Homilia no Natal do Senhor (Missa da Noite)
Para ouvirem connosco o cântico dos anjos…
Congrega-nos aqui, no meio luminoso da noite em que estamos, a lição do
modo cristão de aparecer. É certo, irmãos e irmãs, que não há noite em
que não nasçam crianças, por esse mundo além. Com cada uma delas como
que renasce o mundo, “presentes” que são de Deus e da vida. Todavia,
este “eterno nascido de ainda agora”, como lhe chamou um dos nossos
clássicos (Padre Manuel Bernardes), não é mais um entre tantos que
felizmente são. Traz-nos – no preciso modo em que a trouxe - a divindade
que Ele é para a humanidade que nós somos e Ele quis ser também.
A grande luz do Natal é esta mesma e resplende perenemente assim. Não que a saibamos explicar, pois é ela que nos explica a nós, no que já somos e havemos de ser em Cristo. Como reza um salmo: «Na vossa luz, Senhor, veremos a luz!». Viemos também nós agora, quais pastores daquela noite, atraídos pelo seu fulgor, que sempre desponta onde despontou: na maneira mais despojada e simples que podia ser. Em tal contraste com as nossas previsões, que sempre tardamos em convencer-nos do modo divino de nascer no mundo e acontecer nas vidas. Como uma frágil criança, assim tida por Maria, assim guardada por José.
Fragilidade tão forte que nos trouxe aqui, como mundo fora atrai tantos irmãos nossos - e alguns arriscando muito, para ouvir o que ouvimos, cantar algo de semelhante e receber a mesma Vida. Agradeçamos o seu testemunho, rezemos por eles que também rezam por nós, em torno de idêntico Presépio. Guardemos a beleza que nos circunda e o testemunho que prestam: duma coisa e outra precisamos, para que o coração não esfrie quando a beleza for difícil.
No Evangelho escutado houve uma suspensão dramática e assim descrita: Maria «envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria». Meditemos também. E interroguemo-nos nós próprios sobre o lugar que damos ao Menino que quer nascer. Lugar na mente e no coração, como pensamento e desejo.
Lugar até na disposição das coisas e dos espaços, domésticos e públicos. Pois, dizendo-nos católicos cerca de oitenta por cento dos portugueses, como se exprime isso mesmo na cenografia que criamos? No Evangelho contemplamos um Menino em Família, vemos pastores que chegam e até ouvimos cânticos angélicos. Não há “pais natais” com sacos de presentes – pobre contrafação consumista do verdadeiro São Nicolau, um antigo bispo que deixou boa memória de amigo de pobres e crianças... – Onde deparamos com a representação autêntica do Natal de Cristo, como foi então e importava agora? Aqui e ali decerto, mas menos, muito menos, do que podia e devia ser. Não teve lugar na hospedaria de então… - Que lugar tem hoje, tanto que se veja e possa oferecer?
Nada se impõe a ninguém, como não se impôs na altura, mas sempre se há de propor a quem procure e queira. E é tempo e mais que tempo para entendermos uma sã laicidade, onde os sentimentos de cada um se possam oferecer a todos, num espaço partilhado e sem guetos mal mantidos; de pessoas entre pessoas e crenças entre crenças, enriquecendo o conjunto com tradições avalisadas, num quadro geral de irrenunciáveis direitos humanos.
Mas a nossa meditação continua ainda, com atualidade irrecusável. Antes de mais, a atualidade da incarnação de Deus na humanidade de todos – e especialmente de quem sofre por também «não ter lugar».
Infelizmente, não faltam aceções desta carência. Como verificamos na multidão de migrantes e refugiados que hoje chegam à Europa, quando conseguem chegar… Não sendo inéditos os movimentos migratórios, a atualidade dá-lhes volume e impacto muito especiais e severos. Para nós, que tudo queremos contemplar à luz de Cristo, repete-se neles o momento dramático do seu próprio Natal, quando também não teve o lugar devido.
