Religião e sociedade
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Poderemos usar os termos “vertical” e “horizontal” para ilustrar a relação entre religião e sociedade. Brotam da própria natureza que assim mesmo se apresenta, entre grandes áreas de planura e grandes cortes para o alto. Não é por acaso que os humanos que somos olhamos espontaneamente para o alto quando exultamos ou quando tememos. Os mais antigos traços com que nos inscrevemos em paredes de grutas ou em manufaturas próprias revelam esta tensão vertical-horizontal. Vale o que vale como imagem, entre outras possíveis, mas mantem-se relativamente adequada.
Na apresentação que vou fazer sobre o tema, adianto desde já a ideia base: quando as condições de vida são precárias, ressalta mais a verticalidade; quando ganham consistência, ressalta mais a horizontalidade – querendo isto dizer que os olhares e as expetativas são mais do “terra a terra”, propriamente dito. Veremos que no respeitante à relação religião – sociedade, não ficamos necessariamente por aqui, só por aqui.
Na verdade, o ser humano almeja sempre mais do que aquilo que consegue, mesmo quando já consegue muito. Especialmente quando consegue tanto que ainda lhe apetece tudo. Diz-se que “a necessidade aguça o engenho”. Mas também se manifesta que, quanto mais engenhosos nos fazemos, mais engenhosa se torna a imaginação e mais criativa se torna a vida. Aí mesmo nos transcendemos na busca da verdade, do bem e do belo. Nos verticalizamos, para usar a imagem, nos domínios do pensamento, da solidariedade e da arte. Como que nos arrancamos do chão que já pisamos para “a nova terra e os novos céus” de que fala a religião.
De que fala concretamente a tradição bíblica, em que historicamente nos situamos, os portugueses. Não exclusivamente, mas como referência cultural maior. É sobretudo a esta tradição que me referirei nestas linhas.
Fustel de Coulanges, historiador francês, evidenciou-nos n’ A cidade antiga (1864), que a sociedade teve naturalmente a sua origem nos vínculos familiares, religiosamente assegurados. Reparou ele, compulsando testemunhos greco-romanos, que tais núcleos se sustentavam de geração em geração em torno de antepassados comuns, sucessivamente sepultados no mesmo lugar. Alargavam-se com o tempo, de filhos para netos, bisnetos, trinetos, e por ai adiante, mas mantinham-se solidários pela referência ancestral comum. “Património” significava, antes de mais, a terra onde estavam sepultados os pais. Honrá-los, protegia a terra e os descendentes. A própria palavra “religião” vem do étimo latino que, na opinião mais corrente, significa “religar”, para que constantemente se mantivesse a relação ascendente, pois daquela terra sepulcral se desprendia uma proteção permanente.
Tanto mais que tudo o resto era precário, quase insuportavelmente precário. Gerar era espontâneo, nascer era mais difícil e sobreviver dificílimo. A expetativa horizontal era encurtada pelo ataque dalgum inimigo animal ou humano, mais ou menos previsto. A saúde era um pequeno entreato de múltiplas doenças, geralmente fatais. Os vestígios que nos deixaram são frágeis ou rudimentares. Armas ou coisas comuns de cozinhar ou trabalhar. Alguns objetos dirão mais do que isso, exatamente como apelos verticais, de desejo ou pedido, sabe-se lá para onde, sabe-se lá para quem. Algum antepassado, mais ou menos espectral, seria o mais frequente.
Com o tempo, os núcleos familiares alargaram-se e até se conjugaram com outros, fratria a fratria, tribo a tribo. Por necessidades de defesa e por enriquecimento genético. Recordamos, por exemplo, a memória do “rapto das sabinas”, com que os primeiros romanos teriam incorporado a tribo vizinha, com este modo sui generis de encontrar mulher…
Mas eram também os romanos a manter a agregação familiar básica com o culto dos seus manes protetores, ou seja dos respetivos antepassados. Quando a urbe cresceu e se tornou império, também cultuou os deuses – os próprios e os dos povos submetidos –, somado aos protetores dalguns os protetores do todo. Para eles se transpôs um sentimento filial que, aliás não esquecia o culto mais restrito de cada família. Também não é por acaso que a palavra piedade – a pietas romana – transporta o sentimento filial primitivo, mesmo que alargado a outras divindades.
