21 novembro, 2017

Prelúdio da obra "Portugal Católico"

O que é o “Portugal Católico”?
 
Agradeço aos Professores José Carlos Seabra Pereira e José Eduardo Franco, bem como a todos os autores, colaboradores e editores desta obra, a tentativa de responder à pergunta, de modo tão amplo e original entre nós.Porque tanto o substantivo como o adjetivo são difíceis. Porque a sua conjugação ainda mais.

Comecemos pelo substantivo “Portugal”. Politicamente designa um país. Foi uma terra nortenha, em torno de Gaia, um condado que veio até Coimbra, depois até Lisboa, depois mais para sul, já como reino. No século XIII ganhou fronteiras continentais que no século XV se alargaram pelo oceano. Entre 1815 e 1822 foi o reino unido de Portugal, Brasil e Algarves. De então para cá foi-se arduamente definindo como é hoje, Continente, Madeira e Açores.

Politicamente é assim, no concerto das nações, existindo sob vários regimes, quatro dinastias e três repúblicas no que à chefia do Estado respeita, hoje uma democracia entre as democracias da União Europeia. Rondaremos os quinze milhões, os portugueses, se contarmos os dez do país e os outros da diáspora com os descendentes de uma, duas e mais gerações, já plurinacionais tantos deles.

Culturalmente, é mais difícil a definição, se é que é possível. Tratando-se de terra amanhada, agricultura, vá que não vá, mas tentando melhores dias doutra maneira. O Portugal da terra e das terras, dos povoados e do povo, esse é estudável na etnografia, visível e audível no folclore. Mas quando descola da terra, ou quando da terra descola para outros voos de pensamento e expressão, a cultura do espírito torna-se mais densa e imprevisível. - Até onde chega Portugal como cultura portuguesa, como voz ou saudade da terra, como literatura ou como canção, arte plástica ou abstração filosófica? Senti-lo é possível, quando nos toca ou nos dói, especialmente quando estamos fora, finalmente quando regressamos. Defini-lo, delimitá-lo, não. E ainda bem assim, ou não teríamos poesia, que só acontece de dentro ou de longe. Portuguesmente, adivinha-se entre o nevoeiro. “Entre as brumas da memória”, como canta o hino.

Nem por isso menos verdadeiro, mas por isso menos passível de definições. A ideia que temos do que fomos projeta no passado o que queremos ser no futuro. A verdade é o que somos hoje. E a verdade do passado é o que nos sobra apesar de tudo. O chão que pisamos e nos é comum, ainda que sejamos diversos nas histórias contadas e nas memórias escolhidas. De “pátria” podemos falar, enquanto terra dos pais, nos herdados e deserdados que somos conforme os casos. E ainda como terra que queremos legar, sendo cada um seu “pai” para o melhor futuro de quem vier a seguir. E assim mesmo Portugal designa a corresponsabilidade atual de nós todos.

Ligando política e cultura, como vimos fazendo, incluímos necessariamente o legado religioso que nos chega. Plural também, dentro da unidade que o termo indica. “Religião” vem de ligação, do sentimento espontâneo de não estarmos sós nem desprendidos dos outros e dum Outro que nos une a todos. Este Outro, ganhou vários nomes e outras tantas qualidades. Por vezes nem se definiu em termos propriamente individuais, vagando entre o animismo que o adivinha em todo o lado e a conveniência de que esteja algures, abstratamente mais longe ou pragmaticamente mais perto, pertíssimo quando é preciso.No espaço português há sinais de tudo isto. Começou pela religiosidade espontânea, chamada “pagã” porque própria do campo, da água e da terra, da chuva e do sol, da vida e da morte, tendo vários nomes para designar o parecido. Subsiste sempre, com a força do que brota e com o perigo de não crescer. De não passar da terra ao céu, de não olhar as estrelas ou além delas, de não se libertar de si própria, de fazer do ciclo das estações do ano a rotina encerrada das vidas.

Chegaram-nos, entretanto, outros legados religiosos. Judeus, cristãos e muçulmanos trouxeram-nos um Deus único, garantia e desafio à unidade de todos, criaturas suas. O mais presente na totalidade sociocultural que somos foi o cristianismo. Fala-nos de um Deus que tanto nos transcende como nos incarna, tomando em Jesus a condição humana em que ganha rosto, voz e companhia.

Aqui chegados, tomamos o adjetivo que o título desta obra acrescenta: Portugal “Católico”.

Como disse acima, é difícil a definição e a conjugação dos termos. De Portugal, pois ao descolar da terra como povo e sentimento ultrapassa os limites de si próprio. De Católico, porque designando correntemente uma aceção específica do cristianismo global, inscreve-se no âmbito religioso, mais fácil de verificar nas expressões do que de captar como convicção.Diga-se, porém, que na tripartição habitual do cristianismo, muito imprecisa aliás, entre catolicismo, ortodoxia e protestantismo, o primeiro acentua a ligação a Roma e algo a que podemos chamar sacramentalidade. Por sacramentalidade podemos entender a expressão física da realidade espiritual, qual consequência da incarnação de Deus em Cristo; e a quase tangibilidade de Cristo, omnipresente porque ressuscitado, em múltiplos sinais que o manifestam. Na tradição católica estes são sobretudo os sete sacramentos. Mas alargam-se em muitos outros, como que prolongado a incarnação, pois dalgum modo a ecoam. Aqui os templos, aqui a literatura, aqui a arte; aqui a própria organização social, quando pretenda aproximar a cidade terrena da mística cidade de Deus, isto é, realizar aquela convivência nova entre os homens a que Jesus chamava o “Reino”.  

Estes aspetos sacramentais do cristianismo, que a tradição católica particularmente acentua, nem sempre mantiveram um cunho exclusivamente “religioso”, podendo mundanizar-se demais. Toda a tradição católica vive desta tensão, conhecendo sucessivos movimentos de reforma que lhe lembram um Reino que “não é deste mundo”, como o próprio Cristo acentuou, mas nem por isso quis fora do mundo. O nosso património sociocultural e institucional, cujas variadas expressões esta obra recolhe na atualidade a que chegámos, manifesta essa tensão nas artes e nas letras, nos claustros e no mundo, na ciência, na economia, na vida sociopolítica.

Uma tensão criativa. Porque, não sendo fácil a conjugação de tal verdade divina com tanta variedade humana, humanização de Deus e divinização do homem oferecem-nos uma totalidade múltipla que nos desafia sempre mais. Assim acontece mundo além, assim acontece em Portugal. Com tanta surpresa como esta obra recolhe, com tanto futuro como assim mesmo promete.    

Manuel Clemente
Patriarcado de Lisboa

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