03 janeiro, 2017

Papa Francisco: carta aos bispos do mundo inteiro


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(RV) “Hoje, entre o nosso povo, infelizmente, ouve-se ainda a lamentação e o pranto de tantas mães, de tantas famílias, pela morte dos seus filhos, dos seus filhos inocentes”: é o que afirma o Papa Francisco na Carta enviada aos bispos do mundo inteiro por ocasião da Festa dos Santos Inocentes, celebrada na última quarta-feira, dia 28 de Dezembro do ano apenas transacto.

Hoje, disse Francisco na missiva, dia dos Santos Inocentes, enquanto continuam a ressoar nos nossos corações as palavras do anjo aos pastores «anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador» (Lc 2, 10-11), senti a necessidade de te escrever. Faz-nos bem ouvir uma vez mais este anúncio; ouvir dizer de novo que Deus está no meio do nosso povo. Esta certeza, que renovamos de ano para ano, é fonte da nossa alegria e da nossa esperança.

Como pastores, continua o Papa, fomos chamados para ajudar a fazer crescer esta alegria no meio do nosso povo. É-nos pedido que cuidemos desta alegria. Desejo, contigo, renovar o convite a que não nos deixemos roubar esta alegria, pois muitas vezes desiludidos – não sem razão – com a realidade, com a Igreja, ou mesmo desiludidos com nós próprios, sentimos a tentação de nos apegar a uma tristeza melosa, sem esperança, que se apodera dos corações (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 83).

Entretanto, observa ainda o Santo Padre, a nosso malgrado, o Natal é acompanhado também pelo pranto. Os evangelistas não se permitiram mascarar a realidade para a tornar mais credível ou atraente; não se permitiram criar um fraseado «bonito», mas irreal; para eles, o Natal não era um refúgio imaginário onde esconder-se perante os desafios e as injustiças do seu tempo. Ao contrário, anunciam-nos o nascimento do Filho de Deus envolvido também numa tragédia de dor. No-lo apresenta com grande crueza o evangelista Mateus, citando o profeta Jeremias: «Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto; é Raquel que chora os seus filhos» (2, 18). É o gemido de dor das mães que choram a morte de seus filhos inocentes, causada pela tirania e desenfreada sede de poder de Herodes.

Um gemido que podemos continuar a ouvir também hoje, sublinha o Pontífice, que nos toca a alma e que não podemos nem queremos ignorar ou silenciar. Hoje, entre o nosso povo, infelizmente – e isto, disse o Papa, escrevo-o com profundo pesar –, ouve-se ainda a lamentação e o pranto de tantas mães, de tantas famílias, pela morte dos seus filhos, dos seus filhos inocentes.

Por conseguinte, sublinha ainda Francisco, contemplar o presépio é também contemplar este pranto, é também aprender a escutar o que acontece ao nosso redor e ter um coração sensível e aberto à dor do próximo, especialmente quando se trata de crianças, e é também ser capaz de reconhecer que ainda hoje se está a escrever este triste capítulo da história. Contemplar o presépio, isolando-o da vida que o circunda, seria fazer do Natal uma linda fábula que despertaria em nós bons sentimentos, mas privar-nos-ia da força criadora da Boa Nova que o Verbo Encarnado nos quer dar. E a tentação existe...

E o Papa pergunta-se: Pode-se, por ventura, viver a alegria cristã, voltando as costas a estas realidades? Pode-se realizar a alegria cristã, ignorando o gemido do irmão, das crianças?

Hoje, a exemplo de S. José, que, disse o Santo Padre, foi o primeiro a ser chamado a guardar a alegria da Salvação perante os crimes que estavam a acontecer ao seu redor, é pedido o mesmo também a nós, pastores: ser homens capazes de ouvir sem ser surdos à voz do Pai e, deste modo, poder ser mais sensíveis à realidade que nos rodeia. Hoje, tendo por modelo São José, somos convidados a não deixar que nos roubem a alegria; somos convidados a defendê-la dos Herodes dos nossos dias. E precisamos de coragem, como São José, para aceitar esta realidade, levantar-nos e meter-lhe mãos (cf. Mt 2, 20). A coragem para a proteger dos novos Herodes dos nossos dias, que malbaratam a inocência das nossas crianças. Uma inocência dilacerada sob o peso do trabalho ilegal e escravo, sob o peso da prostituição e da exploração. Inocência destruída pelas guerras e pela emigração forçada com a perda de tudo o que isso implica. Milhares de crianças nossas caíram nas mãos de bandidos, de máfias, de mercadores de morte cuja única coisa que fazem é malbaratar e explorar as suas necessidades.