Assim foi em geral. Para os judeus, porém, tal seria impossível. Agregação de doze tribos que se referiam a um antepassado comum – Abraão – recordavam a saída do cativeiro egípcio, quando no século XIII a. C. Moisés de lá os tirara, obedecendo à ordem de Javé, e os conduzira à terra da promessa. Aí instalados, mesmo quando a partir do século X a.C. se constituiu a monarquia e o contacto e as alianças com outros povos os podiam seduzir com outros deuses e cultos, os sucessivos profetas os chamavam à fidelidade ao Deus único. Também quando, a partir do século III a.C., o helenismo imperante na esteira de Alexandre e dos selêucidas, os instigava aos costumes estrangeiros. Foi o tempo da revolta teocrática dos Macabeus. No tempo de Jesus, eram um povo ocupado e integrado no Império Romano, resistindo ao politeísmo mas mantendo o javismo como religião basicamente sua, familiar portanto.
Com Jesus Cristo, tal radicação étnica desfez-se. Assumindo algumas previsões universalistas dos antigos profetas, transcendeu as referências religiosas mais comuns – a terra, o sangue e os mortos – afirmando que Deus pode ser adorado em qualquer lugar, desde que “em espirito e verdade”; que a verdadeira família é a de todos os que escutam a Deus; e que o sepultamento dos pais vale menos que as urgências dos vivos 1).
Como se concluirá, tal proposta universalista, mesmo se correspondia a aspirações manifestadas um pouco por todo o Império, porá em causa a unidade política conseguida no tempo de Augusto, Tibério e sucessores. Unidade que era materialmente garantida pelas legiões, institucionalmente pelas leis e religiosamente pelo culto dos mesmos deuses protetores – e até do próprio imperador que não por acaso ganhou esse título religioso de “Augusto”.
Daqui o motivo, porventura o mais forte, das perseguições aos cristãos do Império Romano, até ao princípio do século IV. É um exemplo típico e recorrente do que pode ser a relação disfuncional entre religião e sociedade, quando esta faz duma crença específica – religiosa ou ideológica que seja – a sua autodefinição securitária e exclusiva. Quando a isto se junta a precaridade das vidas e o receio dos inimigos, a horizontalidade é absorvida pela verticalidade, num bloco compacto onde não há lugar para hesitações nem divergências. Tudo passa a ser necessariamente assim, em nome duma finalidade imediata, sem tempo nem espaço para olhar bem para si nem para o lado, na larga planura onde afinal vivemos nós e os outros.
Os cristãos da antiga Roma conseguiram resistir às perseguições, especialmente as últimas e mais drásticas do tempo de Diocleciano (final do século III e começo do IV). Vários escreveram apologias, garantindo que o facto de não adorarem os deuses não os fazia menos fiéis ao Império. Mas bastava algum cataclismo, alguma peste, ou a pressão de inimigos na fronteira para que a perseguição se desencadeasse.
Entretanto, terá sido a resistência dos cristãos a convencer Constantino a dar-lhes a paz em 313. Esperaria poder encontrar na nova fé um reforço da unidade do Império. No fim desse século, com o imperador Teodósio, o cristianismo passou mesmo a ser a religião oficial de Roma. Até ao fim do Império Romano do Ocidente, os imperadores tentaram tal fusão socio-religiosa, tanto mais quanto a pressão dos bárbaros foi sempre em crescendo. Mesmo quando graves questões doutrinais dividiram internamente os próprios cristãos (arianismo e subsequentes).
Com o fim do Império do Ocidente (476), podia-se ter entrado noutro período socio-religioso, uma vez que ao poder central sucederam-se poderes regionais e mais ou menos efémeros, das monarquias germânicas ou outras, aliás nem todas católicas quando se instalaram. A fragilidade das condições de vida e sobrevivência, em fase de ruralização geral – sem segurança pública não há comércio e sem comércio não há cidades -, levava à verticalidade espontânea, mas esta podia significar o reforço dos cultos ancestrais e polarizados nas forças da natureza: ventos fortes ou trovoadas estrepitosas, montanhas ou nascentes de água, árvores singulares ou pedras alçadas, tudo com nome ou mesmo sem ele. Autores cristãos do fim do Império e do começo da Idade Média admiravam-se dos cultos “bárbaros”, em torno da força natural ou militar, concretizado numa árvore ou numa espada. Mas, além de razões de outra ordem, foi à “força” superior do Deus cristão que vários dos novos chefes se converteram, atribuindo-lhe segurança e vitória.
