17 março, 2018

IV Pregação da Quaresma - texto integral

 
 Capela Redemptoris Mater, no Vaticano
 
"Ao delinear os traços, ou as virtudes, que devem resplandecer na vida dos renascidos do Espírito, depois de ter falado da caridade e da humildade, São Paulo, no capítulo 13 da Carta aos Romanos, também fala da obediência". Assim tem início a IV Pregação da Quaresma do padre Raniero Cantalamessa na Capela Redemptoris Mater
 
Cidade do Vaticano

"Cada qual seja submisso às autoridades constituídas" - A obediência a Deus na vida cristã, foi o título da IV pregação da Quaresma do padre Raniero Cantalamessa OFM ao Papa Francisco e e à Cúria, na sexta-feira, 16 de março, na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano. Eis o texto na íntegra:

"CADA QUAL SEJA SUBMISSO ÀS AUTORIDADES CONSTITUÍDAS” - A obediência a Deus na vida cristã. 

1. O fio do alto 

Ao delinear os traços, ou as virtudes, que devem resplandecer na vida dos renascidos do Espírito, depois de ter falado da caridade e da humildade, São Paulo, no capítulo 13 da Carta aos Romanos, também fala da obediência:

"Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus" (Rm, 13, 1 ss).

O restante da passagem, que fala da espada e dos tributos, bem como a comparação com outros textos do Novo Testamento sobre o mesmo assunto (cf. Tt 3, 1; 1 Pd 2, 13-15), indicam claramente que o Apóstolo não fala aqui da autoridade em geral e de qualquer autoridade, mas apenas da autoridade civil e estatal. São Paulo trata de um aspecto particular da obediência que era particularmente sentida quando ele escrevia e, talvez, também pela comunidade à qual ele escrevia.

Era o momento em que estava a amadurecef, dentro do judaísmo palestino, a revolta zelota contra Roma que terminará alguns anos depois, com a destruição de Jerusalém. O cristianismo nasceu do judaísmo; muitos membros da comunidade cristã, também de Roma, eram judeus convertidos. O problema de obedecer ou não ao Estado romano colocava-se, indiretamente, também para os cristãos.

A Igreja apostólica estava diante de uma escolha decisiva. São Paulo, como também todo o Novo Testamento, resolve o problema à luz da atitude e das palavras de Jesus, especialmente da palavra sobre o tributo a César (cf. Mc 12, 17). O Reino pregado por Cristo "não é deste mundo", não é, isto é, de natureza nacional e política. Pode, por conseguinte, viver sob qualquer regime político, aceitando as suas vantagens (como era a cidadania romana), mas também as suas leis. O problema é, em suma, resolvido no sentido de obediência ao Estado.

A obediência ao Estado é uma consequência e um aspecto de uma obediência muito mais importante e abrangente a que o Apóstolo chama de "obediência ao Evangelho" (cf. Rm 10, 16). A severa advertência do Apóstolo mostra que pagar impostos e, em geral, cumprir o próprio dever com a sociedade não é apenas um dever civil, mas também um dever moral. Aqueles que o transgridem não só enfrentarão o juízo do Estado, mas também o de Deus.

Tudo isto é muito atual, mas nós não podemos limitar o discurso sobre a obediência somente a este aspeto de obediência ao Estado. São Paulo mostra-nos o lugar onde se coloca o discurso cristão sobre a obediência, mas não nos diz, neste único texto, tudo o que se pode dizer sobre esta virtude. Ele traça aqui as consequências de princípios anteriores, na mesma Carta aos Romanos e noutros lugares, e devemos procurar esses princípios para fazer um discurso sobre a obediência que seja útil e atual para nós hoje.

Devemos ir à descoberta da obediência "essencial", a partir da qual surgem todas as obediências particulares, inclusive aquela às autoridades civis. De fato, há uma obediência que diz respeito a todos - superiores e súditos, religiosos e leigos - , que é a mais importante de todas, que governa e vivifica todas as outras, e esta obediência não é a obediência do homem ao homem, mas a obediência do homem a Deus.

