Capela Redemptoris Mater, no Vaticano
"Ao delinear os traços, ou as virtudes,
que devem resplandecer na vida dos renascidos do Espírito, depois de ter
falado da caridade e da humildade, São Paulo, no capítulo 13 da Carta
aos Romanos, também fala da obediência". Assim tem início a IV Pregação
da Quaresma do padre Raniero Cantalamessa na Capela Redemptoris Mater
Cidade do Vaticano
"Cada qual seja submisso às autoridades constituídas" - A obediência a
Deus na vida cristã, foi o título da IV pregação da Quaresma do padre
Raniero Cantalamessa OFM ao Papa Francisco e e à Cúria, na sexta-feira,
16 de março, na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano. Eis o texto na íntegra:
"CADA QUAL SEJA SUBMISSO ÀS AUTORIDADES CONSTITUÍDAS” - A obediência a Deus na vida cristã.
1. O fio do alto
Ao delinear os traços, ou as virtudes, que devem resplandecer na vida
dos renascidos do Espírito, depois de ter falado da caridade e da
humildade, São Paulo, no capítulo 13 da Carta aos Romanos, também fala
da obediência:
"Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há
autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por
Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus" (Rm, 13, 1 ss).
O restante da passagem, que fala da espada e dos tributos, bem como a
comparação com outros textos do Novo Testamento sobre o mesmo assunto
(cf. Tt 3, 1; 1 Pd 2, 13-15), indicam claramente que o Apóstolo não fala
aqui da autoridade em geral e de qualquer autoridade, mas apenas da
autoridade civil e estatal. São Paulo trata de um aspecto particular da
obediência que era particularmente sentida quando ele escrevia e,
talvez, também pela comunidade à qual ele escrevia.
Era o momento em que estava a amadurecef, dentro do judaísmo
palestino, a revolta zelota contra Roma que terminará alguns anos
depois, com a destruição de Jerusalém. O cristianismo nasceu do
judaísmo; muitos membros da comunidade cristã, também de Roma, eram
judeus convertidos. O problema de obedecer ou não ao Estado romano
colocava-se, indiretamente, também para os cristãos.
A Igreja apostólica estava diante de uma escolha decisiva. São Paulo,
como também todo o Novo Testamento, resolve o problema à luz da atitude
e das palavras de Jesus, especialmente da palavra sobre o tributo a
César (cf. Mc 12, 17). O Reino pregado por Cristo "não é deste mundo",
não é, isto é, de natureza nacional e política. Pode, por conseguinte,
viver sob qualquer regime político, aceitando as suas vantagens (como era a
cidadania romana), mas também as suas leis. O problema é, em suma,
resolvido no sentido de obediência ao Estado.
A obediência ao Estado é uma consequência e um aspecto de uma
obediência muito mais importante e abrangente a que o Apóstolo chama de
"obediência ao Evangelho" (cf. Rm 10, 16). A severa advertência do
Apóstolo mostra que pagar impostos e, em geral, cumprir o próprio dever
com a sociedade não é apenas um dever civil, mas também um dever moral.
Aqueles que o transgridem não só enfrentarão o juízo do Estado, mas
também o de Deus.
Tudo isto é muito atual, mas nós não podemos limitar o discurso sobre
a obediência somente a este aspeto de obediência ao Estado. São Paulo mostra-nos o lugar onde se coloca o discurso cristão sobre a obediência,
mas não nos diz, neste único texto, tudo o que se pode dizer sobre esta
virtude. Ele traça aqui as consequências de princípios anteriores, na
mesma Carta aos Romanos e noutros lugares, e devemos procurar esses
princípios para fazer um discurso sobre a obediência que seja útil e
atual para nós hoje.
Devemos ir à descoberta da obediência "essencial", a partir da qual
surgem todas as obediências particulares, inclusive aquela às
autoridades civis. De fato, há uma obediência que diz respeito a todos -
superiores e súditos, religiosos e leigos - , que é a mais importante
de todas, que governa e vivifica todas as outras, e esta obediência não é
a obediência do homem ao homem, mas a obediência do homem a Deus.