Aliás, do que ruíra em termos políticos e administrativos, pouco mais sobrou do que instituições cristãs, como dioceses e mosteiros. Mosteiros que estavam particularmente capacitados para resistir ao desmantelamento da organização imperial e urbana, especialmente os que sobreviviam por si e mantinham uma fixação local que os tornava polos de atração e refúgio, tanto físico como espiritual – especialmente os que seguiam a Regra de S. Bento, do século VI em diante. Eram como estacas firmes no meio da enxurrada.
O facto das instituições cristãs terem sobrevivido à desestruturação geral do fim do Império do Ocidente ocasionou que se tornassem polos irradiantes da sociocultura que se seguiu. De tal modo assim foi que a própria Europa nos seus contornos atuais teve a sua raiz na irradiação monástica que, entre o século V e o X foi integrando os povos da Ibéria à Rússia e da Irlanda a Itália no que se chamou “cristandade” ou seus equivalentes. Movimento espontâneo ou mais ligado a alguns centros eclesiásticos, como Roma ou Constantinopla (Bizâncio). E não esqueçamos que a cultura monástica, passando também pela agricultura, transfigura sempre a verticalidade espontânea em culto divino. Dos mosteiros da Alta Idade Média às altíssimas torres das catedrais góticas esta verticalidade marcou muitos séculos europeus.
O tempo das grandes catedrais – do século XII em diante – é também o do renascimento comercial e urbano. Trocam-se de novo mercadorias e ideias. Nos claustros de catedrais, mosteiros e conventos (estes mais urbanos), abrem-se espaços de culto e cultura, donde sairão também as Universidades. Com tudo isto alargam-se as vistas, redobra-se a atenção às coisas e aos factos, reforça-se a horizontalidade.
Sobressaltos como a Peste Negra (1348) que dizima em pouco tempo grande parte da população europeia, serão também erupções verticais, suscitando sentimentos fortes de “fim do mundo”, geralmente imediatistas e exclusivistas, em termos socio-religiosos também. Mas havia quem se mantivesse mais sereno.
Desta serenidade intelectual e espiritual saiu o humanismo. Da vida que apesar de tudo continuava, do comércio e das navegações ultramarinas que tantos horizontes alargaram, nasceu a modernidade. Também se reforçaram as organizações políticas e o controlo estatal, cada governo por si e aplicando em seu favor o que o antigo direito concedia ao Império ou o que os cânones estipulavam para o campo eclesiástico. Por todas estas vias a horizontalidade consolidou-se, gerindo mais o dia-a-dia, respondendo mais diretamente às necessidades correntes ou sobrevindas, perscrutando cientificamente a natureza, aplicando tecnicamente as soluções. Desenvolveu-se concomitantemente um novo grupo social, de pessoas que decidiam por si e conseguiam meios para isso, sem estar tão dependentes de outrem. Os avanços da democracia política firmaram-se por esta via.
Assim despontou um novo otimismo. Persistente até quando grandes cataclismos sobrevinham, como aconteceu com o terramoto de Lisboa de 1755, que tantas interrogações levantou na Europa de então. Mas já era tudo bastante sólido cá pela terra para que se demorasse muito a olhar para o alto.
- Daí para cá, que poderemos somar? A progressiva implantação de regimes constitucionais – como que recriando a sociedade por pactos de indivíduos livres e iguais em direitos, que lhes garantissem a felicidade e, quanto possível, já na terra; o desenvolvimento científico e tecnológico que horizontaliza o campo de busca e os modos de o sondar a aproveitar em benefício prático; a concentração urbana, onde se pode hoje passar a vida inteira sem sequer olhar para o céu, tantas são as sugestões e os convites imediatos; a dispensa de sair de onde se está para ter o mundo mediaticamente ao dispor… Tudo isto pôs em causa a antiga verticalidade espontânea ou forçosa, como também adia a ocasião para a aceitar como dimensão necessária. Pode levar, de resto, a uma horizontalidade encerrada em si própria, de ser cada um agora e por si. Mesmo as imagens de migrações em massa de populações desesperadas, podem ficar por serem apenas imagens, de ligar e desligar, sem provocar reações para mais alto e mais além. Também as práticas comunitárias que religavam ao Alto os povos de cada terra foram e são contrariadas pela pulverização sociocultural dos nossos dias.