Depois do Concílio Vaticano II, alguém escreveu: "Se há um problema de obediência hoje, não é o da docilidade direta ao Espírito Santo - ao qual, pelo contrário, todos mostram aderir-se voluntariamente - mas sim a submissão a uma hierarquia, a uma lei e a uma autoridade humanamente expressadas". Estou convencido de que este é o caso. Mas é precisamente para tornar possível de novo esta obediência concreta à lei e à autoridade visível que devemos recomeçar da obediência a Deus e ao Seu Espírito.

A obediência a Deus é como "o fio do alto” que mantém a esplêndida teia da aranha pendurada em uma sebe. Descendo do alto por meio do fio que ela própria produz, a aranha constrói a sua teia, perfeita e tensa em cada canto. No entanto, aquele fio do alto que foi usado para construir a teia não é cortado, uma vez interrompida a obra, mas permanece. Pelo contrário, é ele que, do centro, sustenta todo o enredo; sem ele tudo colapsa. Caso se rompa um dos fios laterais (uma vez testei isso), a aranha aparece e repara velozmente a sua teia, mas uma vez cortado aquele fio do alto ela vai embora: não há mais nada a se fazer.

Algo parecido acontece com o enredo das autoridades e das obediências em uma sociedade, em uma ordem religiosa e na Igreja. Cada um de nós vive em uma espessa teia de dependências: das autoridades civis, das eclesiásticas; nestas últimas, do superior local, do bispo, da Congregação do clero ou dos religiosos, do Papa. A obediência a Deus é o fio do alto: tudo é construído sobre ela, mas ela não pode ser esquecida nem mesmo após a conclusão da construção. Pelo contrário, tudo recai sobre si mesmo e não se entende mais por que é preciso obedecer. 

2. A obediência de Cristo

É relativamente simples descobrir a natureza e a origem da obediência cristã: basta ver com base em qual concepção da obediência Jesus é definido, pela Escritura, “o obediente”. Descobrimos imediatamente, desta forma, que o verdadeiro fundamento da obediência cristã não é uma ideia de obediência, mas é um ato de obediência; não é o princípio abstrato de Aristóteles segundo o qual “o inferior deve submeter-se ao superior", mas é um evento; não se encontra na “reta razão”, mas no Querigma, e tal fundamento é que Cristo “se fez obediente até à morte” (Fl 2, 8); que Jesus "aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que teve. E uma vez chegado ao seu termo, tornou-se autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem" (Hb 5, 8-9).

O centro luminoso, que dá sentido a todo o discurso sobre a obediência na Carta aos Romanos, é Rm 5, 19: “Pela obediência de um só todos se tornarão justos”. Quem conhece o lugar que ocupa, na Carta aos Romanos, a justificação, pode conhecer, deste texto, o lugar que ocupa a obediência!

Procuremos conhecer a natureza daquele ato de obediência sobre o qual é fundada a nova ordem; procuremos conhecer, por outras palavras, em que consiste a obediência de Cristo. Jesus, desde criança, obedeceu aos pais; depois, quando grande, submeteu-se à lei mosaica, ao Sinédrio, a Pilatos. Mas São Paulo não pensa em nenhuma destas obediências; pensa, pelo contrário, na obediência de Cristo ao Pai.

A obediência de Cristo é considerada a antítese exata da desobediência de Adão: "Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos." (Rm 5, 19; cf. 1 Cor 15, 22). Mas a quem Adão desobedeceu? Certamente, não aos pais, à autoridade, às leis. Desobedeceu a Deus. Na origem de todas as desobediências há uma desobediência a Deus e na origem de todas as obediências há a obediência a Deus.

A obediência recobre toda a vida de Jesus. Se São Paulo e a Carta aos Hebreus destacam o lugar da obediência na morte de Jesus, São João e os Sinóticos completam o quadro, destacando o lugar que a obediência teve na vida de Jesus, no seu cotidiano. “Meu alimento – diz Jesus no Evangelho de João – é fazer a vontade do Pai” e “Eu faço sempre o que é do seu agrado” (Jo 4, 34; 8, 29). A vida de Jesus é guiada por uma trilha luminosa formada pelas palavras escritas para ele na Bíblia: "Está escrito ... Está escrito". Dessa forma ele vence as tentações no deserto. Jesus deduz das Escrituras o "deve-se" (dei) que rege toda a sua vida.