Depois do Concílio Vaticano II, alguém escreveu: "Se há um problema
de obediência hoje, não é o da docilidade direta ao Espírito Santo - ao
qual, pelo contrário, todos mostram aderir-se voluntariamente - mas sim a
submissão a uma hierarquia, a uma lei e a uma autoridade humanamente
expressadas". Estou convencido de que este é o caso. Mas é precisamente
para tornar possível de novo esta obediência concreta à lei e à
autoridade visível que devemos recomeçar da obediência a Deus e ao Seu
Espírito.
A obediência a Deus é como "o fio do alto” que mantém a esplêndida
teia da aranha pendurada em uma sebe. Descendo do alto por meio do fio
que ela própria produz, a aranha constrói a sua teia, perfeita e tensa
em cada canto. No entanto, aquele fio do alto que foi usado para
construir a teia não é cortado, uma vez interrompida a obra, mas
permanece. Pelo contrário, é ele que, do centro, sustenta todo o enredo;
sem ele tudo colapsa. Caso se rompa um dos fios laterais (uma vez
testei isso), a aranha aparece e repara velozmente a sua teia, mas uma
vez cortado aquele fio do alto ela vai embora: não há mais nada a se
fazer.
Algo parecido acontece com o enredo das autoridades e das obediências
em uma sociedade, em uma ordem religiosa e na Igreja. Cada um de nós
vive em uma espessa teia de dependências: das autoridades civis, das
eclesiásticas; nestas últimas, do superior local, do bispo, da
Congregação do clero ou dos religiosos, do Papa. A obediência a Deus é o
fio do alto: tudo é construído sobre ela, mas ela não pode ser
esquecida nem mesmo após a conclusão da construção. Pelo contrário, tudo
recai sobre si mesmo e não se entende mais por que é preciso obedecer.
2. A obediência de Cristo
É relativamente simples descobrir a natureza e a origem da obediência
cristã: basta ver com base em qual concepção da obediência Jesus é
definido, pela Escritura, “o obediente”. Descobrimos imediatamente,
desta forma, que o verdadeiro fundamento da obediência cristã não é uma
ideia de obediência, mas é um ato de obediência; não é o princípio
abstrato de Aristóteles segundo o qual “o inferior deve submeter-se ao
superior", mas é um evento; não se encontra na “reta razão”, mas no
Querigma, e tal fundamento é que Cristo “se fez obediente até à morte”
(Fl 2, 8); que Jesus "aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que
teve. E uma vez chegado ao seu termo, tornou-se autor da salvação
eterna para todos os que lhe obedecem" (Hb 5, 8-9).
O centro luminoso, que dá sentido a todo o discurso sobre a obediência
na Carta aos Romanos, é Rm 5, 19: “Pela obediência de um só todos se
tornarão justos”. Quem conhece o lugar que ocupa, na Carta aos Romanos, a
justificação, pode conhecer, deste texto, o lugar que ocupa a
obediência!
Procuremos conhecer a natureza daquele ato de obediência sobre o qual
é fundada a nova ordem; procuremos conhecer, por outras palavras, em que
consiste a obediência de Cristo. Jesus, desde criança, obedeceu aos
pais; depois, quando grande, submeteu-se à lei mosaica, ao Sinédrio, a
Pilatos. Mas São Paulo não pensa em nenhuma destas obediências; pensa,
pelo contrário, na obediência de Cristo ao Pai.
A obediência de Cristo é considerada a antítese exata da
desobediência de Adão: "Assim como pela desobediência de um só homem
foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos
se tornarão justos." (Rm 5, 19; cf. 1 Cor 15, 22). Mas a quem Adão
desobedeceu? Certamente, não aos pais, à autoridade, às leis.
Desobedeceu a Deus. Na origem de todas as desobediências há uma
desobediência a Deus e na origem de todas as obediências há a obediência
a Deus.
A obediência recobre toda a vida de Jesus. Se São Paulo e a Carta aos
Hebreus destacam o lugar da obediência na morte de Jesus, São João e os
Sinóticos completam o quadro, destacando o lugar que a obediência teve
na vida de Jesus, no seu cotidiano. “Meu alimento – diz Jesus no
Evangelho de João – é fazer a vontade do Pai” e “Eu faço sempre o que é
do seu agrado” (Jo 4, 34; 8, 29). A vida de Jesus é guiada por uma
trilha luminosa formada pelas palavras escritas para ele na Bíblia:
"Está escrito ... Está escrito". Dessa forma ele vence as tentações no
deserto. Jesus deduz das Escrituras o "deve-se" (dei) que rege toda a sua vida.