Hoje, apenas como exemplo, 75 milhões de crianças – por causa das emergências e das crises prolongadas – tiveram de interromper a sua instrução. Em 2015, 68% da totalidade das pessoas objeto de tráfico sexual no mundo eram crianças. Por outro lado, um terço das crianças que tiveram de viver fora do seu país, fê-lo por deslocamento forçado. Vivemos num mundo onde quase metade das crianças que morrem com menos de 5 anos é por desnutrição. Calcula-se que, no ano de 2016, 150 milhões de crianças realizaram um trabalho infantil, muitas delas vivendo em condições de escravidão. Segundo o último relatório elaborado pela UNICEF, se a situação mundial não mudar, em 2030 serão 167 milhões as crianças que viverão em pobreza extrema, 69 milhões de crianças com menos de 5 anos morrerão entre 2016 e 2030, e 60 milhões de crianças não frequentarão a escolaridade básica.

Ouçamos então disse o Papa, o pranto e a lamentação destas crianças; ouçamos também o pranto e a lamentação da nossa mãe Igreja, que chora não apenas pela dor provocada aos seus filhos mais pequeninos, mas também porque conhece o pecado de alguns dos seus membros: o sofrimento, a história e a dor dos menores que foram abusados sexualmente por sacerdotes. Pecado que nos cobre de vergonha. Pessoas que tinham à sua responsabilidade o cuidado destas crianças, destruíram a sua dignidade. Deploramos isso profundamente e pedimos perdão. Solidarizamo-nos com a dor das vítimas e, por nossa vez, choramos o pecado: o pecado que aconteceu, o pecado de omissão de assistência, o pecado de esconder e negar, o pecado de abuso de poder. Também a Igreja chora amargamente este pecado dos seus filhos e pede perdão.

Hoje, recordando o dia dos Santos Inocentes, quero que renovemos o nosso empenho total para que tais atrocidades não voltem a acontecer entre nós. Revistamo-nos da coragem necessária para promover todos os meios necessários e proteger em tudo a vida das nossas crianças, para que tais crimes nunca mais se repitam. Assumamos, clara e lealmente, a determinação «tolerância zero» neste campo, disse o Santo Padre.


Texto integral

Querido irmão!

Hoje, dia dos Santos Inocentes, enquanto continuam a ressoar nos nossos corações as palavras do anjo aos pastores «anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador» (Lc 2, 10-11), senti necessidade de te escrever. Faz-nos bem ouvir uma vez mais este anúncio; ouvir dizer de novo que Deus está no meio do nosso povo. Esta certeza, que renovamos de ano para ano, é fonte da nossa alegria e da nossa esperança.

Nestes dias, podemos experimentar como a liturgia nos toma pela mão e conduz ao coração do Natal, introduzindo-nos no Mistério e levando-nos pouco a pouco à fonte da alegria cristã.

Como pastores, fomos chamados para ajudar a fazer crescer esta alegria no meio do nosso povo. É-nos pedido que cuidemos desta alegria. Desejo, contigo, renovar o convite a que não nos deixemos roubar esta alegria, pois muitas vezes desiludidos – não sem razão – com a realidade, com a Igreja, ou mesmo desiludidos com nós próprios, sentimos a tentação de nos apegar a uma tristeza melosa, sem esperança, que se apodera dos corações (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 83).

A nosso malgrado, o Natal é acompanhado também pelo pranto. Os evangelistas não se permitiram mascarar a realidade para a tornar mais credível ou atraente; não se permitiram criar um fraseado «bonito», mas irreal; para eles, o Natal não era um refúgio imaginário onde esconder-se perante os desafios e injustiças do seu tempo. Ao contrário, anunciam-nos o nascimento do Filho de Deus envolvido também numa tragédia de dor. No-lo apresenta com grande crueza o evangelista Mateus, citando o profeta Jeremias: «Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto; é Raquel que chora os seus filhos» (2, 18). É o gemido de dor das mães que choram a morte de seus filhos inocentes, causada pela tirania e desenfreada sede de poder de Herodes.

Um gemido que podemos continuar a ouvir também hoje, que nos toca a alma e que não podemos nem queremos ignorar ou silenciar. Hoje, entre o nosso povo, infelizmente – escrevo-o com profundo pesar –, ouve-se ainda a lamentação e o pranto de tantas mães, de tantas famílias, pela morte dos seus filhos, dos seus filhos inocentes.

Contemplar o presépio é também contemplar este pranto, é também aprender a escutar o que acontece em redor e ter um coração sensível e aberto à dor do próximo, especialmente quando se trata de crianças, e é também ser capaz de reconhecer que ainda hoje se está a escrever este triste capítulo da história. Contemplar o presépio, isolando-o da vida que o circunda, seria fazer do Natal uma linda fábula que despertaria em nós bons sentimentos, mas privar-nos-ia da força criadora da Boa Nova que o Verbo Encarnado nos quer dar. E a tentação existe...