A grandeza da obediência de Jesus é medida objetivamente "pelas coisas que sofreu" e subjetivamente pelo amor e pela liberdade com que ele obedeceu. Nele, a obediência filial brilha ao mais alto grau. Também nos momentos mais extremos, como quando o Pai lhe entrega o cálice da paixão para ser bebido, nos seus lábios nunca se apaga o grito filial: “Abba! Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?", exclamou na cruz (Mt 27, 46); mas ele imediatamente acrescentou, de acordo com Lucas: "Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito" (Lc 23, 46). Na cruz, Jesus "entregou-se ao Deus que o abandonava" (independente do que signifique este abandono do Pai). Esta é a obediência até à morte; esta é "a rocha da nossa salvação". 

3. A obediência como graça: o batismo

No quinto capítulo da Carta aos Romanos, São Paulo apresenta-nos Cristo como o arquétipo dos obedientes, em oposição a Adão que foi o arquétipo dos desobedientes. No capítulo seguinte, o sexto, o Apóstolo revela como entramos na esfera deste evento, isto é, através do batismo. Em primeiro lugar, São Paulo coloca um princípio: se te colocares livremente sob a jurisdição de alguém, então deves servi-lo e obedece-lo:

"Não sabeis que, quando vos ofereceis a alguém para lhe obedecer, sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado para a morte, quer da obediência para a justiça?" (Rm 6,16).

Agora, estabelecido o princípio, São Paulo lembra o facto: os cristãos, na realidade, colocaram-se livremente sob a jurisdição de Cristo, no dia em que, no batismo, aceitaram-no como seu Senhor: "Depois de terdes sido escravos do pecado, obedecestes de coração à regra da doutrina na qual tendes sido instruídos" (Rm 6,17). No batismo houve uma mudança de padrão, uma passagem de campo: do pecado à justiça, da desobediência à obediência, de Adão a Cristo. A liturgia expressou tudo isto, através da oposição: "Renuncio – Creio".

Portanto, para a vida cristã, a obediência é algo constitutivo; é a implicação prática e necessária da aceitação do senhorio de Cristo. Não há senhorio em ato, se não houver, por parte do homem, obediência. No batismo nós aceitamos um Senhor, um Kyrios, mas um Senhor "obediente", que se tornou Senhor precisamente por causa de Sua obediência (cf Fl 2, 8-11), cujo senhorio é, por assim dizer, eivado de obediência. A obediência aqui não é tanto sujeição, mas sim semelhança; obedecer a um tal Senhor é assemelhar-se a ele, porque é precisamente por causa da sua obediência até a morte, que ele obteve o nome de Senhor que está acima de todos os outros nomes (cf Fl 2, 8-9).

Deste modo, descobrimos que a obediência, antes que virtude, é dom, antes que lei, é graça. A diferença entre as duas coisas é que a lei diz fazer, enquanto a graça doa fazer. A obediência é, acima de tudo, obra de Deus em Cristo, que depois é apontada ao crente para que, por sua vez, a expresse na vida com uma fiel imitação. Nós não temos, noutras palavras, somente o dever de obedecer, mas temos também a graça de obedecer!

A obediência cristã está enraizada, portanto, no batismo; pelo batismo todos os cristãos são "votados" à obediência, fizeram, em certo sentido, "voto". A redescoberta deste dado comum, fundado no batismo, atende uma necessidade vital dos leigos na Igreja. O Concílio Vaticano II enunciou o princípio do “chamamento universal à santidade” do povo de Deus (LG, 40) e, uma vez que não há santidade sem obediência, dizer que todos os batizados são chamados à santidade é como dizer que todos são chamados à obediência, que também existe um chamamento universal à obediência. 

4. A obediência como "dever": a imitação de Cristo

Na primeira parte da Carta aos Romanos, São Paulo apresenta-nos Jesus Cristo como dom a ser acolhido com a fé, enquanto na segunda parte - a parenética – apresenta-nos Cristo como modelo a ser imitado com a vida. Estes dois aspetos da salvação também estão presentes dentro das virtudes individuais ou frutos do Espírito. Em toda virtude cristã, há um elemento misterioso e um elemento ascético, uma parte confiada à graça e uma parte confiada à liberdade. Agora chegou o momento de considerar este segundo aspecto, ou seja, a nossa imitação real da obediência de Cristo. A obediência como dever.