Muito havemos de fazer, para já na disposição e depois no que for preciso, para vivermos consequentemente isto mesmo que celebramos, para um melhor futuro, nosso com eles e deles connosco, num presépio ainda mais plural e concorrido que os dos nossos excelentes barristas de setecentos.
Ouvimos os apelos do Papa Francisco - como o da sua Mensagem para o próximo Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (17 de janeiro de 2016). Fixo-me em quatro pontos dela, que a infância de Cristo ilumina, de Belém ao Egito e do Egito a Nazaré: 1º) Os fluxos migratórios são hoje uma realidade estrutural e não episódica, que exige a consideração séria das suas causas e das mudanças que originam. Encontrando resposta globais para problemas tão sérios, faremos o que devemos e proporcionaremos a outros o que esperaríamos que nos fizessem a nós, em iguais circunstâncias. 2º) Assim sendo, o desafio humanitário pode e deve mudar-nos também, não de sítio mas no modo de estar e conviver. Escreve certeiramente o Papa: «Quem emigra é forçado a modificar certos aspetos que definem a sua pessoa e, mesmo sem querer, obriga a mudar também quem o acolhe». 3º) Por seu lado, os que chegam encontram-nos a nós, como somos e como estamos. Por isso o Papa Francisco acrescenta que, tutelada a sua dignidade, contribuirão para melhorarmos todos, «respeitando gratamente o património material e espiritual do país que os hospeda, obedecendo às suas leis e contribuindo para os seus encargos». 4º) Lembremo-nos, por fim, que a resposta a dar a quem chega não pode esquecer a solução dos problemas donde parte. Donde parte ou foge, mais por força das circunstâncias adversas do que propriamente pelo gosto de partir. Circunstâncias essas a que nem sempre são alheios alguns países que demoram em recebê-los. Como escreve o Papa, há também o «direito a não emigrar» e a «necessidade de ajudar os países donde partem os emigrantes e prófugos».
Amados irmãos e irmãs: São estas, muito especialmente, as circunstâncias em que celebramos o Natal de 2015. Correspondamos melhor do que aqueles habitantes de Belém de Judá aos que nos procurem agora. A quem nos procure de longe, ou a quem nos aguarde de perto, pois não falta entre nós quem busque refúgio para o corpo ou o espírito. Para que todos tenham lugar na “hospedaria” do nosso coração e possam ouvir connosco o celeste cântico dos anjos: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por Ele amados».
Sé de Lisboa, Natal do Senhor (Missa da Noite), 25 de dezembro de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
A grande luz do Natal é esta mesma e resplende perenemente assim. Não que a saibamos explicar, pois é ela que nos explica a nós, no que já somos e havemos de ser em Cristo. Como reza um salmo: «Na vossa luz, Senhor, veremos a luz!». Viemos também nós agora, quais pastores daquela noite, atraídos pelo seu fulgor, que sempre desponta onde despontou: na maneira mais despojada e simples que podia ser. Em tal contraste com as nossas previsões, que sempre tardamos em convencer-nos do modo divino de nascer no mundo e acontecer nas vidas. Como uma frágil criança, assim tida por Maria, assim guardada por José.
Fragilidade tão forte que nos trouxe aqui, como mundo fora atrai tantos irmãos nossos - e alguns arriscando muito, para ouvir o que ouvimos, cantar algo de semelhante e receber a mesma Vida. Agradeçamos o seu testemunho, rezemos por eles que também rezam por nós, em torno de idêntico Presépio. Guardemos a beleza que nos circunda e o testemunho que prestam: duma coisa e outra precisamos, para que o coração não esfrie quando a beleza for difícil.
No Evangelho escutado houve uma suspensão dramática e assim descrita: Maria «envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria». Meditemos também. E interroguemo-nos nós próprios sobre o lugar que damos ao Menino que quer nascer. Lugar na mente e no coração, como pensamento e desejo.
