30 março, 2015

Homilia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor

«Aparecendo como homem, humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz»

Irmãos caríssimos: Levaremos uma vida inteira a assimilar o que um primitivo hino cristão logo nos disse assim, com tão admirada precisão. E, quando daqui tirarmos toda a consequência que devemos, teremos encontrado – ou reencontrado – o que havemos de ser no mundo, para o sermos depois em Deus. Dito doutro modo, para aprendermos na atitude de Cristo o que Deus realmente é; e para vivermos no Espírito de Cristo a comunhão trinitária que nos é oferecida.
Abre-se com esta celebração dos Ramos a Semana Maior da vida de Cristo, em que tudo se consuma e oferece, d’Ele para nós. E cada momento é sacramental, pois nos transmite, em gesto e palavra, o que Cristo é como Deus incarnado e o que havemos de ser, porque humanos em divinização. Palavra a palavra, passo a passo, para O seguirmos deveras e com Ele ressuscitarmos depois.
Fixemo-nos então no que já vimos e ouvimos. Do jumentinho em que entrou em Jerusalém à cruz onde O mataram depois. Tudo tão extraordinário na religiosidade comum, como definitivo na religião que Deus quer: extraordinário, pois não o imaginaríamos assim; definitivo, pois não chegam os séculos para esgotar a lição.
É verdade que uma antiga profecia indicava desse modo a entrada do Messias Rei. Mas era mais uma profecia por cumprir, tão dissonante e diferente das entradas comuns dos poderosos – e ontem como hoje, apesar dalguma simplificação dos costumes. Aliás, na tentação do pináculo do templo, a proposta fora bem mais espetacular…
Quando nos projetamos, é geralmente “em grande” que o fazemos. Ou em termos de ostentação, ultrapassando em aparência o que realmente somos, para coincidir ao máximo com o que gostaríamos de ser. Hoje em dia, quase chegamos ao cume desta inveterada tendência, qual jogo de espelhos em que nos escolhêssemos à vez e iludindo o que realmente somos - ou não somos... Coisa tanto mais insensata, quanto a substância pessoal é pouca, no que toca a valores básicos e práticas congruentes.
Podíamos divagar aqui sobre a deriva modista e consumista da pós-modernidade em que estamos, tão excessiva na futilidade como na errância de gostos e dispêndios. Mas basta reparar no tratamento que se dá à quadra pascal, com tanta atenção distraída, alusões sem nexo, aspetos periféricos e contradições flagrantes com a seriedade dos factos evocados...
De tudo isto alguma coisa haveria, quando Jesus entrou em Jerusalém. Sempre era uma festa, e uma grande festa, quando na Páscoa antiga afluíam multidões, com o alvoroço de ver e ouvir coisas pouco habituais e em espaços grandiosos. Jesus, porém, entrava como ouvimos, compreendendo alguns o sinal, perguntando outros o que era e seguindo a sua vida os demais.
Daí a dias, poucos dias, alguns dos que gritavam hossanas já lhe exigiam a morte, como sempre sucede no mundo dos entusiasmos fugazes, e hoje como então. Não o faremos cruentamente, mas não é escassa a alternância de grandes aclamações com grandes abandonos, para não falar em traições.
E Jesus, na palavra lembrada, no sinal repetido, na humildade dos crentes, realmente crentes, continua a entrar na cidade…
É certo que O aclamamos, como repetidamente acontece, quando nós e até os media nos rendemos a um testemunho evangélico consistente, da parte dalgum discípulo a sério. Mas logo vem isto e mais aquilo a desviar a atenção, a seduzir o gosto, a reduzir o impacto.
Jesus entrou daquele modo, como depois morreu numa cruz – entre outras cruzes, aliás, pois era suplício corrente e abundante sob Pôncio Pilatos. Alguns e algumas perceberam o sinal, com humildade capaz de entender a própria humildade de Deus. Cabe-nos agora a nós a lição e a consequência.

Abre-se uma Semana Santa, plena de Deus como Ele plenifica o mundo e a vida de todos e cada um, que assim saibam ver e assim o queiram ser. Pois aí entra Jesus na cidade, vida entre as vidas, para acolher e acompanhar. Entra no que é pequeno, na pequenez da montada e na simplicidade da apresentação. Ponhamos n’Ele os olhos, como depois na cruz. Sigamo-lo convictamente na fragilidade que assume, transportando toda a fragilidade que somos, sobretudo dos que mais a sofrem no corpo ou no espírito.
O Papa Francisco anunciou já um Jubileu da Misericórdia, a começar em dezembro. Pois é disso que se trata, em ter coração grande para as coisas pequenas, para o que requer mais cuidado e atenção ativa. Naquele dia Jesus entrava em Jerusalém, mas eram os pequenos que mais o aclamavam, pois O sentiam seu e para si. Como trinta e tantos anos atrás, com os pastores do presépio, como vinte séculos depois, quando são sobretudo os pobres que O esperam e reconhecem. Sinal disto mesmo é a aceitação geral que o Papa Francisco concita, pela atenção permanente que tem e desperta para com toda a pequenez deste mundo.
Trata-se de “religião” absoluta, pois que assim mesmo Deus se revela, na grandeza da fragilidade de Cristo, a que devemos acudir na fragilidade dos outros. Assim lembrava Paulo aos coríntios, exortando-os â generosidade para com os irmãos mais carenciados: «Dado que tendes tudo em abundância, [...] cuidai também de sobressair nesta obra de caridade. […] Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 7.9).  
Aí vai Jesus, e aí segue o próprio Deus – o Deus de Jesus Cristo! – de rua em rua, casa em casa, hospital em hospital, prisão em prisão, desamparo em desamparo… Reconheçamo-Lo de vez e sigamo-lo prontamente. Aí mesmo, da cidade em que entra ao lugar onde termina, e já fora da cidade. Aos pés da cruz, estaremos com aquelas mulheres que não O abandonaram e com José de Arimateia, que dela O desceu para o guardar depois, e certamente mais no coração do que no sepulcro.
- Tanto a aprender, caríssimos irmãos, na Semana que começa! Tanto caminho por diante, na humildade de Deus! Prossigamos com fé, e que os nossos ramos não sequem!

Sé de Lisboa, 29 de março de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarc
Patriarcado de Lisboa

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