Acredito que nos encontraremos mais à frente, sem perder o chão que pisamos nem o céu que continuamos a sonhar. Numa sociedade tão tocada pela tradição cristã, mesmo que secularizada, as duas dimensões, vertical e horizontal, cruzam-se necessariamente, pois não há céu sem terra e sem os outros e a verticalidade está na intenção absoluta com que se vivem as coisas mais relativas e comezinhas. Aliás, as grandes tradições religiosas propõem-se salvar os homens, tanto no tempo como além do tempo.
Termino com duas citações atuais. Massimo Cacciari, filósofo e ex-presidente da Câmara de Veneza, em entrevista de há um mês, interrogava-se assim: «- Pode haver um fim convincente que não se constitua religiosamente? E o Governo o que é? É a potência que faz durar um Estado ou é a potência que guia em direção a um fim? Toda a política contemporânea se debate com estes problemas, que têm um fundamento de ordem religiosa, teológica, e sem ela não podem ser compreendidos». E, mesmo considerando que a secularização da sociedade e da política só podia ter acontecido em territórios tocados pelo Cristianismo, dada a distinção evangélica entre autoridade religiosa e poder politico, adianta que o futuro tem de conjugar-se entre os dois níveis, certamente sem confusão mas não dispensando finalidades: «A política teve sempre uma dimensão escatológica, foi sempre determinada por um fim que superava o estado de coisas presente. E qual é o drama atual? É que a política já não sabe indicar um fim. Então deixamos governar a potência técnico-económica. E daí advém a situação trágica de crise. […] A forma política sem autoridade espiritual é impotente, mas a autoridade espiritual que não se encarna politicamente é igualmente impotente» 2).
Não pretenderá o autor decerto voltar a fundir a horizontalidade secular com a verticalidade religiosa, e muito menos confundi-las. Lembrará, isso sim, o papel que os largos desígnios desempenham como motivação sociocultural comprovada. Também por isso o Presidente Macron, pediu recentemente às religiões presentes em França que não deixem de ter expressão pública e cívica na sociedade de todos, em interculturalidade criativa 3).
Por seu lado, Martin Rees, astrofísico britânico, considerou recentemente, referindo-se à encíclica “ecológica” Laudato si´ do Papa Francisco, publicada em 2015 para motivar o subsequente acordo climático de Paris: «Isto leva-me a pensar que, geralmente, as religiões no mundo podem de facto ter um efeito positivo nestas questões. Independentemente do que pensamos sobre a Igreja Católica, e eu não sou crente, ela tem um alcance global, pensa a longo prazo e quer saber dos pobres no mundo. É por isso que pode ser eficaz. Os políticos normalmente centram-se no curto prazo e em questões locais. Se as religiões conseguem que os seus seguidores pensem sobre o ambiente e o clima, então terão um bom efeito» 4).Creio que este é um bom modo de colocar a questão e concluir por agora o assunto. Faz eco aliás à sentença evangélica de que “as árvores se conhecem pelos frutos”. Essencialmente na vida de cada um em favor dos outros, sem ultrapassar os direitos de ninguém. Esses mesmos que veem expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Manuel Clemente
Lisboa, Teatro da Trindade, 22 de maio de 2018
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1) Cf. CLEMENTE, Manuel, A fé do povo. Compreender a religiosidade popular, Lisboa, Paulus, 2013, p. 99-100. COULANGES, Fustel de, A cidade antiga, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1957, vol. 2, p. 243: «O Cristianismo trouxe ainda outras inovações. Deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião nacional de qualquer cidade ou de qualquer raça. O Cristianismo não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o seu início, chamou a si toda a humanidade. Jesus Cristo ensina aos seus discípulos: “Ide e instruí todos os povos”».
2) CACCIARI, Massimo, «A política já não sabe indicar um fim», Público-Domingo, 22 de abril de 2018, p. 13.
3) Discours du Président de la Republique devant les Evêques de France, Paris, Collège des Bernardins, 9 de abril de 2018.
4) REES, Martin, «Sou um otimista tecnológico, mas um pessimista político», Público, 15 de janeiro de 2018, p. 25.
