não basta mais uma pureza feita de medos, de tabus, de proibições, de
fuga recíproca entre o homem e a mulher, como se um fosse, sempre e
necessariamente, uma armadilha para o outro e um inimigo potencial, mais
que uma "ajuda". No passado, a pureza tinha sido reduzida, às vezes,
pelo menos na prática, precisamente a este complexo de tabu, de
proibições e de medos, como se a virtude tivesse que se envergonhar
perante o vício e não, pelo contrário, o vício a ter que se envergonhar
perante a virtude.
Devemos desejar, graças à presença em nós do Espírito, uma pureza que
seja mais forte do que o vício; uma pureza positiva, não somente
negativa, que seja capaz de fazer-nos experimentar a verdade dessa
palavra do Apóstolo: "Tudo é puro para os que são puros!" (Tt 1, 15) e
desta outra palavra da Escritura: " Aquele que está em ti é maior do que
aquele que está no mundo "(1 Jo 4, 4).
Temos de começar a curar a raiz que é o "coração", porque é dali que
sai tudo aquilo que polui verdadeiramente a vida de uma pessoa (cf. Mt
15, 18 ss). Jesus dizia: "Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus" (Mt 5, 8). Eles realmente verão, isto é, terão novos olhos
para ver o mundo e Deus, olhos limpos que sabem ver o que é belo e o
que é feio, o que é verdade e o que é mentira, o que é vida e o que é
morte. Olhos, em suma, como os de Jesus.
Com que liberdade Jesus podia falar de tudo: das crianças, da mulher,
da gestação, do parto... Olhos como os de Maria. A pureza não consiste
mais, então, em dizer “não” às criaturas, mas em dizer “sim”; sim enquanto criaturas de Deus que eram, e permanecem, “muito boas”.
Nós não nos iludimos. Para poder dizer esse "sim", devemos passar
pela cruz, porque depois do pecado, o nosso olhar sobre as criaturas tornou-se nublado; a concupiscência foi desencadeada em nós; a sexualidade
não é mais pacífica, tornou-se uma força ambígua e ameaçadora que nos
atrai contra a lei de Deus, apesar da nossa própria vontade. Na primeira
meditação desta Quaresma, insistimos num aspecto particularmente
atual e necessário da mortificação: a dos olhos. Um jejum saudável das
imagens é mais importante hoje do que o jejum das comidas e das bebidas.
Concluo trazendo à vossa mente a experiência de Santo Agostinho
recordada no início. Depois daquela experiência, o santo inventou uma
oração totalmente sua, para obter a castidade: “Senhor, disse, tu me ordenas
ser casto. Pois bem, dá-me o que me ordenas e então ordena-me o que
quiseres”. Uma oração que todos podemos fazê-la nossa, recordando que
nisso, bem como em qualquer outro campo, sem a graça de Deus não podemos
fazer nada.
(Tradução de Thácio Siqueir)
____________________________
[1] S. Agostino, Confessioni, VIII, 11-12.
VATICAN NEWS
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