Assim que tentamos encontrar, através do Novo Testamento, em que consiste o dever da obediência, fazemos uma descoberta surpreendente, a saber, que a obediência é quase sempre vista como obediência a Deus. Fala-se, certamente, também de todas as outras formas de obediência: aos pais, aos chefes, aos superiores, às autoridades civis, “a toda instituição humana” (1 Pd 2,13), mas muito menos frequentemente e de maneira muito menos solene. O próprio substantivo "obediência" é usado sempre e apenas para indicar a obediência a Deus ou, em qualquer caso, a instâncias que estão do lado de Deus, exceto numa única passagem da Carta a Filemon (v. 21), onde indica a obediência ao Apóstolo.

São Paulo fala de obediência à (Rm 1, 5; 16, 26), de obediência ao ensinamento (Rm 6,17), de obediência ao Evangelho (Rm 10, 16; 2 Ts 1, 8), de obediência à Verdade (Gl 5, 7), de obediência a Cristo (2 Cor 10, 5). Encontramos a mesma linguagem também  noutros lugares no Novo Testamento (cf. At 6, 7; 1 Pd 1, 2. 22).

Mas é possível e faz sentido falar hoje de obediência a Deus, depois que a nova e viva vontade de Deus, manifestada em Cristo, foi completamente expressa e objetivada em toda uma série de leis e hierarquias? É lícito pensar que existam ainda, depois de tudo isto, “livres” vontades de Deus para serem recolhidas e cumpridas? Sim, sem dúvida! Se a viva vontade de Deus pudesse ser fechada e objetivada plena e definitivamente numa série de leis, normas e instituições, numa "ordem" estabelecida e definida de uma vez por todas, a Igreja acabaria por focar petrificada.

A redescoberta da importância da obediência a Deus é uma consequência natural da redescoberta da dimensão pneumática - ao lado da dimensão hierárquica - da Igreja e do primado, nela, da Palavra de Deus. A obediência a Deus, em outras palavras, é concebível apenas quando se afirma, como faz o Concílio Vaticano II, que o Espírito Santo "guia a Igreja a toda a verdade, a unifica na comunhão e no ministério, a instrui e a orienta com diversos dons hierárquicos e carismáticos, a embeleza com os seus frutos, com o poder do Evangelho rejuvenesce a Igreja, renova-a continuamente e a leva a uma união perfeita com o seu esposo" (LG, 40).

Somente se acreditarmos num "Senhorio" atual e pontual do Ressuscitado sobre a Igreja, somente se estamos convencidos, no íntimo, que até hoje - como diz o Salmo - "fala o Senhor, Deus dos deuses, e não está silencioso" (Sl 50, 1), só então pode-se entender a necessidade e a importância da obediência a Deus. Este é um prestar ouvidos ao Deus que fala, na Igreja, através do seu Espírito, o qual ilumina as palavras de Jesus e de toda a Bíblia e lhe dá autoridade, tornando-os canais da viva e atual vontade de Deus para nós.

Mas, como na Igreja instituição e mistério não são opostos, mas unidos, então agora devemos mostrar que a obediência espiritual a Deus não distrai da obediência à autoridade visível e institucional, mas, pelo contrário, renova-a, fortalece-a e vivifica-a, até ao ponto em que a obediência aos homens se torna o critério para julgar se existe, e se é autêntica, a obediência a Deus. Acontece exatamente como para a caridade. O primeiro mandamento é amar a Deus, mas o seu banco de prova é amar o próximo. “Quem não ama o próprio irmão que vê - escreve São João - , como pode amar a Deus que não vê?" (1 Jo 4, 20). O mesmo deve ser dito da obediência: se não obedeceres ao superior que vê, como pode s dizer obedecer a Deus, que não vês?