A grandeza da obediência de Jesus é medida objetivamente "pelas
coisas que sofreu" e subjetivamente pelo amor e pela liberdade com que
ele obedeceu. Nele, a obediência filial brilha ao mais alto grau. Também
nos momentos mais extremos, como quando o Pai lhe entrega o cálice da
paixão para ser bebido, nos seus lábios nunca se apaga o grito filial:
“Abba! Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?", exclamou na cruz
(Mt 27, 46); mas ele imediatamente acrescentou, de acordo com Lucas:
"Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito" (Lc 23, 46). Na cruz, Jesus
"entregou-se ao Deus que o abandonava" (independente do que signifique
este abandono do Pai). Esta é a obediência até à morte; esta é "a rocha
da nossa salvação".
3. A obediência como graça: o batismo
No quinto capítulo da Carta aos Romanos, São Paulo apresenta-nos
Cristo como o arquétipo dos obedientes, em oposição a Adão que foi o
arquétipo dos desobedientes. No capítulo seguinte, o sexto, o Apóstolo
revela como entramos na esfera deste evento, isto é, através do batismo.
Em primeiro lugar, São Paulo coloca um princípio: se te colocares
livremente sob a jurisdição de alguém, então deves servi-lo e
obedece-lo:
"Não sabeis que, quando vos ofereceis a alguém para lhe obedecer,
sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado para a
morte, quer da obediência para a justiça?" (Rm 6,16).
Agora, estabelecido o princípio, São Paulo lembra o facto: os
cristãos, na realidade, colocaram-se livremente sob a jurisdição de
Cristo, no dia em que, no batismo, aceitaram-no como seu Senhor: "Depois
de terdes sido escravos do pecado, obedecestes de coração à regra da
doutrina na qual tendes sido instruídos" (Rm 6,17). No batismo houve uma
mudança de padrão, uma passagem de campo: do pecado à justiça, da
desobediência à obediência, de Adão a Cristo. A liturgia expressou tudo
isto, através da oposição: "Renuncio – Creio".
Portanto, para a vida cristã, a obediência é algo constitutivo; é a
implicação prática e necessária da aceitação do senhorio de Cristo. Não
há senhorio em ato, se não houver, por parte do homem, obediência. No
batismo nós aceitamos um Senhor, um Kyrios, mas um Senhor "obediente",
que se tornou Senhor precisamente por causa de Sua obediência (cf Fl 2,
8-11), cujo senhorio é, por assim dizer, eivado de obediência. A
obediência aqui não é tanto sujeição, mas sim semelhança; obedecer a um
tal Senhor é assemelhar-se a ele, porque é precisamente por causa da sua
obediência até a morte, que ele obteve o nome de Senhor que está acima
de todos os outros nomes (cf Fl 2, 8-9).
Deste modo, descobrimos que a obediência, antes que virtude, é dom,
antes que lei, é graça. A diferença entre as duas coisas é que a lei diz fazer, enquanto a graça doa fazer.
A obediência é, acima de tudo, obra de Deus em Cristo, que depois é
apontada ao crente para que, por sua vez, a expresse na vida com uma
fiel imitação. Nós não temos, noutras palavras, somente o dever de
obedecer, mas temos também a graça de obedecer!
A obediência cristã está enraizada, portanto, no batismo; pelo
batismo todos os cristãos são "votados" à obediência, fizeram, em certo
sentido, "voto". A redescoberta deste dado comum, fundado no batismo,
atende uma necessidade vital dos leigos na Igreja. O Concílio Vaticano
II enunciou o princípio do “chamamento universal à santidade” do povo de
Deus (LG, 40) e, uma vez que não há santidade sem obediência, dizer que
todos os batizados são chamados à santidade é como dizer que todos são
chamados à obediência, que também existe um chamamento universal à
obediência.
4. A obediência como "dever": a imitação de Cristo
Na primeira parte da Carta aos Romanos, São Paulo apresenta-nos Jesus
Cristo como dom a ser acolhido com a fé, enquanto na segunda parte - a
parenética – apresenta-nos Cristo como modelo a ser imitado com a vida.