Lugar até na disposição das coisas e dos espaços, domésticos e públicos. Pois, dizendo-nos católicos cerca de oitenta por cento dos portugueses, como se exprime isso mesmo na cenografia que criamos? No Evangelho contemplamos um Menino em Família, vemos pastores que chegam e até ouvimos cânticos angélicos. Não há “pais natais” com sacos de presentes – pobre contrafação consumista do verdadeiro São Nicolau, um antigo bispo que deixou boa memória de amigo de pobres e crianças... – Onde deparamos com a representação autêntica do Natal de Cristo, como foi então e importava agora? Aqui e ali decerto, mas menos, muito menos, do que podia e devia ser. Não teve lugar na hospedaria de então… - Que lugar tem hoje, tanto que se veja e possa oferecer?
Nada se impõe a ninguém, como não se impôs na altura, mas sempre se há de propor a quem procure e queira. E é tempo e mais que tempo para entendermos uma sã laicidade, onde os sentimentos de cada um se possam oferecer a todos, num espaço partilhado e sem guetos mal mantidos; de pessoas entre pessoas e crenças entre crenças, enriquecendo o conjunto com tradições avalisadas, num quadro geral de irrenunciáveis direitos humanos.
Mas a nossa meditação continua ainda, com atualidade irrecusável. Antes de mais, a atualidade da incarnação de Deus na humanidade de todos – e especialmente de quem sofre por também «não ter lugar».
Infelizmente, não faltam aceções desta carência. Como verificamos na multidão de migrantes e refugiados que hoje chegam à Europa, quando conseguem chegar… Não sendo inéditos os movimentos migratórios, a atualidade dá-lhes volume e impacto muito especiais e severos. Para nós, que tudo queremos contemplar à luz de Cristo, repete-se neles o momento dramático do seu próprio Natal, quando também não teve o lugar devido.
Muito havemos de fazer, para já na disposição e depois no que for preciso, para vivermos consequentemente isto mesmo que celebramos, para um melhor futuro, nosso com eles e deles connosco, num presépio ainda mais plural e concorrido que os dos nossos excelentes barristas de setecentos.
Ouvimos os apelos do Papa Francisco - como o da sua Mensagem para o próximo Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (17 de janeiro de 2016). Fixo-me em quatro pontos dela, que a infância de Cristo ilumina, de Belém ao Egito e do Egito a Nazaré: 1º) Os fluxos migratórios são hoje uma realidade estrutural e não episódica, que exige a consideração séria das suas causas e das mudanças que originam. Encontrando resposta globais para problemas tão sérios, faremos o que devemos e proporcionaremos a outros o que esperaríamos que nos fizessem a nós, em iguais circunstâncias. 2º) Assim sendo, o desafio humanitário pode e deve mudar-nos também, não de sítio mas no modo de estar e conviver. Escreve certeiramente o Papa: «Quem emigra é forçado a modificar certos aspetos que definem a sua pessoa e, mesmo sem querer, obriga a mudar também quem o acolhe». 3º) Por seu lado, os que chegam encontram-nos a nós, como somos e como estamos. Por isso o Papa Francisco acrescenta que, tutelada a sua dignidade, contribuirão para melhorarmos todos, «respeitando gratamente o património material e espiritual do país que os hospeda, obedecendo às suas leis e contribuindo para os seus encargos». 4º) Lembremo-nos, por fim, que a resposta a dar a quem chega não pode esquecer a solução dos problemas donde parte. Donde parte ou foge, mais por força das circunstâncias adversas do que propriamente pelo gosto de partir. Circunstâncias essas a que nem sempre são alheios alguns países que demoram em recebê-los. Como escreve o Papa, há também o «direito a não emigrar» e a «necessidade de ajudar os países donde partem os emigrantes e prófugos».
Amados irmãos e irmãs: São estas, muito especialmente, as circunstâncias em que celebramos o Natal de 2015. Correspondamos melhor do que aqueles habitantes de Belém de Judá aos que nos procurem agora. A quem nos procure de longe, ou a quem nos aguarde de perto, pois não falta entre nós quem busque refúgio para o corpo ou o espírito. Para que todos tenham lugar na “hospedaria” do nosso coração e possam ouvir connosco o celeste cântico dos anjos: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por Ele amados».
Sé de Lisboa, Natal do Senhor (Missa da Noite), 25 de dezembro de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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