A obediência a Deus geralmente acontece desta maneira. Deus faz com que a sua vontade brilhe no seu coração; é uma "inspiração" que geralmente nasce de uma palavra de Deus ouvida ou lida em oração. em que te sentes "chamado" por aquela palavra ou por aquela inspiração; sentes que ela te “pede” algo novo e dizes “sim”. Caso se trate de uma decisão que terá consequências práticas, não podes agir apenas com basna tua inspiração.  Deves depositar o teu chamamento  nas mãos dos superiores ou daqueles que têm, de alguma forma, uma autoridade espiritual sobre ti, acreditando que, se é de Deus, ele a fará reconhecer pelos seus representantes.

Mas o que fazer quando há um conflito entre as duas obediências e o superior humano pede para fazer algo diferente ou oposto ao que achas que é pedido por Deus? Basta perguntar-se o que Jesus fez neste caso. Ele aceitou a obediência externa e sujeitou-se aos homens, mas, ao fazê-lo assim, não negou, mas realizou a obediência ao Pai. Precisamente isto, era de facto, o que o Pai queria. Sem saber e sem querer - às vezes de boa fé, às vezes não -, os homens, como aconteceu então, para Caifás, Pilatos e as multidões, tornam-se instrumentos para se cumprir a vontade de Deus, e não a deles.

Mesmo essa regra não é, no entanto, absoluta. A vontade de Deus e a sua liberdade podem exigir do homem – como acontece para Pedro diante da injunção do Sinédrio – que ele obedeça a Deus, em vez de aos homens (cf At 4, 19-20). Mas quem se depara neste caminho deve aceitar, como qualquer verdadeiro profeta de morrer para si mesmo (e, muitas vezes, também fisicamente), antes de ver sua palavra realizada. Na Igreja Católica, a verdadeira profecia foi sempre acompanhada pela obediência ao papa. Pe. Primo Mazzolari e Pe. Lorenzo Milani são alguns exemplos recentes.

Obedecer apenas quando o que o superior diz corresponde exatamente às nossas ideias e às nossas escolhas, não é obedecer a Deus, mas a nós mesmos; não é fazer a vontade de Deus, mas a própria vontade. Se, no caso de disparidade, em vez de se auto-questionar, se coloca o superior em dúvida, o seu discernimento e a sua competência, não somos mais obedientes, mas objetores. 

5. Uma obediência aberta sempre e a todos

A obediência a Deus é a obediência que  podemos sempre fazer. De obediências a ordens e autoridades visíveis, acontece apenas ocasionalmente, três ou quatro vezes na vida, falando de obediências de uma certa seriedade. De obediências a Deus, no entanto, há muitas. Quanto mais alguém obedece, mais as ordens de Deus se multiplicam, porque ele sabe que este é o dom mais lindo que pode fazer, aquele que fez ao seu amado Filho Jesus. Quando Deus encontra uma alma determinada a obedecer, então ele toma pela mão a sua vida, como se pega no leme de um barco, ou como nas rédeas de um carro. Ele torna-se realmente, e não só na teoria, “Senhor”, ou seja, aquele que “rege”, que “governa” determinando, pode-se dizer, momento a momento, os gestos, as palavras daquela pessoa, o seu modo de usar o tempo, tudo.

Eu disse que a obediência a Deus é algo que pode sempre ser feito. Devo acrescentar que é também a obediência que todos podemos fazer, tanto súbditos quanto superiores. É costume dizer-se que é preciso saber obedecer para poder comandar. Não é apenas um princípio de bom senso; há uma razão teológica nisso. Significa que a verdadeira fonte da autoridade espiritual reside mais na obediência do que no título ou cargo de que se cobre. Conceber a autoridade como obediência significa não se contentar com a mera autoridade, mas também aspirar àquela autoridade que vem do facto de que Deus está por trás de si e apoia a tua decisão. Significa aproximar-se daquele tipo de autoridade que emanava da ação de Cristo e exortava as pessoas a perguntarem maravilhadas: "O que é isto? Uma nova doutrina ensinada com autoridade "(Mc 1, 27).