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Conferência ao Cidsénior
(Movimento Cidadania Sénior)
Poderemos usar os termos “vertical” e “horizontal” para ilustrar a relação entre religião e sociedade. Brotam da própria natureza que assim mesmo se apresenta, entre grandes áreas de planura e grandes cortes para o alto. Não é por acaso que os humanos que somos olhamos espontaneamente para o alto quando exultamos ou quando tememos. Os mais antigos traços com que nos inscrevemos em paredes de grutas ou em manufaturas próprias revelam esta tensão vertical-horizontal. Vale o que vale como imagem, entre outras possíveis, mas mantem-se relativamente adequada.
Na apresentação que vou fazer sobre o tema, adianto desde já a ideia base: quando as condições de vida são precárias, ressalta mais a verticalidade; quando ganham consistência, ressalta mais a horizontalidade – querendo isto dizer que os olhares e as expetativas são mais do “terra a terra”, propriamente dito. Veremos que no respeitante à relação religião – sociedade, não ficamos necessariamente por aqui, só por aqui.
Na verdade, o ser humano almeja sempre mais do que aquilo que consegue, mesmo quando já consegue muito. Especialmente quando consegue tanto que ainda lhe apetece tudo. Diz-se que “a necessidade aguça o engenho”. Mas também se manifesta que, quanto mais engenhosos nos fazemos, mais engenhosa se torna a imaginação e mais criativa se torna a vida. Aí mesmo nos transcendemos na busca da verdade, do bem e do belo. Nos verticalizamos, para usar a imagem, nos domínios do pensamento, da solidariedade e da arte. Como que nos arrancamos do chão que já pisamos para “a nova terra e os novos céus” de que fala a religião.
De que fala concretamente a tradição bíblica, em que historicamente nos situamos, os portugueses. Não exclusivamente, mas como referência cultural maior. É sobretudo a esta tradição que me referirei nestas linhas.
Fustel de Coulanges, historiador francês, evidenciou-nos n’ A cidade antiga (1864), que a sociedade teve naturalmente a sua origem nos vínculos familiares, religiosamente assegurados. Reparou ele, compulsando testemunhos greco-romanos, que tais núcleos se sustentavam de geração em geração em torno de antepassados comuns, sucessivamente sepultados no mesmo lugar. Alargavam-se com o tempo, de filhos para netos, bisnetos, trinetos, e por ai adiante, mas mantinham-se solidários pela referência ancestral comum. “Património” significava, antes de mais, a terra onde estavam sepultados os pais. Honrá-los, protegia a terra e os descendentes. A própria palavra “religião” vem do étimo latino que, na opinião mais corrente, significa “religar”, para que constantemente se mantivesse a relação ascendente, pois daquela terra sepulcral se desprendia uma proteção permanente.
Tanto mais que tudo o resto era precário, quase insuportavelmente precário. Gerar era espontâneo, nascer era mais difícil e sobreviver dificílimo. A expetativa horizontal era encurtada pelo ataque dalgum inimigo animal ou humano, mais ou menos previsto. A saúde era um pequeno entreato de múltiplas doenças, geralmente fatais. Os vestígios que nos deixaram são frágeis ou rudimentares. Armas ou coisas comuns de cozinhar ou trabalhar. Alguns objetos dirão mais do que isso, exatamente como apelos verticais, de desejo ou pedido, sabe-se lá para onde, sabe-se lá para quem. Algum antepassado, mais ou menos espectral, seria o mais frequente.
Com o tempo, os núcleos familiares alargaram-se e até se conjugaram com outros, fratria a fratria, tribo a tribo. Por necessidades de defesa e por enriquecimento genético. Recordamos, por exemplo, a memória do “rapto das sabinas”, com que os primeiros romanos teriam incorporado a tribo vizinha, com este modo sui generis de encontrar mulher…
Mas eram também os romanos a manter a agregação familiar básica com o culto dos seus manes protetores, ou seja dos respetivos antepassados. Quando a urbe cresceu e se tornou império, também cultuou os deuses – os próprios e os dos povos submetidos –, somado aos protetores dalguns os protetores do todo. Para eles se transpôs um sentimento filial que, aliás não esquecia o culto mais restrito de cada família. Também não é por acaso que a palavra piedade – a pietas romana – transporta o sentimento filial primitivo, mesmo que alargado a outras divindades.