Estes dois aspetos da salvação também estão presentes dentro das
virtudes individuais ou frutos do Espírito. Em toda virtude cristã, há
um elemento misterioso e um elemento ascético, uma parte confiada à
graça e uma parte confiada à liberdade. Agora chegou o momento de
considerar este segundo aspecto, ou seja, a nossa imitação real da
obediência de Cristo. A obediência como dever.
Assim que tentamos encontrar, através do Novo Testamento, em que
consiste o dever da obediência, fazemos uma descoberta surpreendente, a
saber, que a obediência é quase sempre vista como obediência a Deus.
Fala-se, certamente, também de todas as outras formas de obediência: aos
pais, aos chefes, aos superiores, às autoridades civis, “a toda
instituição humana” (1 Pd 2,13), mas muito menos frequentemente e de
maneira muito menos solene. O próprio substantivo "obediência" é usado
sempre e apenas para indicar a obediência a Deus ou, em qualquer caso, a
instâncias que estão do lado de Deus, exceto numa única passagem da
Carta a Filemon (v. 21), onde indica a obediência ao Apóstolo.
São Paulo fala de obediência à fé (Rm 1, 5; 16, 26), de obediência ao ensinamento (Rm 6,17), de obediência ao Evangelho (Rm 10, 16; 2 Ts 1, 8), de obediência à Verdade (Gl 5, 7), de obediência a Cristo (2 Cor 10, 5). Encontramos a mesma linguagem também noutros lugares no Novo Testamento (cf. At 6, 7; 1 Pd 1, 2. 22).
Mas é possível e faz sentido falar hoje de obediência a Deus, depois
que a nova e viva vontade de Deus, manifestada em Cristo, foi
completamente expressa e objetivada em toda uma série de leis e
hierarquias? É lícito pensar que existam ainda, depois de tudo isto,
“livres” vontades de Deus para serem recolhidas e cumpridas? Sim, sem
dúvida! Se a viva vontade de Deus pudesse ser fechada e objetivada plena
e definitivamente numa série de leis, normas e instituições, numa
"ordem" estabelecida e definida de uma vez por todas, a Igreja acabaria por focar petrificada.
A redescoberta da importância da obediência a Deus é uma consequência
natural da redescoberta da dimensão pneumática - ao lado da dimensão
hierárquica - da Igreja e do primado, nela, da Palavra de Deus. A
obediência a Deus, em outras palavras, é concebível apenas quando se
afirma, como faz o Concílio Vaticano II, que o Espírito Santo "guia a
Igreja a toda a verdade, a unifica na comunhão e no ministério, a
instrui e a orienta com diversos dons hierárquicos e carismáticos, a
embeleza com os seus frutos, com o poder do Evangelho rejuvenesce a Igreja,
renova-a continuamente e a leva a uma união perfeita com o seu esposo"
(LG, 40).
Somente se acreditarmos num "Senhorio" atual e pontual do
Ressuscitado sobre a Igreja, somente se estamos convencidos, no íntimo,
que até hoje - como diz o Salmo - "fala o Senhor, Deus dos deuses, e não
está silencioso" (Sl 50, 1), só então pode-se entender a necessidade e a
importância da obediência a Deus. Este é um prestar ouvidos ao Deus que
fala, na Igreja, através do seu Espírito, o qual ilumina as palavras de
Jesus e de toda a Bíblia e lhe dá autoridade, tornando-os canais da
viva e atual vontade de Deus para nós.
Mas, como na Igreja instituição e mistério não são opostos, mas
unidos, então agora devemos mostrar que a obediência espiritual a Deus
não distrai da obediência à autoridade visível e institucional, mas,
pelo contrário, renova-a, fortalece-a e vivifica-a, até ao ponto em que a
obediência aos homens se torna o critério para julgar se existe, e se é
autêntica, a obediência a Deus. Acontece exatamente como para a
caridade. O primeiro mandamento é amar a Deus, mas o seu banco de prova é
amar o próximo. “Quem não ama o próprio irmão que vê - escreve São João
- , como pode amar a Deus que não vê?" (1 Jo 4, 20). O mesmo deve ser
dito da obediência: se não obedeceres ao superior que vê, como pode s
dizer obedecer a Deus, que não vês?
