Porta aberta para um mundo diferente
Homilia do Domingo III do Advento, na abertura do Jubileu da Misericórdia
Homilia do Domingo III do Advento, na abertura do Jubileu da Misericórdia
Alegremo-nos, estimados irmãos e irmãs. Alegremo-nos, pois de alegria
está cheio este Domingo, qual advento da misericórdia. Assim insistiram
as leituras bíblicas. Primeiro foi Sofonias: «Clama jubilosamente, filha
de Sião. […] O Senhor, rei de Israel, está no meio de ti, e já não
temerás nenhum mal». A seguir foi Paulo: «Alegrai-vos sempre no Senhor.
[…] O Senhor está próximo». Finalmente, João Batista: «Está a chegar
quem é mais forte do que eu, e eu não sou digno de desatar as correias
das suas sandálias».
Fundamental é a ligação: A alegria provém duma chegada, da chegada da misericórdia divina, em Jesus oferecida. Sofreremos, com dores próprias e alheias. Mas já não sofreremos sós, antes com Aquele que da própria morte fez vida, e vida para todos. E, porque já venceu a última batalha a travar, a nossa alegria é outro nome da esperança.
Não há nada mais a esperar de essencial, pois tudo nos foi dado em Jesus, nome e figura da divina misericórdia, que nisso mesmo consiste: coração voltado para a nossa pequenez, oferecendo-lhe vida e convivência infinitas. Nada mais a esperar na essência, mas tudo a repassar na circunstância de cada um – e de cada um com os outros.
Abrimos hoje a Porta da Misericórdia, iniciando aqui um Jubileu que se prolongará até à Solenidade de Cristo Rei – quando estivermos em pleno Sínodo Diocesano, comemorativo dos trezentos anos da qualificação patriarcal de Lisboa. Motivo de redobrado júbilo, como de reforçado empenho missionário, pois a isso mesmo aludiu o título que o Papa Clemente XI nos deu em 1716. Missão que, como canta o nosso hino sinodal de Lisboa, se concretiza precisamente na manifestação a todos dum advento acontecido. E assim mesmo cantamos: «É o sonho missionário / de chegar a toda a gente. / Longe ou perto, o necessário / é mostrar Cristo presente!»
Na bula Misericordiae Vultus, de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, disse-nos o Papa Francisco: «Na “plenitude do tempo” (Gl 4,4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, [Deus] mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem o vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus» (MV, 1).
Como nos lembra o Papa, chegara o tempo de Deus nos mandar o seu Filho, nascido da Virgem Mãe; diz-nos também que assim nos foi revelado inteiramente o amor de Deus; e que tudo quanto Jesus disse e fez é nome e figura da misericórdia divina.
Fixemo-nos um pouco em cada um destes pontos, que tanto oferecem agora. O tempo completou-se. – Mas de que plenitude se trata para nós e para todos? Diremos que o diálogo entretecido na história do povo eleito – paradigmático duma história universal que Deus elege também – teve da sua parte a última palavra, final e completa. Tudo o mais, nos dois milénios que já leva e nos que continue a levar, não será senão eco e repercussão do que, de sempre e para sempre, nos proferiu em Jesus, do Natal à Páscoa – e hoje Pentecostes em todas as línguas do mundo. E o que nos diz, tradu-lo precisamente o Papa como “misericórdia”. Misericórdia de Deus para nós e para chegar a todos, também através de nós.Foi tal a consciência desta realidade culminada, que um autor do Novo Testamento já pôde escrever o seguinte, como que resumindo toda a teologia propriamente cristã: «Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo» (Heb 1, 1-2).
Admira-nos sempre uma consciência tão matinal e perfeita do acontecimento “Cristo” e do seu inteiro significado. Como se já partíssemos do fim para o princípio – e assim sendo de facto. Em qualquer ponto ou momento em que nos situemos, de toda a geografia do universo ou de toda a geografia da alma, encontramo-nos num tempo não linear mas em círculo, cujo centro-cume é definitivamente ocupado por Cristo. Cristo, Palavra profetizada; Cristo, Palavra dita e feita; Cristo, Palavra inesgotável. Se já a ouvimos e acolhemos, transformamo-nos em seu eco, para que finalmente chegue a quem a aguarda, saiba-o ou não. E essa mesma é a missão – e a misericórdia atuada.
Continuava o Papa Francisco, dizendo que Cristo nos revelou definitivamente o amor do Pai. Importante afirmação, que nos esclarece sobre o que seja o próprio amor. Como sabemos, é das palavras mais frequentes, a propósito de tudo e também de quase nada… Mas, se pode diluir-se e perder intensidade, também se recupera e consolida, quando demonstrada em Cristo. À sua luz, de Belém ao Gólgota, o amor divino é procura constante de cada um de nós, do nascer ao morrer, acompanhando-nos onde precisamos de ser acompanhados e assim mesmo nos salvando onde precisamos de ser salvos. Na fragilidade e no drama da existência humana, incide pleno o amor divino, como misericórdia e definição exata do seu ser e acontecer, connosco e para nós.