Assim foi em geral. Para os judeus, porém, tal seria impossível. Agregação de doze tribos que se referiam a um antepassado comum – Abraão – recordavam a saída do cativeiro egípcio, quando no século XIII a. C. Moisés de lá os tirara, obedecendo à ordem de Javé, e os conduzira à terra da promessa. Aí instalados, mesmo quando a partir do século X a.C. se constituiu a monarquia e o contacto e as alianças com outros povos os podiam seduzir com outros deuses e cultos, os sucessivos profetas os chamavam à fidelidade ao Deus único. Também quando, a partir do século III a.C., o helenismo imperante na esteira de Alexandre e dos selêucidas, os instigava aos costumes estrangeiros. Foi o tempo da revolta teocrática dos Macabeus. No tempo de Jesus, eram um povo ocupado e integrado no Império Romano, resistindo ao politeísmo mas mantendo o javismo como religião basicamente sua, familiar portanto.
Com Jesus Cristo, tal radicação étnica desfez-se. Assumindo algumas previsões universalistas dos antigos profetas, transcendeu as referências religiosas mais comuns – a terra, o sangue e os mortos – afirmando que Deus pode ser adorado em qualquer lugar, desde que “em espirito e verdade”; que a verdadeira família é a de todos os que escutam a Deus; e que o sepultamento dos pais vale menos que as urgências dos vivos 1).
Como se concluirá, tal proposta universalista, mesmo se correspondia a aspirações manifestadas um pouco por todo o Império, porá em causa a unidade política conseguida no tempo de Augusto, Tibério e sucessores. Unidade que era materialmente garantida pelas legiões, institucionalmente pelas leis e religiosamente pelo culto dos mesmos deuses protetores – e até do próprio imperador que não por acaso ganhou esse título religioso de “Augusto”.
Daqui o motivo, porventura o mais forte, das perseguições aos cristãos do Império Romano, até ao princípio do século IV. É um exemplo típico e recorrente do que pode ser a relação disfuncional entre religião e sociedade, quando esta faz duma crença específica – religiosa ou ideológica que seja – a sua autodefinição securitária e exclusiva. Quando a isto se junta a precaridade das vidas e o receio dos inimigos, a horizontalidade é absorvida pela verticalidade, num bloco compacto onde não há lugar para hesitações nem divergências. Tudo passa a ser necessariamente assim, em nome duma finalidade imediata, sem tempo nem espaço para olhar bem para si nem para o lado, na larga planura onde afinal vivemos nós e os outros.
Os cristãos da antiga Roma conseguiram resistir às perseguições, especialmente as últimas e mais drásticas do tempo de Diocleciano (final do século III e começo do IV). Vários escreveram apologias, garantindo que o facto de não adorarem os deuses não os fazia menos fiéis ao Império. Mas bastava algum cataclismo, alguma peste, ou a pressão de inimigos na fronteira para que a perseguição se desencadeasse.
Entretanto, terá sido a resistência dos cristãos a convencer Constantino a dar-lhes a paz em 313. Esperaria poder encontrar na nova fé um reforço da unidade do Império. No fim desse século, com o imperador Teodósio, o cristianismo passou mesmo a ser a religião oficial de Roma. Até ao fim do Império Romano do Ocidente, os imperadores tentaram tal fusão socio-religiosa, tanto mais quanto a pressão dos bárbaros foi sempre em crescendo. Mesmo quando graves questões doutrinais dividiram internamente os próprios cristãos (arianismo e subsequentes).
Com o fim do Império do Ocidente (476), podia-se ter entrado noutro período socio-religioso, uma vez que ao poder central sucederam-se poderes regionais e mais ou menos efémeros, das monarquias germânicas ou outras, aliás nem todas católicas quando se instalaram. A fragilidade das condições de vida e sobrevivência, em fase de ruralização geral – sem segurança pública não há comércio e sem comércio não há cidades -, levava à verticalidade espontânea, mas esta podia significar o reforço dos cultos ancestrais e polarizados nas forças da natureza: ventos fortes ou trovoadas estrepitosas, montanhas ou nascentes de água, árvores singulares ou pedras alçadas, tudo com nome ou mesmo sem ele. Autores cristãos do fim do Império e do começo da Idade Média admiravam-se dos cultos “bárbaros”, em torno da força natural ou militar, concretizado numa árvore ou numa espada. Mas, além de razões de outra ordem, foi à “força” superior do Deus cristão que vários dos novos chefes se converteram, atribuindo-lhe segurança e vitória.