A obediência a Deus geralmente acontece desta maneira. Deus faz com
que a sua vontade brilhe no seu coração; é uma "inspiração" que geralmente
nasce de uma palavra de Deus ouvida ou lida em oração. em que te sentes "chamado" por aquela palavra ou por aquela inspiração; sentes que ela te
“pede” algo novo e dizes “sim”. Caso se trate de uma decisão que
terá consequências práticas, não podes agir apenas com basna tua
inspiração. Deves depositar o teu chamamento nas mãos dos superiores ou
daqueles que têm, de alguma forma, uma autoridade espiritual sobre ti,
acreditando que, se é de Deus, ele a fará reconhecer pelos seus
representantes.
Mas o que fazer quando há um conflito entre as duas obediências e o
superior humano pede para fazer algo diferente ou oposto ao que
achas que é pedido por Deus? Basta perguntar-se o que Jesus fez neste
caso. Ele aceitou a obediência externa e sujeitou-se aos homens, mas, ao
fazê-lo assim, não negou, mas realizou a obediência ao Pai.
Precisamente isto, era de facto, o que o Pai queria. Sem saber e sem querer - às
vezes de boa fé, às vezes não -, os homens, como aconteceu então, para
Caifás, Pilatos e as multidões, tornam-se instrumentos para se cumprir a
vontade de Deus, e não a deles.
Mesmo essa regra não é, no entanto, absoluta. A vontade de Deus e a
sua liberdade podem exigir do homem – como acontece para Pedro diante da
injunção do Sinédrio – que ele obedeça a Deus, em vez de aos homens (cf
At 4, 19-20). Mas quem se depara neste caminho deve aceitar, como
qualquer verdadeiro profeta de morrer para si mesmo (e, muitas vezes,
também fisicamente), antes de ver sua palavra realizada. Na Igreja
Católica, a verdadeira profecia foi sempre acompanhada pela obediência
ao papa. Pe. Primo Mazzolari e Pe. Lorenzo Milani são alguns exemplos
recentes.
Obedecer apenas quando o que o superior diz corresponde exatamente às
nossas ideias e às nossas escolhas, não é obedecer a Deus, mas a nós
mesmos; não é fazer a vontade de Deus, mas a própria vontade. Se, no
caso de disparidade, em vez de se auto-questionar, se coloca o superior
em dúvida, o seu discernimento e a sua competência, não somos mais
obedientes, mas objetores.
5. Uma obediência aberta sempre e a todos
A obediência a Deus é a obediência que podemos sempre fazer. De
obediências a ordens e autoridades visíveis, acontece apenas
ocasionalmente, três ou quatro vezes na vida, falando de obediências de
uma certa seriedade. De obediências a Deus, no entanto, há muitas.
Quanto mais alguém obedece, mais as ordens de Deus se multiplicam,
porque ele sabe que este é o dom mais lindo que pode fazer, aquele que
fez ao seu amado Filho Jesus. Quando Deus encontra uma alma determinada a
obedecer, então ele toma pela mão a sua vida, como se pega no leme de um
barco, ou como nas rédeas de um carro. Ele torna-se realmente, e
não só na teoria, “Senhor”, ou seja, aquele que “rege”, que “governa”
determinando, pode-se dizer, momento a momento, os gestos, as palavras
daquela pessoa, o seu modo de usar o tempo, tudo.
Eu disse que a obediência a Deus é algo que pode sempre ser feito.
Devo acrescentar que é também a obediência que todos podemos fazer,
tanto súbditos quanto superiores. É costume dizer-se que é preciso saber
obedecer para poder comandar. Não é apenas um princípio de bom senso; há
uma razão teológica nisso. Significa que a verdadeira fonte da
autoridade espiritual reside mais na obediência do que no título ou
cargo de que se cobre. Conceber a autoridade como obediência significa não
se contentar com a mera autoridade, mas também aspirar àquela autoridade
que vem do facto de que Deus está por trás de si e apoia a tua
decisão. Significa aproximar-se daquele tipo de autoridade que emanava
da ação de Cristo e exortava as pessoas a perguntarem maravilhadas:
"O que é isto? Uma nova doutrina ensinada com autoridade "(Mc 1, 27).
Na verdade, é uma autoridade diferente, um poder real e eficaz, não
somente nominal ou de ofício, um poder intrínseco, não extrínseco.