Isto mesmo é o amor, como em Cristo se revela. E só isto Ele nos pede, habilitados pelo seu Espírito – que é Espírito de amor, onde a vida sai de si para ser vida do outro, para ser vida de todos. Sempre com o Papa Francisco, concluamos que neste amor com que Deus assim mesmo se revela está o cerne e alma do Jubileu que iniciamos.
“Misericórdia” é palavra nossa que traduz todos os vocábulos com que a Bíblia nos comunica os sentimentos de Deus para com o povo eleito. Amor profundamente sentido e por isso mesmo “entranhado”; compaixão indefetível, mesmo que não correspondida; atenção prioritária aos mais pobres e humildes. Assim mesmo se traduz a misericórdia divina: um coração voltado para quem mais precisa; como todos afinal precisamos, “mendigos do seu amor”.
Quando a Doutrina Social da Igreja insiste na “opção preferencial pelos pobres”, outra coisa não faz senão escolher quem Deus escolhe, para que ninguém se perca por descuido nosso, e para não nos desviarmos nós do caminho que Ele próprio percorreu e onde unicamente O encontraremos.
É por isso também, caríssimos irmãos e irmãs, que, como adianta o Papa, o sentimento de misericórdia se traduz necessariamente em “obras de misericórdia”: «É meu vivo desejo que o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia, corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina» (MV, 15).
Creio bem que, a esta plena luz, poderemos corresponder às indicações práticas e concretas que ouvimos a João Batista, no Evangelho de há pouco. Como ele respondia às multidões, que lhe perguntavam o que deviam fazer: «Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem nenhuma; e quem tiver mantimentos, faça o mesmo». E aos publicanos, que exorbitavam na cobrança: «Não exijais nada além do que vos for prescrito». E ainda aos soldados: «Não pratiqueis violência com ninguém, nem denuncieis injustamente».
Tudo isto dizia o Precursor, preparando o encontro final que pressentia. Tudo isto e ainda mais nos diria agora, para que nos encontremos no único lugar que tanto basta como tarda: a misericórdia divina, feita nossa e para todos. Ouvimos o convite, entrámos pela porta santa, abeiramo-nos da Eucaristia. Assim começamos por onde havemos de concluir, depois dum ano de práticas de conversão e graça. O mundo espera, Deus corresponde em Cristo, sejamos agora o seu eco ativo. Ajuda-nos a Mãe de Misericórdia, para sermos nós como Ela foi.
Sé de Lisboa, 13 de dezembro de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Fundamental é a ligação: A alegria provém duma chegada, da chegada da misericórdia divina, em Jesus oferecida. Sofreremos, com dores próprias e alheias. Mas já não sofreremos sós, antes com Aquele que da própria morte fez vida, e vida para todos. E, porque já venceu a última batalha a travar, a nossa alegria é outro nome da esperança.
Não há nada mais a esperar de essencial, pois tudo nos foi dado em Jesus, nome e figura da divina misericórdia, que nisso mesmo consiste: coração voltado para a nossa pequenez, oferecendo-lhe vida e convivência infinitas. Nada mais a esperar na essência, mas tudo a repassar na circunstância de cada um – e de cada um com os outros.
Abrimos hoje a Porta da Misericórdia, iniciando aqui um Jubileu que se prolongará até à Solenidade de Cristo Rei – quando estivermos em pleno Sínodo Diocesano, comemorativo dos trezentos anos da qualificação patriarcal de Lisboa. Motivo de redobrado júbilo, como de reforçado empenho missionário, pois a isso mesmo aludiu o título que o Papa Clemente XI nos deu em 1716. Missão que, como canta o nosso hino sinodal de Lisboa, se concretiza precisamente na manifestação a todos dum advento acontecido. E assim mesmo cantamos: «É o sonho missionário / de chegar a toda a gente. / Longe ou perto, o necessário / é mostrar Cristo presente!»
Na bula Misericordiae Vultus, de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, disse-nos o Papa Francisco: «Na “plenitude do tempo” (Gl 4,4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, [Deus] mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem o vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus» (MV, 1).
Como nos lembra o Papa, chegara o tempo de Deus nos mandar o seu Filho, nascido da Virgem Mãe; diz-nos também que assim nos foi revelado inteiramente o amor de Deus; e que tudo quanto Jesus disse e fez é nome e figura da misericórdia divina.