Aliás, do que ruíra em termos políticos e administrativos, pouco mais sobrou do que instituições cristãs, como dioceses e mosteiros. Mosteiros que estavam particularmente capacitados para resistir ao desmantelamento da organização imperial e urbana, especialmente os que sobreviviam por si e mantinham uma fixação local que os tornava polos de atração e refúgio, tanto físico como espiritual – especialmente os que seguiam a Regra de S. Bento, do século VI em diante. Eram como estacas firmes no meio da enxurrada.
O facto das instituições cristãs terem sobrevivido à desestruturação geral do fim do Império do Ocidente ocasionou que se tornassem polos irradiantes da sociocultura que se seguiu. De tal modo assim foi que a própria Europa nos seus contornos atuais teve a sua raiz na irradiação monástica que, entre o século V e o X foi integrando os povos da Ibéria à Rússia e da Irlanda a Itália no que se chamou “cristandade” ou seus equivalentes. Movimento espontâneo ou mais ligado a alguns centros eclesiásticos, como Roma ou Constantinopla (Bizâncio). E não esqueçamos que a cultura monástica, passando também pela agricultura, transfigura sempre a verticalidade espontânea em culto divino. Dos mosteiros da Alta Idade Média às altíssimas torres das catedrais góticas esta verticalidade marcou muitos séculos europeus.
O tempo das grandes catedrais – do século XII em diante – é também o do renascimento comercial e urbano. Trocam-se de novo mercadorias e ideias. Nos claustros de catedrais, mosteiros e conventos (estes mais urbanos), abrem-se espaços de culto e cultura, donde sairão também as Universidades. Com tudo isto alargam-se as vistas, redobra-se a atenção às coisas e aos factos, reforça-se a horizontalidade.
Sobressaltos como a Peste Negra (1348) que dizima em pouco tempo grande parte da população europeia, serão também erupções verticais, suscitando sentimentos fortes de “fim do mundo”, geralmente imediatistas e exclusivistas, em termos socio-religiosos também. Mas havia quem se mantivesse mais sereno.
Desta serenidade intelectual e espiritual saiu o humanismo. Da vida que apesar de tudo continuava, do comércio e das navegações ultramarinas que tantos horizontes alargaram, nasceu a modernidade. Também se reforçaram as organizações políticas e o controlo estatal, cada governo por si e aplicando em seu favor o que o antigo direito concedia ao Império ou o que os cânones estipulavam para o campo eclesiástico. Por todas estas vias a horizontalidade consolidou-se, gerindo mais o dia-a-dia, respondendo mais diretamente às necessidades correntes ou sobrevindas, perscrutando cientificamente a natureza, aplicando tecnicamente as soluções. Desenvolveu-se concomitantemente um novo grupo social, de pessoas que decidiam por si e conseguiam meios para isso, sem estar tão dependentes de outrem. Os avanços da democracia política firmaram-se por esta via.
Assim despontou um novo otimismo. Persistente até quando grandes cataclismos sobrevinham, como aconteceu com o terramoto de Lisboa de 1755, que tantas interrogações levantou na Europa de então. Mas já era tudo bastante sólido cá pela terra para que se demorasse muito a olhar para o alto.
- Daí para cá, que poderemos somar? A progressiva implantação de regimes constitucionais – como que recriando a sociedade por pactos de indivíduos livres e iguais em direitos, que lhes garantissem a felicidade e, quanto possível, já na terra; o desenvolvimento científico e tecnológico que horizontaliza o campo de busca e os modos de o sondar a aproveitar em benefício prático; a concentração urbana, onde se pode hoje passar a vida inteira sem sequer olhar para o céu, tantas são as sugestões e os convites imediatos; a dispensa de sair de onde se está para ter o mundo mediaticamente ao dispor… Tudo isto pôs em causa a antiga verticalidade espontânea ou forçosa, como também adia a ocasião para a aceitar como dimensão necessária. Pode levar, de resto, a uma horizontalidade encerrada em si própria, de ser cada um agora e por si. Mesmo as imagens de migrações em massa de populações desesperadas, podem ficar por serem apenas imagens, de ligar e desligar, sem provocar reações para mais alto e mais além. Também as práticas comunitárias que religavam ao Alto os povos de cada terra foram e são contrariadas pela pulverização sociocultural dos nossos dias.
