22 janeiro, 2019

Homilia de D. Nuno Brás na Solenidade de São Vicente

Foto de Luís Moreira
Patriarcado de Lisboa


1. O martírio de S. Vicente, que teve lugar em Valência, num dia como o de hoje, 22 de Janeiro, durante a perseguição de Diocleciano, marcou profundamente a Igreja. Mesmo para além da Península. Prova disso são os 5 sermões que nos chegaram, da autoria de Santo Agostinho, pregados 100 anos após o martírio de Vicente, no Norte de África, e já passado o tempo da perseguição.

Para além das leituras da Sagrada Escritura, naquela ocasião era também lida a narração do martírio do Diácono de Saragoça, que a todos comovia. E dessa narração — sublinha com frequência Agostinho — sobressai a serenidade do Mártir, em contraste com a impaciência, o desespero de Daciano, o perseguidor. “Se considerarmos a perturbação violenta do perseguidor e a serenidade daquele que sofria os tormentos, é muito fácil — diz S. Agostinho — perceber quem era esmagado pelas tribulações, e quem lhes era superior. Como serão as alegrias daqueles que reinam na verdade, se são tão intensas as alegrias daqueles que morrem pela verdade?” (Serm 275,2).

Trata-se de uma serenidade que não encontra a sua origem no próprio mártir e nas suas forças, mas em Deus: “À dor intensa dos membros, unia-se a firmeza serena das palavras, como se a sofrer os tormentos fosse um e, a falar, fosse um outro. E — diz ainda Agostinho — era, de facto, outro a falar; o Senhor anunciou, com efeito, e prometeu-o aos seus mártires, dizendo: Não sereis vós a falar, mas é o Espírito do vosso Pai que fala em vós”.

2. O mártir, dos primeiros séculos ou de hoje, sempre foi olhado pelos cristãos com uma particular presença de Jesus. E o martírio — quer dizer, a perseverança até sofrer a morte por causa de uma perseguição motivada pelo ódio à fé — sempre foi entendido como uma epifania, uma manifestação singular da presença de Jesus ressuscitado, vencedor da morte, no meio da comunidade e no meio do tempo. Bem diferente de qualquer fanatismo ou até mesmo de qualquer irracionalidade, o martírio cristão é a proclamação de como a Vida divina, habitando em nós, nos ultrapassa e é superior, e de como a sua negação conduziria ao real aniquilamento da própria existência humana.

Por isso, apesar de derrotado aos olhos do mundo; apesar de o carrasco o procurar silenciar, o mártir é sempre vencedor. Di-lo ainda o Santo Bispo de Hipona, logo no início de um dos seus sermões por ocasião da festa de hoje, jogando com a origem do nome Vicente: “Com os olhos da fé admirámos um espectáculo magnífico: o mártir Vicente, sempre vencedor. Vence nas palavras, vence nos tormentos, vence na confissão, vence na tribulação, vence quando é queimado pelo fogo, vence quando é submergido nas águas; vence, finalmente, na tortura, vence como morto. Quando o seu corpo, marcado pelo trofeu de Cristo vencedor, é deitado ao mar, dizia, murmurando: Somos abandonados, mas não é o fim para nós. […] Um duro combate traz muita glória, não humana nem transitória, mas divina e eterna. É a fé a combater e, quando é a fé a conduzir a luta, ninguém a consegue vencer no corpo” (Serm 274,1).

3. O martírio é a condição do cristão. Não pode ser outra a condição habitual da sua vida, da nossa vida. Na fragilidade do que somos; nas limitações próprias da natureza humana criada, e nas limitações que o pecado sempre gera em nós, manifesta-se, paradoxalmente, o amor de Deus, a vida divina. E não podemos escondê-lo. A condição do cristão é aquela de transportar consigo um tesouro, o da vida divina, que o ultrapassa desmesuradamente. Mas, até pela própria limitação do humano, há-de brilhar, cada vez mais claramente, o Deus connosco.

E se essa é a condição quotidiana do cristão; se nele não pode deixar de aparecer em cada instante o esplendor da glória de Deus; a epifania da vida divina torna-se ainda mais evidente (até por maior contraste) nos momentos de sofrimento e tristeza.

E essa presença é ainda mais manifesta num contexto de perseguição. Quando somos perseguidos, essa é a ocasião de dar testemunho: “Sereis levados, por minha causa, à presença de governadores e de reis para dar testemunho diante deles e dos pagãos” (Mt 10,18), como acabámos de escutar. E nessa ocasião precisa, convida-nos Jesus a deixar que seja o Pai a falar: “o Espírito do vosso Pai falará em vós” (Mt 10,20).

Sabemos como, no mundo inteiro, o cristianismo é hoje a religião mais perseguida. Em muitos lugares são as leis dos Estados que proíbem a vida cristã, com a prisão e não raras vezes até com a pena de morte. E contam-se anualmente em várias centenas os sacerdotes, religiosos ou leigos que são martirizados pelo simples facto de serem cristãos e de proclamarem e viverem a fé. Uma notícia de há dias, quantificava em mais de 4.300 os cristãos mortos por causa da fé, ao longo do ano de 2018.

Mas não menos grave é aquela perseguição, tão presente nos países ocidentais, e mesmo entre nós, que procura silenciar os cristãos e o anúncio do Evangelho com todas as suas consequências; que nos quer impedir de falar e de agir publicamente, apenas por defendermos um modo de existir contrário à comum doutrina estabelecida pelo mundo; que condena com preconceitos, não raras vezes disfarçados de dogmas científicos; que julga na praça pública que são os Meios de Comunicação Social, sem estar à partida disponível para escutar as razões da fé; que procura impedir a normalidade do testemunho, do aparecer cristão em escolas, hospitais, comunicação social, empresas.

Há-de ser também nessas ocasiões que não deixaremos de seguir o exemplo de S. Vicente, que é o exemplo de Jesus. Havemos então, com toda a serenidade, de dar voz ao Espírito, de deixar que o Pai fale em nós — com a constância serena e firme de quem não se mostra a si mesmo (que temos para mostrar de nós? Somos pobres pecadores que não desistem de se reerguer e de acolher a misericórdia, procurando que ela nos vá transformando, como o Papa Francisco não se cansa de nos recordar), com a constância serena e firme de quem não se mostra a si mesmo, mas de quem faz aparecer na fragilidade transitória da sua vida, a Cristo, o Homem novo e definitivo.

3. Queridos diáconos da nossa diocese, que olhais para S. Vicente como vosso especial padroeiro, também ele diácono como vós: Vicente, sabemo-lo, pregava com eloquência. De tal modo que Daciano não hesitou em enviar o Bispo Valério para o exílio, mas em condenar à morte o seu diácono. E, Vicente, o diácono de Saragoça, eloquente que era no anúncio do Evangelho, disse muito mais com o testemunho da sua vida, entregue até ao fim, que com as suas palavras e pregações.

E ainda hoje o seu martírio continua a proclamar em nós e connosco a vitória do Ressuscitado, a vitória da fé. Seja a vossa vida assim eloquente. Seja a nossa vida assim eloquente.
D. Nuno Brás, Bispo Auxiliar de Lisboa

Sé Patriarcal, 22 de janeiro de 2019

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