Na verdade, é uma autoridade diferente, um poder real e eficaz, não somente nominal ou de ofício, um poder intrínseco, não extrínseco. Quando uma ordem é dada por um pai ou um superior que se esforça para viver na vontade de Deus, que orou antes e não tem interesses pessoais para defender, mas apenas o bem do irmão ou do seu filho, então a própria autoridade de Deus age como um reforço para essa ordem ou decisão. Se surgir uma disputa, Deus diz ao seu representante o que ele disse um dia a Jeremias: "Eis que eu faço de ti como uma fortaleza, como uma parede de bronze [...]. Eles irão guerrear contigo, mas não vão vencer, porque eu estou contigo "(Jr 1, 18s). Santo Inácio de Antióquia dava este sábio conselho a um dos seus discípulos e colega do episcopado, São Policarpo: "Que nada se faça sem o seu consentimento, mas não faças nada sem o consentimento de Deus[1]”.

Este modo de obediência a Deus não tem nada de místico e extraordinário, mas está aberto a todos os batizados. Consiste em "apresentar as perguntas a Deus" (cf Ex 18, 19). Eu posso decidir sozinho fazer ou não fazer uma viagem, um emprego, uma visita, uma despesa e depois, uma vez decidido, rezar a Deus pelo sucesso do assunto. Mas se nasce em mim o amor pela obediência a Deus, então, farei diferente: primeiro perguntarei a Deus com um meio muito simples ao alcance de todos – a oração – se é a sua vontade que eu faça aquela viagem, aquele trabalho, aquela visita, aquela despesa, e depois farei, ou não, a coisa, mas ela já será, de qualquer forma, um ato de obediência a Deus, e não mais uma iniciativa livre minha.

Normalmente, é claro que não ouvirei, na minha breve oração, nenhuma voz e não terei nenhuma resposta explícita sobre o que fazer, ou, pelo menos, não é necessário que haja para que a minha ação seja obediência. Ao atuar assim, de facto, submeti a questão a Deus, despi-me da minha vontade, renunciei ao decidir sozinho e dei a Deus uma possibilidade para intervir, se quiser, na minha vida. Qualquer coisa que eu decida fazer, regulando-me com os critérios comuns de discernimento, será obediência a Deus. É dessa forma que se entregam as rédeas da vida a Deus! A vontade de Deus penetra, desta forma, sempre mais no tecido de uma existência, embelezando-a e tornando-a um "sacrifício vivo, santo e agradável a Deus" (Rm 12, 1).

Também desta vez terminamos com as palavras de um salmo que nos permite transformar em oração o ensinamento que nos foi dado pelo Apóstolo. Um dia que estava cheio de alegria e de gratidão pelos benefícios do seu Deus ("Esperei, esperei no Senhor e ele se inclinou sobre mim [...]; tirou-me da cova da morte..."), num verdadeiro estado de graça, o salmista pergunta o que pode fazer para responder a tanta bondade de Deus: oferecer holocaustos, vítimas? Compreende imediatamente que isso não é o que Deus quer dele; é muito pouco para expressar o que está no coração. E eis que surge a intuição e a revelação: o que Deus deseja dele é uma decisão generosa e solene de cumprir, a partir de agora, tudo o que Deus deseja dele, de obedecê-lo em tudo. Então ele exclama:

"Eis que venho.

Sobre mim está escrito no pergaminho do livro, que eu faça a tua vontade.

Meus Deus, isso eu desejo,

a tua lei está nas profundezas do meu coração”

Entrando no mundo, Jesus fez suas estas palavras dizendo: "Eis que eu venho fazer, ó Deus, a vossa vontade" (Hb 10, 5 ss). Agora é a nossa vez. Toda a vida, dia a dia, pode ser vivida sob essas palavras: "Eis que eu venho, ó Deus, para fazer a tua vontade!". Na parte da manhã, ao iniciar um novo dia, depois ao ir a um compromisso, a um encontro, ao começar um novo trabalho: “Eis que venho, ó Deus, fazer a tua vontade!”

Nós não sabemos o que, naquele dia, aquele encontro, aquele trabalho nos reservará; sabemos uma coisa somente com certeza: que queremos fazer neles, a vontade de Deus. Nós não sabemos o que reserva a cada um de nós o nosso porvir; mas é lindo caminhar em direção a ele com esta palavra nos lábios: "Eis que eu venho, ó Deus, para fazer a tua vontade!".
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[1] Santo Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo 4, 1.

(Tradução de Thácio Siqueira)
 
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