Acredito que nos encontraremos mais à frente, sem perder o chão que pisamos nem o céu que continuamos a sonhar. Numa sociedade tão tocada pela tradição cristã, mesmo que secularizada, as duas dimensões, vertical e horizontal, cruzam-se necessariamente, pois não há céu sem terra e sem os outros e a verticalidade está na intenção absoluta com que se vivem as coisas mais relativas e comezinhas. Aliás, as grandes tradições religiosas propõem-se salvar os homens, tanto no tempo como além do tempo.
Termino com duas citações atuais. Massimo Cacciari, filósofo e ex-presidente da Câmara de Veneza, em entrevista de há um mês, interrogava-se assim: «- Pode haver um fim convincente que não se constitua religiosamente? E o Governo o que é? É a potência que faz durar um Estado ou é a potência que guia em direção a um fim? Toda a política contemporânea se debate com estes problemas, que têm um fundamento de ordem religiosa, teológica, e sem ela não podem ser compreendidos». E, mesmo considerando que a secularização da sociedade e da política só podia ter acontecido em territórios tocados pelo Cristianismo, dada a distinção evangélica entre autoridade religiosa e poder politico, adianta que o futuro tem de conjugar-se entre os dois níveis, certamente sem confusão mas não dispensando finalidades: «A política teve sempre uma dimensão escatológica, foi sempre determinada por um fim que superava o estado de coisas presente. E qual é o drama atual? É que a política já não sabe indicar um fim. Então deixamos governar a potência técnico-económica. E daí advém a situação trágica de crise. […] A forma política sem autoridade espiritual é impotente, mas a autoridade espiritual que não se encarna politicamente é igualmente impotente» 2).
Não pretenderá o autor decerto voltar a fundir a horizontalidade secular com a verticalidade religiosa, e muito menos confundi-las. Lembrará, isso sim, o papel que os largos desígnios desempenham como motivação sociocultural comprovada. Também por isso o Presidente Macron, pediu recentemente às religiões presentes em França que não deixem de ter expressão pública e cívica na sociedade de todos, em interculturalidade criativa 3).
Por seu lado, Martin Rees, astrofísico britânico, considerou recentemente, referindo-se à encíclica “ecológica” Laudato si´ do Papa Francisco, publicada em 2015 para motivar o subsequente acordo climático de Paris: «Isto leva-me a pensar que, geralmente, as religiões no mundo podem de facto ter um efeito positivo nestas questões. Independentemente do que pensamos sobre a Igreja Católica, e eu não sou crente, ela tem um alcance global, pensa a longo prazo e quer saber dos pobres no mundo. É por isso que pode ser eficaz. Os políticos normalmente centram-se no curto prazo e em questões locais. Se as religiões conseguem que os seus seguidores pensem sobre o ambiente e o clima, então terão um bom efeito» 4).Creio que este é um bom modo de colocar a questão e concluir por agora o assunto. Faz eco aliás à sentença evangélica de que “as árvores se conhecem pelos frutos”. Essencialmente na vida de cada um em favor dos outros, sem ultrapassar os direitos de ninguém. Esses mesmos que veem expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Manuel Clemente
Lisboa, Teatro da Trindade, 22 de maio de 2018
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1) Cf. CLEMENTE, Manuel, A fé do povo. Compreender a religiosidade popular, Lisboa, Paulus, 2013, p. 99-100. COULANGES, Fustel de, A cidade antiga, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1957, vol. 2, p. 243: «O Cristianismo trouxe ainda outras inovações. Deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião nacional de qualquer cidade ou de qualquer raça. O Cristianismo não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o seu início, chamou a si toda a humanidade. Jesus Cristo ensina aos seus discípulos: “Ide e instruí todos os povos”».
2) CACCIARI, Massimo, «A política já não sabe indicar um fim», Público-Domingo, 22 de abril de 2018, p. 13.
3) Discours du Président de la Republique devant les Evêques de France, Paris, Collège des Bernardins, 9 de abril de 2018.
4) REES, Martin, «Sou um otimista tecnológico, mas um pessimista político», Público, 15 de janeiro de 2018, p. 25.
Patriarcado de Lisboa
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