A oportunidade diária da felicidade e da paz
Caros senhores e amigos, é com muito gosto e adesão que vos acolho na catedral de Lisboa, para esta Santa Missa que solicitastes, pela abertura do Ano Judicial. O gosto vem da muita estima e consideração em que tenho o vosso serviço a bem da justiça. A adesão vem da concidadania que nos liga para o bem de todos, segundo a responsabilidade própria de cada um.
Como sabeis, no tempo em que se ergueram as naves desta catedral, boa parte da justiça e da respetiva administração passava pelo âmbito eclesiástico e canónico. Daqui partiam normativas que incidiam na vida da população em geral. Tempos sucederam a tempos, da antiga sociedade sacral para a moderna sociedade secular, não secularista, que não por acaso se desenvolveu em zonas tocadas pela fermentação evangélica. E se, hoje em dia, afirmamos maior distinção dos campos – cumprindo, aliás, a indicação do próprio Cristo, para «dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mt 22, 21) –, nem por isso deixamos de voltar aqui, onde tudo assinala o princípio e o fim do que se vive e convive.
As realidades temporais, lembrou o Concílio Vaticano II, gozam de justa autonomia, mas nem por isso deixam de referir-se a pessoas, que têm maior densidade e destino. Recordemos um passo fundamental da Constituição Gaudium et Spes: «Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. […] Se, porém, com as palavras “autonomia das realidades temporais” se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste» (GS, 36).
Esta celebração, caros senhores e amigos, na abertura do Ano Judicial, significa da vossa parte a disposição de viver e trabalhar a partir de Deus e com Deus. O mesmo é dizer que, conscientes das exigências da justiça, as quereis cumprir a partir da Fonte. Dessa mesma Fonte que, enquanto crentes, encontrais em Deus. Em Deus, constante Criador de tudo e de todos, e por isso mesmo princípio de igualdade, solidariedade e justiça – e seu primeiro e último reivindicador também.
Justiça, virtude humana com significado próprio. O Catecismo da Igreja Católica diz-nos que «as virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da vontade, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a razão e a fé» (CIC, 1804). E, quanto à justiça, especifica: «A justiça é a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se “virtude da religião”. Para com os homens, a justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum» (CIC, 1807).
Uma definição essencial: A Justiça consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. Sendo constante e firme, tal vontade é propriamente “virtude”, força moral inabalável. Duas indicações operativas: 1ª) A justiça leva a respeitar os direitos de cada qual; 2ª) A justiça leva a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum. Objetivos interdependentes: respeitar os direitos, estabelecer a harmonia, promover a equidade.
Entendereis vós, caríssimos senhores, e entendereis bem: Com tal definição e tais indicações, a Justiça passa necessariamente por cada um de vós, no respetivo trabalho, aqui também celebrado. Mas garante-se além de vós, com o próprio Deus, nesta Missa invocado. Por isso aqui estais, por vós e por outros. A isso me associo também, com gosto e adesão.
A tradição bíblica que herdámos e prolongamos, une sempre teoria e prática. Se quisermos, teoriza a prática, ou mais apropriadamente ao seu mundo e cultura, revela o ser no acontecer. É assim que, quando Jesus quer falar da proximidade ativa, concretiza-a na parábola do Bom Samaritano. Quando quer falar da misericórdia recuperadora, conta a parábola do Filho Pródigo. Quando inculca responsabilidade, conta a parábola dos Talentos… Foi o seu modo próprio e muito coincidente com a sua condição de Verbo de Deus Incarnado. Teve tal acerto que se tornou cultura comum e até para além do âmbito confessional. É como “Bom Samaritano”, por exemplo, que hoje referimos tantos benfeitores da humanidade por esse mundo além ou aquém. E não faltam bons exemplos no mundo da justiça.
Nas leituras que ouvimos – que são comuns à Igreja neste dia – temos duas excelentes ilustrações disso mesmo. Ao começardes o Ano Judicial, podem servir-vos também de inspiração. A primeira refere-se a um grande exemplo de justiça na sua aceção interpessoal, como o deu Jónatas entre o seu pai Saúl e o seu amigo David. A segunda refere-se à personalidade como revelação progressiva, que supera oposições ou apoios momentâneos.
Vejamos o caso de Jónatas, exemplo acabado de justiça interpessoal. Depois duma campanha militar bem-sucedida contra os filisteus, o jovem David foi mais aclamado do que o rei Saúl. E Saúl - diz o texto - «começou a ver David com maus olhos». Tão maus olhos, que já o queria matar. Por seu lado, Jónatas, filho de Saúl, não se importou com a estrela ascendente de David, mesmo que o pudesse deixar na sombra. É em favor da mais pura e desinteressada justiça que intervém junto do rei: «Não queira o rei fazer mal ao seu servo David. Ele não te fez nenhum mal; pelo contrário, tudo o que ele fez foi muito vantajoso para ti».
Esta intervenção desassombrada de Jónatas harmonizou as coisas durante algum tempo. Foi uma boa demonstração do passo do Catecismo que citámos acima: «A justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum».
As tradições de Saúl, Jónatas e David levam-nos para mil anos antes de Cristo; agora, quando já se cumpriram mais dois mil sobre a sua vinda, continuam plenas de revelação. A boa justiça restabelece a relação na verdade e, só assim, proporciona a paz.
Referindo-se a pessoas, a cada pessoa e à verdade pessoal de cada um, a justiça tem o seu tempo – o tempo que revela o ser. Assim também compreenderemos a resposta de Jesus no Evangelho, demorando uma revelação que devia ser doutro modo. Uma revelação que só com o tempo aconteceria, manifestando a sua verdade pessoal de “Filho de Deus”. A uma aclamação indevida – pois, sendo objetivamente justa, não tinha boa proveniência nem era oportuna – Jesus «proibia-lhes severamente que o dessem a conhecer».
Será este, para todos nós como sociedade, um ensinamento também. A justiça tem naturalmente o seu tempo e o seu processo. Mas há de considerar-se que antes, durante e depois de cada caso julgado, há a revelação da pessoa, que nos exige uma atenção permanente e positiva. Não foi por acaso que os estabelecimentos para cumprimento das penas se chamaram “penitenciárias”, um nome de origem cristã que transporta oportunidade de regeneração e reinserção social, mesmo e já em liberdade. Só assim saberemos realmente quem sejam – eles e nós.
Caríssimos senhores e amigos, servidores da justiça na sociedade que somos. Desejo-vos um novo Ano Judicial muito feliz, daquela felicidade que só alcançamos no arco completo da boa e justa relação com Deus e com os outros. Por isso o vosso trabalho será, ele mesmo e para cada um de vós, a oportunidade diária da felicidade e da paz.
Sé de Lisboa, 18 de janeiro de 2018
+ Manuel Clemente
Patriarcado de Lisboa
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