Fixemo-nos um pouco em cada um destes pontos, que tanto oferecem agora. O tempo completou-se. – Mas de que plenitude se trata para nós e para todos? Diremos que o diálogo entretecido na história do povo eleito – paradigmático duma história universal que Deus elege também – teve da sua parte a última palavra, final e completa. Tudo o mais, nos dois milénios que já leva e nos que continue a levar, não será senão eco e repercussão do que, de sempre e para sempre, nos proferiu em Jesus, do Natal à Páscoa – e hoje Pentecostes em todas as línguas do mundo. E o que nos diz, tradu-lo precisamente o Papa como “misericórdia”. Misericórdia de Deus para nós e para chegar a todos, também através de nós.Foi tal a consciência desta realidade culminada, que um autor do Novo Testamento já pôde escrever o seguinte, como que resumindo toda a teologia propriamente cristã: «Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo» (Heb 1, 1-2).
Admira-nos sempre uma consciência tão matinal e perfeita do acontecimento “Cristo” e do seu inteiro significado. Como se já partíssemos do fim para o princípio – e assim sendo de facto. Em qualquer ponto ou momento em que nos situemos, de toda a geografia do universo ou de toda a geografia da alma, encontramo-nos num tempo não linear mas em círculo, cujo centro-cume é definitivamente ocupado por Cristo. Cristo, Palavra profetizada; Cristo, Palavra dita e feita; Cristo, Palavra inesgotável. Se já a ouvimos e acolhemos, transformamo-nos em seu eco, para que finalmente chegue a quem a aguarda, saiba-o ou não. E essa mesma é a missão – e a misericórdia atuada.
Continuava o Papa Francisco, dizendo que Cristo nos revelou definitivamente o amor do Pai. Importante afirmação, que nos esclarece sobre o que seja o próprio amor. Como sabemos, é das palavras mais frequentes, a propósito de tudo e também de quase nada… Mas, se pode diluir-se e perder intensidade, também se recupera e consolida, quando demonstrada em Cristo. À sua luz, de Belém ao Gólgota, o amor divino é procura constante de cada um de nós, do nascer ao morrer, acompanhando-nos onde precisamos de ser acompanhados e assim mesmo nos salvando onde precisamos de ser salvos. Na fragilidade e no drama da existência humana, incide pleno o amor divino, como misericórdia e definição exata do seu ser e acontecer, connosco e para nós.
Isto mesmo é o amor, como em Cristo se revela. E só isto Ele nos pede, habilitados pelo seu Espírito – que é Espírito de amor, onde a vida sai de si para ser vida do outro, para ser vida de todos. Sempre com o Papa Francisco, concluamos que neste amor com que Deus assim mesmo se revela está o cerne e alma do Jubileu que iniciamos.
“Misericórdia” é palavra nossa que traduz todos os vocábulos com que a Bíblia nos comunica os sentimentos de Deus para com o povo eleito. Amor profundamente sentido e por isso mesmo “entranhado”; compaixão indefetível, mesmo que não correspondida; atenção prioritária aos mais pobres e humildes. Assim mesmo se traduz a misericórdia divina: um coração voltado para quem mais precisa; como todos afinal precisamos, “mendigos do seu amor”.
Quando a Doutrina Social da Igreja insiste na “opção preferencial pelos pobres”, outra coisa não faz senão escolher quem Deus escolhe, para que ninguém se perca por descuido nosso, e para não nos desviarmos nós do caminho que Ele próprio percorreu e onde unicamente O encontraremos.
É por isso também, caríssimos irmãos e irmãs, que, como adianta o Papa, o sentimento de misericórdia se traduz necessariamente em “obras de misericórdia”: «É meu vivo desejo que o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia, corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina» (MV, 15).
Creio bem que, a esta plena luz, poderemos corresponder às indicações práticas e concretas que ouvimos a João Batista, no Evangelho de há pouco. Como ele respondia às multidões, que lhe perguntavam o que deviam fazer: «Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem nenhuma; e quem tiver mantimentos, faça o mesmo». E aos publicanos, que exorbitavam na cobrança: «Não exijais nada além do que vos for prescrito». E ainda aos soldados: «Não pratiqueis violência com ninguém, nem denuncieis injustamente».
Tudo isto dizia o Precursor, preparando o encontro final que pressentia. Tudo isto e ainda mais nos diria agora, para que nos encontremos no único lugar que tanto basta como tarda: a misericórdia divina, feita nossa e para todos. Ouvimos o convite, entrámos pela porta santa, abeiramo-nos da Eucaristia. Assim começamos por onde havemos de concluir, depois dum ano de práticas de conversão e graça. O mundo espera, Deus corresponde em Cristo, sejamos agora o seu eco ativo. Ajuda-nos a Mãe de Misericórdia, para sermos nós como Ela foi.
Sé de Lisboa, 13 de dezembro de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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