Quando uma ordem é dada por um pai ou um superior que se esforça para
viver na vontade de Deus, que orou antes e não tem interesses pessoais
para defender, mas apenas o bem do irmão ou do seu filho, então a
própria autoridade de Deus age como um reforço para essa ordem ou
decisão. Se surgir uma disputa, Deus diz ao seu representante o que ele
disse um dia a Jeremias: "Eis que eu faço de ti como uma fortaleza,
como uma parede de bronze [...]. Eles irão guerrear contigo, mas não
vão vencer, porque eu estou contigo "(Jr 1, 18s). Santo Inácio de
Antióquia dava este sábio conselho a um dos seus discípulos e colega do
episcopado, São Policarpo: "Que nada se faça sem o seu consentimento,
mas não faças nada sem o consentimento de Deus[1]”.
Este modo de obediência a Deus não tem nada de místico e
extraordinário, mas está aberto a todos os batizados. Consiste em
"apresentar as perguntas a Deus" (cf Ex 18, 19). Eu posso decidir
sozinho fazer ou não fazer uma viagem, um emprego, uma visita, uma
despesa e depois, uma vez decidido, rezar a Deus pelo sucesso do
assunto. Mas se nasce em mim o amor pela obediência a Deus, então, farei
diferente: primeiro perguntarei a Deus com um meio muito simples ao
alcance de todos – a oração – se é a sua vontade que eu faça aquela
viagem, aquele trabalho, aquela visita, aquela despesa, e depois farei,
ou não, a coisa, mas ela já será, de qualquer forma, um ato de
obediência a Deus, e não mais uma iniciativa livre minha.
Normalmente, é claro que não ouvirei, na minha breve oração, nenhuma
voz e não terei nenhuma resposta explícita sobre o que fazer, ou, pelo
menos, não é necessário que haja para que a minha ação seja obediência. Ao
atuar assim, de facto, submeti a questão a Deus, despi-me da minha
vontade, renunciei ao decidir sozinho e dei a Deus uma possibilidade para
intervir, se quiser, na minha vida. Qualquer coisa que eu decida fazer,
regulando-me com os critérios comuns de discernimento, será obediência a
Deus. É dessa forma que se entregam as rédeas da vida a Deus! A vontade
de Deus penetra, desta forma, sempre mais no tecido de uma existência,
embelezando-a e tornando-a um "sacrifício vivo, santo e agradável a
Deus" (Rm 12, 1).
Também desta vez terminamos com as palavras de um salmo que nos
permite transformar em oração o ensinamento que nos foi dado pelo
Apóstolo. Um dia que estava cheio de alegria e de gratidão pelos
benefícios do seu Deus ("Esperei, esperei no Senhor e ele se inclinou
sobre mim [...]; tirou-me da cova da morte..."), num verdadeiro estado
de graça, o salmista pergunta o que pode fazer para responder a tanta
bondade de Deus: oferecer holocaustos, vítimas? Compreende imediatamente
que isso não é o que Deus quer dele; é muito pouco para expressar o que
está no coração. E eis que surge a intuição e a revelação: o que Deus
deseja dele é uma decisão generosa e solene de cumprir, a partir de
agora, tudo o que Deus deseja dele, de obedecê-lo em tudo. Então ele
exclama:
"Eis que venho.
Sobre mim está escrito no pergaminho do livro, que eu faça a tua vontade.
Meus Deus, isso eu desejo,
a tua lei está nas profundezas do meu coração”
Entrando no mundo, Jesus fez suas estas palavras dizendo: "Eis que eu
venho fazer, ó Deus, a vossa vontade" (Hb 10, 5 ss). Agora é a nossa
vez. Toda a vida, dia a dia, pode ser vivida sob essas palavras: "Eis
que eu venho, ó Deus, para fazer a tua vontade!". Na parte da manhã, ao
iniciar um novo dia, depois ao ir a um compromisso, a um encontro, ao
começar um novo trabalho: “Eis que venho, ó Deus, fazer a tua vontade!”
Nós não sabemos o que, naquele dia, aquele encontro, aquele trabalho
nos reservará; sabemos uma coisa somente com certeza: que queremos fazer
neles, a vontade de Deus. Nós não sabemos o que reserva a cada um de
nós o nosso porvir; mas é lindo caminhar em direção a ele com esta
palavra nos lábios: "Eis que eu venho, ó Deus, para fazer a tua
vontade!".
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[1] Santo Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo 4, 1.
(Tradução de Thácio Siqueira)
VATICAN NEWS
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