Pode-se viver a alegria cristã, voltando as costas a estas realidades? Pode-se realizar a alegria cristã, ignorando o gemido do irmão, das crianças?

O primeiro chamado a guardar a alegria da Salvação foi São José. Perante os crimes atrozes que estavam a acontecer, São José – exemplo de homem obediente e fiel – foi capaz de ouvir a voz de Deus e a missão que o Pai lhe confiava. E porque soube ouvir a voz de Deus e se deixou guiar pela sua vontade, tornou-se mais sensível àquilo que o rodeava e soube ler, com realismo, os acontecimentos.

Hoje é pedido o mesmo também a nós, pastores: ser homens capazes de ouvir sem ser surdos à voz do Pai e, deste modo, poder ser mais sensíveis à realidade que nos rodeia. Hoje, tendo por modelo São José, somos convidados a não deixar que nos roubem a alegria; somos convidados a defendê-la dos Herodes dos nossos dias. E precisamos de coragem, como São José, para aceitar esta realidade, levantar-nos e meter-lhe mãos (cf. Mt 2, 20). A coragem para a proteger dos novos Herodes dos nossos dias, que malbaratam a inocência das nossas crianças. Uma inocência dilacerada sob o peso do trabalho ilegal e escravo, sob o peso da prostituição e da exploração. Inocência destruída pelas guerras e pela emigração forçada com a perda de tudo o que isso implica. Milhares de crianças nossas caíram nas mãos de bandidos, de máfias, de mercadores de morte cuja única coisa que fazem é malbaratar e explorar as suas necessidades.

Hoje, apenas como exemplo, 75 milhões de crianças – por causa das emergências e das crises prolongadas – tiveram de interromper a sua instrução. Em 2015, 68% da totalidade das pessoas objeto de tráfico sexual no mundo eram crianças. Por outro lado, um terço das crianças que tiveram de viver fora do seu país, fê-lo por deslocamento forçado. Vivemos num mundo onde quase metade das crianças que morrem com menos de 5 anos é por desnutrição. Calcula-se que, no ano de 2016, 150 milhões de crianças realizaram um trabalho infantil, muitas delas vivendo em condições de escravidão. Segundo o último relatório elaborado pela UNICEF, se a situação mundial não mudar, em 2030 serão 167 milhões as crianças que viverão em pobreza extrema, 69 milhões de crianças com menos de 5 anos morrerão entre 2016 e 2030, e 60 milhões de crianças não frequentarão a escolaridade básica.

Ouçamos o pranto e a lamentação destas crianças; ouçamos também o pranto e a lamentação da nossa mãe Igreja, que chora não apenas pela dor provocada aos seus filhos mais pequeninos, mas também porque conhece o pecado de alguns dos seus membros: o sofrimento, a história e a dor dos menores que foram abusados sexualmente por sacerdotes. Pecado que nos cobre de vergonha. Pessoas que tinham à sua responsabilidade o cuidado destas crianças, destruíram a sua dignidade. Deploramos isso profundamente e pedimos perdão. Solidarizamo-nos com a dor das vítimas e, por nossa vez, choramos o pecado: o pecado que aconteceu, o pecado de omissão de assistência, o pecado de esconder e negar, o pecado de abuso de poder. Também a Igreja chora amargamente este pecado dos seus filhos e pede perdão. Hoje, recordando o dia dos Santos Inocentes, quero que renovemos o nosso empenho total para que tais atrocidades não voltem a acontecer entre nós. Revistamo-nos da coragem necessária para promover todos os meios necessários e proteger em tudo a vida das nossas crianças, para que tais crimes nunca mais se repitam. Assumamos, clara e lealmente, a determinação «tolerância zero» neste campo.

A alegria cristã não é uma alegria que se constrói à margem da realidade, ignorando-a ou fazendo de conta que não existe. A alegria cristã nasce duma chamada – a mesma que recebeu São José – para «tomar» e proteger a vida, especialmente a dos santos inocentes de hoje. O Natal é um tempo que nos desafia a guardar a vida e ajudá-la a nascer e crescer; a renovar-nos como pastores corajosos. Esta coragem que gera dinâmicas capazes de tomar consciência da realidade que estão a viver hoje muitas das nossas crianças e de trabalhar por lhes garantir as condições necessárias para que a sua dignidade de filhos de Deus seja não só respeitada, mas também e sobretudo defendida.

Não deixemos que lhes roubem a alegria. Não nos deixemos roubar a alegria, guardemo-la e ajudemo-la a crescer.

Façamos isto com a mesma fidelidade paterna de São José e deixando-nos guiar pela mão de Maria, a Mãe da ternura, para que não se endureça o nosso coração.

Com fraterna estima

Francisco

Vaticano, Festa dos Santos Inocentes, Mártires,

28 de dezembro de 2016

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